sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Crítica | Sombra Lunar

O poder de uma ideia

Um bom filme de suspense precisa instigar. Isso é o mínimo. Quanto mais ele puder oferecer, porém, melhor. Num momento em que o gênero passa por uma perceptível crise criativa, Sombra Lunar surge para revigorar o formato com uma combinação curiosa. Com uma mensagem poderosa em mãos, o subestimado diretor Jim Mickle (Stake Land) reoxigena o popular “filme de serial killer” ao buscar no universo do Sci-Fi o elemento para construir uma premissa inquietante, enérgica e à sua maneira questionadora. Consciente do mundo em que vivemos, o realizador vai bem além do que o ‘plot’ prometia oferecer ao tocar em feridas sociais reconhecíveis, usando o divisivo contexto político atual como o combustível que a trama precisava para realmente inflamar. Embora a clara pretensão do roteiro não esconda as suas falhas, bem comuns na ambiciosa estrutura narrativa defendida por Mickle, a produção original Netflix compensa ao extrair o máximo da sua inquietante proposta, refletindo sobre o perigoso poder de uma ideia sem nunca sacrificar a tensão e o clima de mistério. O resultado é uma obra intensa o bastante para fisgar e inteligente o bastante para provocar. 



O primeiro trunfo de Sombra Lunar, na verdade, fica pela estética genuinamente noventista. Um período muito fértil para o gênero. O cenário é sujo. A violência é gráfica. A realidade é cruel. Por mais que a proposta fantástica salte aos olhos logo na insinuante cena inicial, Jim Mickle não se isenta de inserir a trama num ambiente urbano reconhecível. Uma mistura de Seven: Os Sete Crimes Capitais (1995) e Os Doze Macacos (1995), o longa começa com o pé no acelerador ao invadir a atribulada noite de Locke (Boyd Holbrook), um policial ávido por uma promoção que se depara com uma série de sangrentos homicídios. Ligando os pontos antes dos seus superiores, entre eles o cunhado Holt (Michael C. Hall), o jovem oficial entra no rastro de uma furtiva jovem (Cleopatra Coleman) sem sequer desconfiar das suas reais motivações. Obcecado pelas intenções desta enigmática figura, Locke não se dá por satisfeito quando o caso parecia “resolvido”, mergulhando numa espiral de tragédias e sacrifícios a fim de pará-la. Uma busca incessante capaz de colocar em cheque a sua família, o seu distintivo e até mesmo a sua própria sanidade.


Escrever sobre Sombra Lunar sem dar spoilers é uma missão difícil. Portanto serei mais superficial do que o costume. Impecável ao construir o clima de mistério e violência urbana, Jim Mickle é igualmente habilidoso ao trabalhar o misto de ambição e obsessão de Locke quanto a figura da pretensa ‘serial killer’. Fazendo jus aos principais filmes do gênero, o realizador constrói ao longo da primeira metade da obra um jogo de gato e rato instigante, com sequências de ação dinâmicas, um constante flerte com o ‘gore’, personagens cativantes, direção segura e muitas perguntas não respondidas. Neste primeiro momento, a opção do roteiro assinado por Gregory Weidman e Geofrey Tock em proteger os segredos a qualquer custo serve muito bem à trama, principalmente por estreitar o elo entre o espectador e o protagonista. Assim como ele sequer desconfiamos das motivações dela, do seu inusitado ‘modus operandi’. Um sentimento potencializado à medida que o Sci-Fi passa a tomar conta da jornada de Locke. Por mais que, quando o assunto é o visual dos personagens, o processo de transição temporal\envelhecimento seja problemático, narrativamente a passagem de tempo é explorada com sagacidade. Tudo se torna mais interessante. Mickle consegue explorar com destreza o impacto da assassina na identidade do protagonista. O estrago causado pela obsessiva busca por respostas traz um bem-vindo senso de urgência à trama. Ok, o arco dramático de Locke poderia ser desenvolvido com maior profundidade? Poderia! Mas o que temos não chega a ser frustrante, longe disso, muito em função da densa performance do competente Boyd Holbrook.


