Se o cinema tivesse um arqui-inimigo, esse seria o elitismo. Um vilão antigo. Tal qual um Thanos ou um Coringa, a soberba artística se opôs ao dispositivo desde a sua gênese. Sim meus amigos, a Sétima Arte nasceu em berço popular e durante a sua fase de desenvolvimento foi tratada como algo menor. Com um “entretenimento para as massas”, no sentido pejorativo da expressão. Tanto que, nos seus primeiros anos, quem enxergou no então cinematógrafo dos Irmãos Lumière algum potencial foram os artistas do vaudeville. Uma das camadas mais “baixas” no sistema de castas da classe artística da época. Coube a nomes do ilusionismo (entre eles o mestre Geroge Meliés), do circo, do teatro de variedades e da pantomina a missão de pensar o cinema na sua fase inicial. Enquanto a maior parte da elite cultural tratava de depreciar aquele inovador dispositivo, o povo enxergou o seu potencial escapista. Involuntariamente ou não, o cinema logo conquistou a atenção daqueles que mais clamavam por um entretenimento leve e descomplicado. Graças aos seus criadores, os filmes da época falavam a linguagem do seu público. A massa fez do cinema Sétima Arte. E só então, percebendo o potencial retorno financeiro daquele invento, os grandes empresários (e por consequência a considerada classe artística) passou a olhar para o Cinema.
O que veio a seguir todo mundo sabe.
Gradativamente o cinema foi se distanciando da sua essência popularesca. Foi
amadurecendo. Sendo redescoberto\redefinido por grandes realizadores. O
improviso foi substituído pelo profissionalismo. O que era quase mambembe ganhou
escala industrial. Vieram os gênios do cinema mudo (Charles Chaplin, Buster
Keaton, D.W Griffith), as legendas do Expressionismo Alemão (Fritz Lang, F.W
Murnau), as gigantescas estrelas da Era de Ouro de Hollywood (Joan Crawford, Katherine
Hepburn, Ingrid Bergman, Ava Gardner, Greta Garbo), os empreendedores (Mary
Pickford, Howard Hawks, Walt Disney, Douglas Fairbanks), os maestros da direção
(Chaplin, Welles, Capra, Hitchcock, Ford, Fellini, Wilder, Kubrick), os
gigantescos épicos (Rastros de Ódio, A Ponte do Rio Kwai, Ben-Hur, Spartacus, Cleópatra,
Lawrence da Arábia). A essa altura o ‘status quo’ da Sétima Arte havia mudado
por completo. O cinema (agora uma forma de arte consolidada e respeitada)
seguia sendo assistido por muitos, mas produzido por poucos. Bem poucos. Algo
até então irrelevante para o público, mas incômodo para uma nova geração de “pensadores”
desta forma de arte. Enquanto, lá atrás, faltavam interessados em produzir,
agora o cenário era outro. Faltava espaço, sobrava criadores. Vozes que
precisavam\queriam ser ouvidas.
Um sentimento de angústia que
ajudou a gerar as correntes cinematográficas vanguardistas. O Neorrealismo na Itália, a Nouvelle
Vague na França, o Cinema Novo no Brasil e (claro!) a Nova Hollywood nos EUA.
Influenciados por cineastas como Roberto Rosselini, Vittorio de Sicca, Alain
Resnais, François Truffaut, Agnes Varda, Jean Luc-Goddard, John Cassavetes e
Glauber Rocha, nomes como Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Brian de
Palma, Steven Spielberg e tantos outros surgiram dispostos a revolucionar a
forma de se fazer cinema em Hollywood. No embalo dos movimentos contra
culturais e das transformações sociais dentro do país, este seleto grupo de diretores decidiu se insurgir contra o ‘modus
operandi’ da indústria. Com inúmeras ideias na cabeça e pouco investimento,
eles começaram a fazer muito com pouco. Assim como na gênese do cinema, o
processo voltou a flertar com o “artesanal”. Ou melhor, com a independência anti um sistema\modelo de negócio fechado.
