Gary Hart tinha tudo para ser
eleito presidente nos EUA em 1988. Democrata convicto, o experiente Senador
era conhecido pelo seu discurso moderado, pela sua moderna visão política\econômica
e pelo seu carisma junto aos eleitores. Tanto que, em 1987, Hart já era tratado
por todos como o ‘front runner’ dentro do seu partido, a escolha perfeita para
desafiar os republicanos Ronald Regan e George H.W Bush. Isso até o circo
midiático pegar fogo. Com uma visão completa sobre os fatos, O Favorito invade os
bastidores da corrida presidência norte-americana num retrato desconcertante
sobre a sujeira escondida no jogo político. Reconhecido pelo seu olhar curioso quanto
a nossa falha natureza humana, Jason Reitman consegue mesmo num ambiente hermético tocar
em feridas reconhecíveis, indo muito além da questão do adultério
em si ao refletir sobre o machismo enraizado, sobre o sensacionalismo da
imprensa e principalmente sobre a máquina de moer virtudes que ajuda a colocar
no poder o que de pior a política tem a oferecer.
Um retrato complexo
potencializado pela maneira madura com que Jason Reitman investiga os fatos em
questão. O realizador em nenhum momento confia piamente na inocência dos seus
personagens. A todo momento o longa nos lembra que eles estão inseridos num
ambiente cinza, desigual, perverso. Um passo em falso e tudo pode ruir. Não
existe espaço para relações de grande sinceridade. O foco está no corporativo,
na promoção, na autoproteção. Uma constante crise de confiança que claramente
molda a personalidade de Gary Hart (Hugh Jackman). Candidato à presidência pelo
partido Democrata, ele não aceitava que a sua intimidade fosse exposta. Nem os
mais próximos tinham o direito de cogitar o uso da sua esposa Lee (Vera
Farmiga) e da sua filha Andrea (Kaitlyn Dever) na campanha. O foco deveria
estar sempre na sua habilidade política, nas suas propostas, naquilo que ele
tinha a oferecer à sociedade norte-americana. Uma postura intransigente que é
colocada abruptamente em cheque quando dois jornalistas do Miami Herald descobrem
que o candidato poderia estar envolvido numa relação extraconjugal com uma
jovem vendedora. No olho do furacão, Gary inicia uma dilacerante cruzada contra
àqueles que o acusam de algo tão banal, colocando a sua moral em cheque (e
também o seu futuro dentro da política) à medida que descobre o que terá de
sacrificar para seguir na batalha rumo ao topo do poder.
Se engana quem pensa que O
Favorito é um filme sobre o jogo político. Assim como em qualquer debate a um
cargo público na atualidade, a política em si está em segundo, talvez em
terceiro plano. O foco aqui está no ‘modus operandi’ de uma máquina distorcida
repleta de interesses. Embora parta de um drama biográfico, Jason Reitman em
nenhum momento parece disposto a manter o foco da trama no passado. Muito pelo
contrário. Front Runner (no original) mostra a origem de algo muito atual. Das
campanhas difamatórias que ajudam a mudar o rumo de uma eleição. Consciente da
relevância do tema, Reitman é astuto ao, ao contrário da imprensa aqui
criticada, encontrar o equilíbrio perfeito entre o privado e o público. Entre a
intimidade do homem Gary Hart e a imagem do político Gary Hart. O melhor de O
Favorito, na verdade, se dá quando o diretor decide invadir com o seu olhar
ferino a rotina do grupo de homens (e poucas mulheres) cujo a missão é eleger o
futuro presidente dos EUA. Com uma linguagem dinâmica, movimentos de câmera
fluídos e uma constante troca de perspectiva, Reitman evita se concentrar
demais na figura de Hart na tentativa de ampliar o escopo da trama. Com isso
ele consegue apontar o dedo de forma veemente para os perigos escondidos no
jornalismo sensacionalista, para a fragilidade de um modelo eleitoral que
privilegia a imagem ao conteúdo, para a perversidade daqueles dispostos a interferir
num pleito deste porte, para a superexposição midiática. Reitman olha para o
passado com a intenção de repercutir o presente, ou talvez o futuro. Como se, a
partir do caso Gary Hart, ele estivesse buscando justificativas para explicar a
atual ordem das coisas na política norte-americana. O que, por sinal, ele faz
com muita clareza, com direito a ‘insights’ inteligentes sobre os motivos que
afastam os virtuosos da vida política e consequentemente sobre a falha do
modelo eleitoral norte-americano. Por mais que Reitman assuma uma veia
claramente democrata aqui, vide a maneira reverente com que ele pinta o retrato
do político Gary Hart, o recado dado é universal o bastante para que possamos
traçar paralelos ao redor do mundo, incluindo, claro, a nossa realidade
brasileira.
Somado a isso, embora a premissa
em si tenda a soar seletiva, Jason Reitman é perspicaz ao não se prender
demasiadamente a ordem dos fatos. Ele encontra bem-vindas brechas para tecer
genuínos comentários sobre a desigualdade de gênero neste meio, sobre o
machismo, sobre a vulnerabilidade de qualquer indivíduo humano, sobre as
sequelas de uma rotina longe de casa. O unidimensional não tem vez aqui. O
cineasta não está interessado em julgar nem tão pouco em perdoar. Reitman não
mostra o mesmo “entusiasmo” quanto a figura do protagonista nos momentos em que
invade a intimidade do homem Gary Hart. Ele não titubeia em expor também o seu
lado mais falho, infiel e insensível. A sua face humana. O silêncio dele as
vezes diz mais do que mil palavras. Estamos diante de uma pessoa incomodada,
consciente dos seus erros, culpada e ao mesmo tempo indignada com a situação
que criou para si próprio. Um olhar humano sobre este caso de infidelidade
impulsionado pela robusta performance de Hugh Jackman. Cogitado com um
postulante à prêmios na temporada de premiações, o astro australiano captura a
tridimensionalidade do seu Hart com sutileza. Ele é charmoso, persuasivo, mas
também errático. É fácil enxergar o impacto da deterioração a partir da intensa
performance de Jackman. Como um todo, aliás, o elenco de O Favorito entrega
maiúsculas atuações, com destaque para J.K Simmons, Molly Ephraim, Alfred
Molina e Sara Paxton. É legal perceber, aliás, o cuidado de Reitman em um ‘casting’
majoritariamente masculino encontrar a voz das suas personagens femininas, permitindo
que o circo midiático ganhe um novo contexto sob a perspectivas delas. Todo o
diálogo da acuada amante perante um cínico líder de campanha é de partir o
coração. Uma pena que a figura da esposa vivida pela expressiva Vera Farmiga tenha
tão pouco tempo de tela. Talvez o único ponto desta delicada equação que não
ganhou a devida atenção do competente roteiro.
Envolvente como os melhores
filmes de Jason Reitman, O Favorito é o tipo de obra que enxerga a oportunidade
de ir além. Passado e presente se confundem num filme intrigante, ferino por
natureza, com muito a dizer sobre a realidade escondida em discursos vazios,
campanhas milionárias e no jogo sujo que tomou conta das corridas eleitorais ao
redor do mundo. E olha que na época as ‘fake news’ nem tinham tanto poder
assim...
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