sábado, 2 de maio de 2020

Crítica | Você Nem Imagina (The Half of It)

A primeira grande surpresa cinematográfica de 2020

Todo mundo sabe que a Netflix tem buscado criar os seus nichos enquanto produtora de conteúdo. Ela tem investido pesado nos populares “filmes de Oscar”. Tem trabalhado muito também com suspenses espanhóis. O cinema de ação é o seu mais novo foco. É no subgênero dos romances ‘teen’, porém, que a companhia se encontrou mais rapidamente. Com filmes como o agradável Para Todos os Garotos que Já Amei, o sagaz Sierra Burgess é uma Looser, o cativante Dumplin, o melancólico Por Lugares Incríveis e alguns outros menos inspirados, a Netflix criou um elo natural com o público jovem. Entendeu os anseios das novas audiências. O que fica bem claro no surpreendente Você Nem Imagina. Um degrau acima dos títulos citados anteriormente, o fascinante longa escrito e dirigido por Alice Wu se apropria dos clichês do segmento com originalidade ao investir num espirituoso triângulo amoroso com sólidas (e reconhecíveis) raízes dramáticas.

Mais do que debochar dos clássicos arquétipos dos ‘high-school movies’, a cineasta recicla fórmulas batidas com a intenção de construir algo novo, refrescante e reflexivo. Um estudo sobre as inseguranças da juventude, as descobertas, os anseios e os sentimentos mais reprimidos. Tudo soa muito autêntico aqui. As referências literárias\cinematográficas. O elo entre os complexos protagonistas. Os dilemas de cada um deles. São jovens dispostos a encontrar o seu lugar no mundo, surpreendidos pelas peças que só a vida pode pregar. Alice Wu é sagaz ao tratar o pequeno cenário em que os personagens habitavam, uma conservadora cidade do interior dos EUA, como o agente catalisador dos seus conflitos mais íntimos. Neste ambiente imersivo e invasivo, ela é inteligente ao usar os arquétipos do gênero como um contraponto a essência dos protagonistas. Diante de tamanha (e proposital) previsibilidade, o trio soa naturalmente descolado daquela realidade. Eles querem mais do que todos ali pareciam buscar\ofertar. Cada um a sua forma. 


O desastrado Paul quer conquistar a garota mais bela, mas não sabe como fazer. A autossuficiente Ellie sabe que seus pensamentos merecem voar para mais longe, mas seu solitário pai surge como uma âncora. A gentil Aster está incomodada com a perspectiva de um futuro traçado por terceiros, mas não tem coragem para desafiá-los. Mesmo em posições distintas dentro desta estrutura “social”, ambos pertencem ao mesmo nicho. Eles, entretanto, não tinham sequer noção disto. A diretora enxerga além da casca ao usar velhas convenções como o ponto de partida para um estudo de personagem denso, profundo e comovente. Esqueça o típico arco do garoto bonitão que contrata a nerd da classe para conquistar a namorada dos sonhos. Aos olhos de Alice Wu essa é a desculpa encontrada para dialogar com a essência destes personagens. Entender as suas limitações, os seus medos, expectativas, frustrações e principalmente o despreparo para lidar com tudo o que está a seu redor.


Até em cima disso, o que mais encanta em Você Nem Imagina é a forma com que o longa, a partir da imatura perspectiva dos seus personagens, discute o amor e as suas complicações. Os mesmos garotos que conversam sobre Sartre, literatura inglesa e Wim Wenders não sabem a hora certa de dar um beijo, relutam quanto a sua própria sexualidade, não entendem a essência das suas emoções. A partir da relação de companheirismo entre Ellie e Paul, Alice Wu mergulha na identidade dos protagonistas. Na rotina deles. Eles são destrinchados camada por camada. Os pequenos atos ganham um novo sentido quanto eles passam a se abrir. O objetivo, a conquista de Aster, se torna menor diante da sinceridade da conexão entre eles. Das descobertas explícitas e implícitas. Como se não bastasse a extraordinária química entre os carismáticos Leah Lewis e Daniel Diemer, a cineasta torna tudo mais denso ao investir em diálogos apaixonantes e em sequências recheadas de poesia. A falta de rumo\leitura emocional da dupla torna tudo mais complexo. São jovens falando sobre a juventude com sentimento, humor, inexperiência e principalmente honestidade. É impossível não se reconhecer neles. É impossível não apaixonar por eles, em especial por Ellie. Uma personagem única. A sua solidão, sob a perspectiva de Wu, ganha contornos mais urbanos. Nas entrelinhas, a realizadora, trazendo muito da sua experiência própria, preenche as brechas com questões sobre imigração, amadurecimento precoce, religião e sexualidade. E isso sem soar redundante. É fácil entender porque Ellie se sentia um peixe fora d’água num cenário tão conservador. Os clichês do gênero são ressignificados aqui. Ela não é isolada por ser "feia", nerd e\ou impopular. Wu não precisa bater em teclas repetidas. 