Quando decide colocar as cartas na mesa e jogar limpo com o público, no entanto, Sombra Lunar expõe o seu melhor e também o seu pior. Costumo defender que os melhores filmes de suspense são aqueles que nos convidam a participar da brincadeira. Eles oferecem os ingredientes necessários para que possamos investigar os personagens, buscar as respostas, evitarmos qualquer tipo de manipulação. Algo que, infelizmente, Jon Mickle (e o roteiro) não faz aqui. Com exceção de algumas pequenas pistas, o realizador entrega bem pouco para o público especular. As explicações nascem de soluções extremamente didáticas, como na repentina entrada de um cientista indiano na trama (Rudi Dharmalingam), ou então nas próprias divagações da antagonista. Em dois ou três momentos, na verdade, a impressão que fica é que Mickle se sente obrigado a travar a história, pegar o espectador pelo braço e explicar algo que já parecia até bem óbvio. Uma crise de confiança do argumento que tende a soar um tanto quanto frustrante aos olhos dos fãs do Sci-Fi. Recentemente, por exemplo, o igualmente provocante O Predestinado (2014) se saiu muito melhor neste aspecto. Além disso, na transição para o último ato, Mickle se sustenta demais em conveniências na tentativa de ligar os pontos entre o detetive e a assassina, flertando repentinamente com o sentimentalismo ao estabelecer o seu esperto ‘plot twist’. Sim, no fim tudo faz realmente sentido. O problema está na execução.


Sombra Lunar, na verdade, é o tipo de filme que erra no mais fácil e acerta no mais difícil. Didático ao introduzir a ficção-científica, o argumento é simples e inteligente ao trabalhar com elementos mais complexos como, por exemplo, a linha temporal do protagonista e a relação dela como a da antagonista. Numa sequência até despretensiosa, Jim Mickle usa um saleiro e um pimenteiro para explicar com naturalidade algo tratado com complexidade por tantos outros filmes. O mesmo, aliás, podemos dizer da dinâmica estrutura narrativa proposta pelo roteiro. Mais do que um mero recurso, os saltos temporais revelam pouco a pouco as motivações de Locke, a esperança escondida na obsessão. A caçada da assassina está longe de ser o seu principal objetivo. Confesso que, por um curto momento, cheguei a colocar em dúvida a linearidade proposta pelo roteiro. No fim, porém, mais uma vez tudo faz sentido, principalmente pela perspicácia com que Mickle interliga o passado, o presente e o futuro. Sem querer revelar muito, tanto Locke quanto a assassina se movem de maneira semelhante pelo espaço, só que com objetivos (e rumos) totalmente distintos. Num todo, aliás, o argumento é cuidadoso ao explorar a noção de imutabilidade do tempo, a certeza de que estamos diante de uma viagem constante e sem volta.


O melhor de Sombra Lunar, porém, está na sua potente mensagem. Com algo a dizer sobre o mundo em que vivemos, Jim Mickle faz um belo uso do viés Sci-Fi ao embutir um sentido na jornada de Locke e da sua “torturadora”. Como se não bastasse o cuidado do argumento ao tocar em feridas sociais\raciais extremamente reconhecíveis, o tempo passa e (infelizmente) pouco muda na rotina urbana do afro-americano, o realizador vai bem além do que a trama parecia sugerir ao combater os discursos de ódio na sua raiz. Por mais que, na ânsia de proteger os segredos em torno da assassina, o roteiro subaproveite a pessimista visão de mundo proposta na cena inicial, e que, de certa forma, a ingenuidade no plano da antagonista seja clara, Mickle compensa ao de maneira altamente sugestiva refletir sobre o estrago que uma simples ideia pode causar. Mesmo sem citar nomes, o diretor é enfático ao criticar o preconceito escondido em discursos cada vez mais “normatizados”, ou relativizados, mostrando que nem o tempo é capaz de aniquilar uma ideia. As mais idealistas e também as mais perversas. Um contexto realístico que confere a Sombra Lunar uma aura diferenciada. Mesmo diante de óbvias falhas e conveniências, Jim Mickle entrega um thriller instigante e provocador, uma obra sobre chagas não cicatrizadas que de tempos e tempos voltam para nos contaminar.

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