Francis Ford Coppola no set de Apocalipse Now |
Na
cabeça deles, o gigantismo descerebrado de Hollywood era predador. E o que eles
fizeram foi redimensionar a estrutura do cinema de autor. Conscientes de que
existia espaço para todo mundo, este grupo de criadores conseguiu furar uma
bolha que já durava algum tempo. Enquanto Spielberg e George Lucas, com a sua
visão artística\comercial de cinema, conseguiram reinventar a forma de se
vender produções em Hollywood, Scorsese, Coppola e tantos outros ajudaram a
levar a realidade para a tela grande. O cinema norte-americano assumiu uma face
mais política, mais social, mais urbana. Não que isso fosse uma novidade na
história do dispositivo. Longe disso. Mas, àquela altura, em meio ao emaranhado
de produções de grande alcance, seria difícil ver títulos como Easy Rider (1969), A Última Sessão
de Cinema (1971), O Poderoso Chefão (1972), Taxi Driver (1976), O Franco
Atirador (1978), Apocalipse Now (1979), Touro Indomável (1980), Scarface (1983)
“nascerem” de forma espontânea dentro da indústria. Graças ao esforço (e ao
talento) destes legendários criadores o mundo do cinema se transformou entre os
anos 1960 e 1970. Graças a eles nós fãs da Sétima Arte fomos presenteados com
alguns dos maiores e mais influentes clássicos das últimas cinco décadas.
Robert de Niro e Martin Scorsese no set de Taxi Driver |
Feita esta pequena grande
introdução, é fácil entender porque hoje, em pleno 2019, expoentes da Nova
Hollywood não escondem o seu repúdio quanto à existência de franquias do porte
do Universo Vingadores. Após Martin Scorsese defender à Revista Empire que os
filmes do MCU “não são cinema” e que mais parecem “um parque temático”, Francis
Ford Coppola foi além ao afirmar que eles são “desprezíveis”. Para o diretor da
Trilogia O Poderoso Chefão, Scorsese “está certo porque nós esperamos aprender
algo do cinema, ganhar algo, algum esclarecimento, conhecimento, inspiração”.
Esta é a opinião (gostem ou não) de dois mestres da Sétima Arte. Duas figuras
influentes que, logo nos seus primeiros passos dentro da indústria, precisaram
enfrentar a concorrência pesada hoje representada nos filmes da Marvel. Sim
meus amigos, Os Vingadores de hoje é o Star Wars dos anos 1980, os filmes da DC
dos anos 1990, a explosão dos faroestes nos 1960\70, dos musicais de 1950 e
1960. Nada mudou dentro da indústria desde então. O lucro é o objetivo. Não
podemos ser ingênuos. Embora hoje nos EUA exista uma forte regulamentação
quanto a equiparação na distribuição dos longas lançados, algo que, por
exemplo, não acontece no Brasil, é fato que estes gigantescos blockbusters tem “asfixiado”
o poder de investimento\a criatividade de alguns estúdios. O monopólio passou a ser uma ameaça real dentro da indústria. Sob esta perspectiva,
Coppola e Scorsese tem a sua razão. O Irlandês, por exemplo, só nasceu graças
ao aporte financeiro da Netflix, já que nenhum outro grande estúdio estava
disposto a despejar tanta grana numa obra que dificilmente traria o retorno nas
bilheterias. Ainda hoje, após décadas de grandes serviços prestados, a dupla
sente na pele o sabor amargo de uma “porta fechada” na cara.
Público lota sessão de Star Wars em 1977 |
O problema é que eles não estão
atacando o que os filmes da Marvel representam dentro da indústria. Eles estão
questionando aquilo que eles são. E aqui brota o perigo impregnado neste tipo
de argumento. Escondido na origem desta crítica está o elitismo. Sim, olha ele
de volta. O calcanhar de Aquiles dos movimentos de vanguarda foi este constante
flerte com a soberba artística. Talvez pela qualidade das produções deste
período, talvez pelo egocentrismo de alguns destes realizadores (em especial da
Nouvelle Vague), esta corrente passou a se assumir como uma referência
artística. Como o modelo a ser seguido. O (detestável) circuito de arte, por
exemplo, nasceu deste tipo de mentalidade pretensiosa. Desta falsa sensação de
que o "nosso cinema" é mais cinema do que foi ou é produzido. Com isso não quero
dizer que Martin Scorsese e Francis Ford Coppola absorveram este elitismo nas suas produções.
