segunda-feira, 19 de julho de 2021

Crítica | Rua do Medo: 1666

Ouçam as bruxas!


O distorcido conceito de bruxaria perpetuado na Idade Média acabou banalizado pelo cinema de horror. Um gênero que, historicamente, assumiu a perversa visão repressiva dos inquisidores para assustar. Se convencionou tratar a mulher livre de amarras como uma representação do mal. Uma abordagem que, felizmente, parece ter caído em desuso. O fato da trilogia Fear Street ter uma bruxa como a vilã central gerou alguns pontos de interrogação. Qual seria a abordagem escolhida para personificar a antagonista? Rua do Medo: 1994 sugeria um perigoso mais do mesmo. Rua do Medo: 1978 deu indícios de que poderia subverter esta representação. Rua do Medo: 1666, por sua vez, rompe com uma visão arcaica ao propor a libertação feminina através da verdade. Com enorme convicção, a diretora Leigh Janiak olha para trás disposta a expor a real face do mal neste contexto abusivo. É paradoxal notar como o segmento situado no século XVII se revela o mais moderno (ou independente) da trilogia. O capítulo final se desapega dos clichês do cinema de horror setentista\oitentista para ressignificar a sua antagonista.

É através da temida Sarah Fier que Janiak estabelece a natureza da maldição que assolou Shadyside por quase três séculos. Após unir a mão ao corpo da bruxa, Deena (Kiana Madeira) ganha a chance de regressar ao ano que marcou o começo de tudo. Ela assume a perspectiva da jovem Sarah. Confesso que, num primeiro momento, não comprei a ideia da manutenção da dinâmica entre os protagonistas num contexto histórico diferente. Esperava uma ruptura mais brusca na relação espaço\tempo. O roteiro, contudo, é inteligente ao sustentar esta opção. Janiak sugere o círculo vicioso por trás da maldição. Uma cidade fadada a repetir os mesmos erros. Enquanto foca nos acontecimentos de 1666, o terceiro Rua do Medo se revela uma obra inesperadamente madura e assustadoramente reconhecível. Embora fiel a estética soturna do ‘folk horror’, a realizadora é convicta ao trocar o terror pelo drama, ao substituir a ameaça sobrenatural pelo medo da realidade. Leigh Janiak subverte o status quo dos filmes anteriores ao abordar a desigualdade social sob um novo prisma. A rixa entre classes dá lugar ao duelo de gênero. Por trás da maldição existe o machismo, o conservadorismo e (pasmem) as fake news.

Escondido na origem de Sarah Frier está o fanatismo religioso que endossou o brutal ataque ao feminino numa estrutura retrógada. Um banho de sangue sustentado por mentiras. A realizadora usa os dilemas das protagonistas, as novamente apaixonadas Sarah e Hannah (Olivia Scott Weltch), para mergulhar na mitologia proposta. O amor proibido gera a perseguição. Esqueça a aura puritana do primeiro filme. Em Rua do Medo 1666 a paixão delas é física, é fulminante, é quente. Um vislumbre de calor num cenário tão frio e sujo. A cineasta extrai o máximo do primoroso trabalho de direção de arte\figurino\maquiagem para criar composições cênicas sinistras e ao mesmo tempo tristes. O peso, aqui, não está associado a matança, mas a uma única morte. Um assassinato gerado pela injustiça, pelo ódio cego e pelo preconceito extremo. É sintomático notar que do condado de Union nasceram as cidades de Shadyside (lado sombrio) e Sunnyside (lado ensolarado). A união é destroçada pela ambição masculina. A união é uma ilusão gerada por mentes alienadas e facilmente manipuláveis.

Uma abordagem empolgante que perde parte da sua força quando a trama retorna a 1994. Uma ruptura esperada que reflete o pior da trilogia Rua do Medo. Janiak se sente obrigada a explicar demais. A realizadora repete alguns dos problemas do primeiro filme ao tornar tudo muito inofensivo. Impecável ao estabelecer a origem de Sarah Fier, o roteiro vacila ao explorar os desdobramentos da reviravolta. As conveniências narrativas são gritantes. O didatismo fica evidente quando os personagens resolvem justificar o que parecia bem claro. O clímax, em especial, destoa do restante da obra em basicamente todos os aspectos. Leigh Janiak sacrifica o senso de perigo em prol do entretenimento do tipo descerebrado. No fim, Rua do Medo: 1666 abraça a sua vocação juvenil ao banalizar elementos tão bem estabelecidos. Um deslize criativo que, ainda assim, não é capaz de anular as virtudes de uma obra determinada a retornar ao passado para construir algo diferente. Um projeto ousado que tem tudo para criar uma nova geração de fãs do cinema de horror.

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