quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Fugindo do Hype | Us – Nós (Com Spoilers)

O que vocês são? Nós somos americanos!

Extrair significados de Us é algo até fácil. As interpretações dos símbolos podem ser tantas. E eles não parecem dispostos a se anular. Após colocar o dedo na ferida quanto ao racismo nos EUA no ácido Corra!, o diretor Jordan Peele não parece interessado aqui em reduzir o alvo. Óbvio que Us (Nós, no Brasil) traz consigo uma forte temática racial. Ter uma família negra num ambiente habitado majoritariamente por brancos faz todo o sentido dentro desta instigante alegoria social. O cineasta, porém, quer ir além. Existem outros males a serem combatidos. Tão ou mais perigosos. Uma ameaça reprimida. Uma ameaça que odeia. Uma ameaça que segrega. Uma ameaça que persegue. Uma ameaça que mata. Um mal que de tão reconhecível pode até se passar por nós mesmos. 


O primeiro grande trunfo de Us está na sagacidade com que Jordan Peele mantém tudo quase sempre em aberto. Os símbolos estão aqui para provocar. As eventuais respostas estão nas entrelinhas e são subjetivas. A representação do mal pode assumir inúmeras formas. Os acorrentados, num primeiro momento, surgem como uma ameaça com um claro contexto racial. Como se Peele estivesse propondo um choque de versões. Enquanto Adelaide (Lupita N’yongo), Gabe (Winston Duke), Zora (Shahadi Wright Joseph) e Jason (Evan Alex) representam a realidade de uma funcional família afro-americana, Red, Abraham, Pluto e Umbrae surgem como a forma com que eles durante tanto tempo foram vistos. O negro enquanto ameaça. O negro primitivo. O negro violento. O negro invasor. Uma imagem que durante muito tempo foi alimentada nos EUA. Um país em que a segregação era institucionalizada. Uma “herança” ainda hoje muito viva por lá. O sucesso do afro-americano ainda é incômodo para alguns. E Peele sabe disso.


O que fica bem claro, a meu ver, quando Us decide ampliar o escopo da sua alegoria. No momento em que descobrimos que existem outros “clones” e que eles possuem um plano em mente, o realizador é engenhoso ao atribuir novos significados aos acorrentados. Por mais que o viés racial siga saltando aos olhos, a “casca” dos personagens negros é mais grossa do que a dos desprotegidos brancos, Jordan Peele expande a discussão ao olhar para o atual Estados Unidos da América. O país que elegeu Donald Trump. Um homem com opiniões indiscutivelmente perigosas. Que parece representar uma velha América. Uma realidade que parecia ter ficado no passado, mas aparentemente estava adormecida. Ou escondida, quem sabe, em túneis... Neste sentido, os acorrentados poderiam representar o flerte com o fascismo. O ódio enraizado em muitos. O sentimento de vingança. De destituição de algo que foi legitimamente conquistado. Existe muita raiva nos antagonistas. Por outro lado, é possível enxergar também nos vilões um quê reacionário. Seriam eles uma representação dos marginalizados? Daqueles que foram (e são) esquecidos. Esmagados por uma classe superior. Abandonados à sua própria sorte como inocentes\desprotegidos coelhos. Produtos da hostilidade. Assim como em Corra!, é legal ver como Peele abraça sem um pingo de vergonha a fantasiosa (e criativa) mitologia proposta. E ela só reforça este viés social da película. Por mais absurdo que possa parecer, a realidade dos acorrentados é reconhecível. Fruto da desigualdade, da insensibilidade, da falta de recursos, da educação, de dignidade. Repare, por exemplo, como o diretor usa a sombra como uma representação visível dos relegados, daqueles que estão abaixo de nós, inertes. Sem querer revelar mais do que o necessário, um contexto que se reflete diretamente no arco de Adelaide e na repentina\divisiva reviravolta proposta por Peele no último ato.


A pergunta que não quer calar, entretanto, é simples. Quem está por trás das inúmeras mazelas citadas acima? Do racismo, da repressão, da desigualdade, do fanatismo, da insensibilidade humana... Quem? Nós! Us, no fim, usa a violência, o horror e o cenário “distópico” para apontar a mira para o seu público. Para o mal que se esconde no espelho. Que carregamos ou espalhamos no dia a dia. O mal que compartilhamos quando somos tóxicos, machistas, homofóbicos, preconceituosos, agressivos. Quando defendemos o indefensável, alimentamos discursos perigosos, nos recusamos a aceitar\enxergar os fatos, damos voz\poder aqueles que não merecem tê-lo. Seguindo esta lógica, Us traria uma mensagem sobre o mal que está entre nós. O mal que se esconde na futilidade, na pretensa sensação de superioridade, no vazio que nos cerca. Uma alegoria sócio-política inquietante e inteligente capaz de fazer de Nós um dos melhores filmes de 2019.


