segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Crítica | O Favorito

O circo midiático e as suas consequências

Gary Hart tinha tudo para ser eleito presidente nos EUA em 1988. Democrata convicto, o experiente Senador era conhecido pelo seu discurso moderado, pela sua moderna visão política\econômica e pelo seu carisma junto aos eleitores. Tanto que, em 1987, Hart já era tratado por todos como o ‘front runner’ dentro do seu partido, a escolha perfeita para desafiar os republicanos Ronald Regan e George H.W Bush. Isso até o circo midiático pegar fogo. Com uma visão completa sobre os fatos, O Favorito invade os bastidores da corrida presidência norte-americana num retrato desconcertante sobre a sujeira escondida no jogo político. Reconhecido pelo seu olhar curioso quanto a nossa falha natureza humana, Jason Reitman consegue mesmo num ambiente hermético tocar em feridas reconhecíveis, indo muito além da questão do adultério em si ao refletir sobre o machismo enraizado, sobre o sensacionalismo da imprensa e principalmente sobre a máquina de moer virtudes que ajuda a colocar no poder o que de pior a política tem a oferecer. 



Um retrato complexo potencializado pela maneira madura com que Jason Reitman investiga os fatos em questão. O realizador em nenhum momento confia piamente na inocência dos seus personagens. A todo momento o longa nos lembra que eles estão inseridos num ambiente cinza, desigual, perverso. Um passo em falso e tudo pode ruir. Não existe espaço para relações de grande sinceridade. O foco está no corporativo, na promoção, na autoproteção. Uma constante crise de confiança que claramente molda a personalidade de Gary Hart (Hugh Jackman). Candidato à presidência pelo partido Democrata, ele não aceitava que a sua intimidade fosse exposta. Nem os mais próximos tinham o direito de cogitar o uso da sua esposa Lee (Vera Farmiga) e da sua filha Andrea (Kaitlyn Dever) na campanha. O foco deveria estar sempre na sua habilidade política, nas suas propostas, naquilo que ele tinha a oferecer à sociedade norte-americana. Uma postura intransigente que é colocada abruptamente em cheque quando dois jornalistas do Miami Herald descobrem que o candidato poderia estar envolvido numa relação extraconjugal com uma jovem vendedora. No olho do furacão, Gary inicia uma dilacerante cruzada contra àqueles que o acusam de algo tão banal, colocando a sua moral em cheque (e também o seu futuro dentro da política) à medida que descobre o que terá de sacrificar para seguir na batalha rumo ao topo do poder.


Se engana quem pensa que O Favorito é um filme sobre o jogo político. Assim como em qualquer debate a um cargo público na atualidade, a política em si está em segundo, talvez em terceiro plano. O foco aqui está no ‘modus operandi’ de uma máquina distorcida repleta de interesses. Embora parta de um drama biográfico, Jason Reitman em nenhum momento parece disposto a manter o foco da trama no passado. Muito pelo contrário. Front Runner (no original) mostra a origem de algo muito atual. Das campanhas difamatórias que ajudam a mudar o rumo de uma eleição. Consciente da relevância do tema, Reitman é astuto ao, ao contrário da imprensa aqui criticada, encontrar o equilíbrio perfeito entre o privado e o público. Entre a intimidade do homem Gary Hart e a imagem do político Gary Hart. O melhor de O Favorito, na verdade, se dá quando o diretor decide invadir com o seu olhar ferino a rotina do grupo de homens (e poucas mulheres) cujo a missão é eleger o futuro presidente dos EUA. Com uma linguagem dinâmica, movimentos de câmera fluídos e uma constante troca de perspectiva, Reitman evita se concentrar demais na figura de Hart na tentativa de ampliar o escopo da trama. Com isso ele consegue apontar o dedo de forma veemente para os perigos escondidos no jornalismo sensacionalista, para a fragilidade de um modelo eleitoral que privilegia a imagem ao conteúdo, para a perversidade daqueles dispostos a interferir num pleito deste porte, para a superexposição midiática. Reitman olha para o passado com a intenção de repercutir o presente, ou talvez o futuro. Como se, a partir do caso Gary Hart, ele estivesse buscando justificativas para explicar a atual ordem das coisas na política norte-americana. O que, por sinal, ele faz com muita clareza, com direito a ‘insights’ inteligentes sobre os motivos que afastam os virtuosos da vida política e consequentemente sobre a falha do modelo eleitoral norte-americano. Por mais que Reitman assuma uma veia claramente democrata aqui, vide a maneira reverente com que ele pinta o retrato do político Gary Hart, o recado dado é universal o bastante para que possamos traçar paralelos ao redor do mundo, incluindo, claro, a nossa realidade brasileira.


Somado a isso, embora a premissa em si tenda a soar seletiva, Jason Reitman é perspicaz ao não se prender demasiadamente a ordem dos fatos. Ele encontra bem-vindas brechas para tecer genuínos comentários sobre a desigualdade de gênero neste meio, sobre o machismo, sobre a vulnerabilidade de qualquer indivíduo humano, sobre as sequelas de uma rotina longe de casa. O unidimensional não tem vez aqui. O cineasta não está interessado em julgar nem tão pouco em perdoar. Reitman não mostra o mesmo “entusiasmo” quanto a figura do protagonista nos momentos em que invade a intimidade do homem Gary Hart. Ele não titubeia em expor também o seu lado mais falho, infiel e insensível. A sua face humana. O silêncio dele as vezes diz mais do que mil palavras. Estamos diante de uma pessoa incomodada, consciente dos seus erros, culpada e ao mesmo tempo indignada com a situação que criou para si próprio. Um olhar humano sobre este caso de infidelidade impulsionado pela robusta performance de Hugh Jackman. Cogitado com um postulante à prêmios na temporada de premiações, o astro australiano captura a tridimensionalidade do seu Hart com sutileza. Ele é charmoso, persuasivo, mas também errático. É fácil enxergar o impacto da deterioração a partir da intensa performance de Jackman. Como um todo, aliás, o elenco de O Favorito entrega maiúsculas atuações, com destaque para J.K Simmons, Molly Ephraim, Alfred Molina e Sara Paxton. É legal perceber, aliás, o cuidado de Reitman em um ‘casting’ majoritariamente masculino encontrar a voz das suas personagens femininas, permitindo que o circo midiático ganhe um novo contexto sob a perspectivas delas. Todo o diálogo da acuada amante perante um cínico líder de campanha é de partir o coração. Uma pena que a figura da esposa vivida pela expressiva Vera Farmiga tenha tão pouco tempo de tela. Talvez o único ponto desta delicada equação que não ganhou a devida atenção do competente roteiro.


Envolvente como os melhores filmes de Jason Reitman, O Favorito é o tipo de obra que enxerga a oportunidade de ir além. Passado e presente se confundem num filme intrigante, ferino por natureza, com muito a dizer sobre a realidade escondida em discursos vazios, campanhas milionárias e no jogo sujo que tomou conta das corridas eleitorais ao redor do mundo. E olha que na época as ‘fake news’ nem tinham tanto poder assim...

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