Uma visão que faz todo o sentido no momento em que a personagem de Aster entra em cena. Na superfície, a típica “garota popular” dos filmes ‘high-school’. Bela, influente, querida. Ela não precisava sequer se esforçar para pertencer ao topo da “cadeia”. Logo nas suas primeiras cenas, porém, percebemos que algo não batia. Que ali estava alguém descontente. Uma figura tridimensional desenvolvida com esmero à medida que Paul usa os dotes intelectuais de Ellie para conquistá-la. Embora o argumento se apresse em estreitar a conexão entre as garotas, Alice Wu compensa ao tornar tudo verdadeiro. Ao enxergar as semelhanças entre elas. Os sentimentos massacrados pelas imposições externas, pela insegurança, pela frustração em “vestir” um arquétipo que não era o seu. O amor, aos olhos deste triângulo amoroso\afetivo, é estranho, provocante e conflitante. O que falar, por exemplo, da sensível sequência do lago. Ali vemos duas jovens trocando experiências e sentimos a culpa delas, a pressão, o desconforto, o vínculo. Wu, mesmo trabalhando com uma classificação etária baixa, consegue extrair o tipo de intimidade que impede que o longa se torne demasiadamente pueril. Num todo, aliás, o trabalho da realizadora é de um refinamento visual\narrativo impressionante. Os seus enquadramentos traduzem o misto de beleza, euforia e melancolia desta fase da vida com expressividade. A montagem une os personagens mesmo quando eles tão distantes com desenvoltura. O texto combina dramaticidade e ironia com esmero. Wu é habilidosa ao tocar em temas como filosofia, religião e descoberta sexual com profundidade e ao mesmo tempo senso de humor. O que só ajuda a reforçar o senso de autoralidade da produção original Netflix.


Impulsionado pelas magnéticas performances do trio Leah Lewis, Daniel Diemer e Alexxis Lemire, Você Nem Imagina é um romance teen radiante que mostra uma Netflix atenta a representatividade, a diversidade e principalmente a qualidade. Embora se renda à algumas batidas convenções do gênero, principalmente no que diz respeito ao oco núcleo estereotipado da trama, Alice Wu nos presenteia com uma obra humana, inteligente e absolutamente revigorante. Uma abordagem perspicaz capaz de, a partir dos clássicos clichês dos filmes ‘high-school’, encontrar o diálogo com jovens repletos de dúvidas, bloqueios e muito a aprender sobre os seus próprios sentimentos. E eu queria ser assinante do canal de filmes que o pai da Ellie assistia diariamente. Só clássicos...

3 comentários:

Caio disse...

Olá,

Sua resenha dá gosto. É quase tão singela, delicada e sensível quanto esse filme maravilhoso. Em tempos como estes, películas assim são mais que bem vindas. Parabéns pela ótima escrita.

Neuzza Pinheiro disse...

Isto mesmo, dá gosto, desperta e revigora o nosso amor pelo cinema.
Muito grata, vou correndo ver o filme.

thicarvalho disse...

Valeu Caio muito obrigado pelas palavras. São realmente significativas. Obrigado também Neuzza. Independentemente da qualidade do filme, sempre procuro levar o meu sentimento para o texto. É um trabalho que faço pelo amor ao cinema.