Longe disso. Embora adeptos da experimentação cinematográfica, os dois sempre
se preocuparam com o público, com a linguagem, com a acessibilidade dos seus
projetos. É fato, porém, que a defesa deles traz muito deste discurso
ultrapassado. Por mais geniais que Scorsese e Coppola sejam, não cabe a eles a
missão de definir o que é ou não cinema. Nem a ninguém. Mais do que desmerecer
uma forma legítima de arte (sim, existe arte no MCU), a dupla depõe contra a
sua própria história. A questão, volto a frisar, não é o gosto deles. Isso é
subjetivo. É difícil imaginar, na verdade, um senhor de 80 anos (Coppola) e
outro de 76 (Scorsese) comprando o escapismo fantasioso proposto pelo MCU. O
problema está nesta tentativa de depreciar aquilo que o povo assiste, aquilo
que atrai o grande público. Algo que, infelizmente, remete a gênese do cinema, quando
a Sétima Arte não era boa o bastante para a classe artística.
O discurso de Francis Ford
Coppola, em especial, é ainda mais complicado. Ao chamar os filmes do MCU de
desprezíveis, o diretor não só dá voz a esta corrente elitista, como também ataca
a própria veia popular do cinema. Até porque, por trás destas produções desprezíveis
existe uma legião de espectadores, uma geração em formação. Ninguém vira fã de
cinema da noite para o dia assistindo O Poderoso Chefão, ou Os Bons Companheiros. Só por levar uma
massa de espectadores aos cinemas, isso numa época em que o streaming e a
pirataria imperam, o MCU (tal qual qualquer bom blockbuster) deveria ser
louvado. O pequeno fã da Marvel hoje tem mais chance de futuramente buscar um
dos filmes de Coppola do que um jovem que nunca pisou num cinema. Ou que não
tem o hábito. E assim foi com O Mágico de Oz, as animações da Disney, Star Wars,
Indiana Jones, os clássicos oitentistas, os super-heróis da DC... O que mais me incomodou no discurso de Coppola,
na verdade, foi a nítida sensação de que ele sequer viu algumas destas obras. Por
mais subjetiva que possa ser a experiência cinematográfica, é impossível não
enxergar o quão inspiradoras\comoventes\profundas são algumas destas obras. Como não perceber a mensagem antibélica num filme como Homem de Ferro (2008), o
forte senso de altruísmo de Os Vingadores (2012), a representatividade de
títulos como Pantera Negra (2018) e Capitã Marvel (2019), os ‘insights’ sobre a
nossa relação com o tempo\espaço propostas por Doutor Estranho (2016), a
emocionante discussão sobre paternidade pensada por Guardiões da Galáxia Vol. 2
(2017), a catarse coletiva da dobradinha Vingadores: Guerra Infinita (2018) e
Ultimato (2019). O MCU está longe, muito longe, de ser sequer o pior (e mais
raso) do que cinema pipoca tem a oferecer na atualidade. Existe sentido por
trás desta gigantesca estrutura, existe conteúdo, existe talento e muita
beleza. Manifestações como essa não podem inflamar o discurso de ódio contra
este tipo de produção.
Entre grandes produções e
projetos menos memoráveis, o MCU (gostem ou não) é cinema da melhor qualidade
dentro do que se propõe. Vou além. Vilanizar o gênero blockbuster é um tiro no
pé. Assim como no passado, o povo segue movimentando a indústria, alimentando
as engrenagens, injetando o capital que a Sétima Arte precisa para sobreviver,
para se manter sustentável, para produzir. Por mais que os problemas na distribuição
deste capital sejam um problema e que as distorções causadas por ele limitem a
ação de tantos grandes cineastas, a solução nunca vai ser atacar aquilo que dá
lucro. Muito provavelmente por um compreensível senso de autopreservação da sua
visão, desta vez (e só desta vez) os mestres Martin Scorsese e Francis Ford
Coppola se juntaram aos “vilões”, se renderam a um discurso que não acrescenta
nada ao cinema e endossaram um pensamento que traz mais rejeição do que
reflexão. E tudo que Coppola e Scorsese não merecem é conviver com qualquer
tipo de antipatia. Pelo bem da Sétima Arte. Por fim, faço das palavras de Jon Favreau, diretor de Homem de Ferro, as minhas palavras. "Esses dois sujeitos são meus heróis e mereceram o direito de expressar suas opiniões. Não estaria fazendo o q faço se eles não tivessem vindo antes. Serviram como fonte de inspiração e podem expressar a opinião que quiserem". Isso não quer dizer que precisamos necessariamente concordar com elas.
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