Seria um tanto quanto injusto, porém, reduzir Us a sua poderosa mensagem. Estamos diante de um grande exemplar do cinema de Horror. Jordan Peele nos brinda com uma obra estilosa, visualmente impactante e genuinamente assustadora. Enquanto exercício estético, na verdade, Nós se revela uma produção praticamente irretocável. Tudo funciona com brilhantismo. A tensão é natural e quase que instantânea. O que fica bem claro, em especial, na enervante sequência da abertura, onde, basicamente, o pavor impresso no olhar de uma criança me fez entrar no clima da película. Com um jogo de câmera ora plástico e vistoso, ora caótico e angustiante, Peele extrai o máximo do plot ao criar uma atmosfera de imprevisibilidade inigualável dentro do gênero. A ameaça é anárquica. Muitas vezes só com a sugestão da brutalidade o cineasta consegue tirar o público da “zona de conforto”, incomodar ou até mesmo chocar. Um predicado potencializado primeiro pela saturada fotografia de Mike Gioulakis (Corrente do Mal), expressiva ao valorizar a negritude dos personagens, a cor dos objetos\figurino e a iluminação dos cenários. E segundo pela eclética\enervante trilha sonora de Michael Abels (Corra!), criativa ao combinar o eruditismo dos solos de violino e dos coros orquestrados com os riffs de hip-hop.


Se Us é um filme assustador, no entanto, muito se deve a magnífica performance do elenco. Por mais que a caracterização dos personagens contribua bastante, a maquiagem e o figurino são bem ‘creep’, impressiona a devoção do elenco a ideia proposta por Jordan Peele. Com destaque máximo para Lupita N’Yongo. O que a vencedora do Oscar por 12 Anos de Escravidão faz aqui é algo inimaginável. Por mais que a sua convincente performance com uma figura materna ‘bad-ass’ seja empolgante, o nível realmente sobre quando ela surge como a vidrada Red. O que vemos é um show de uma atriz com pleno domínio sobre o seu corpo. A sua expressão é insana. O seu andar é desconforme. Ela parece funcionar numa velocidade própria. E o que falar da voz dela. Ela se comunica com um timbre gutural, com dificuldades, como se ali realmente tivesse alguém que durante muito tempo perdeu a oportunidade de falar. Perdeu a sua voz. Não importa o período em que o longa foi lançado. Lupita merece ser reconhecida na temporada de premiações. O mesmo vale para a igualmente fantástica Elisabeth Moss. Mesmo com um menor tempo de tela, a estrela de Mad Men e Handmaid Tale’s traduz o choque de identidade proposto por Peele com uma insanidade ímpar, nos brindando com um par de cenas digna de aplausos. Todos na verdade, em especial as crianças, se revelam peças fundamentais na tentativa do diretor em trazer uma aura psicopática aos antagonistas. 


No fim, curiosamente, o melhor e o pior de Us estão no roteiro. Se bem que pior é um adjetivo que de maneira alguma deveria estar associado a esta obra. Magnífico enquanto alegoria social\política, o argumento dá as suas escorregadas em alguns momentos. É inegável que Jordan Peele gosta dos seus personagens. O diretor, no entanto, abusa mais do que ideal das conveniências narrativas ao mantê-los seguros demais. Em pelo menos dois momentos, os antagonistas parecem renegar a sua “natureza” sem grande motivo, dando o tempo necessário para que a morte de um deles fosse impedida. Outro ponto que incomoda são os alívios cômicos. Um dos maiores trunfos de Corra!, o humor me pareceu deslocado aqui. Embora Peele mostre astúcia ao não se levar tão a sério assim, algo fundamental neste tipo de produção, as piadas são irregulares e fora de tom. Talvez o verdadeiro único senão de Us, porém, esteja na reviravolta final proposta por Peele. Um plot-twist que faz sentido. Isso é um fato. Nos ajuda também a entender melhor a protagonista. Outro fato. Surge como uma interessante alternativa a realidade daqueles que foram abandonados. Novo fato. Mas é mal desenvolvido. Na tentativa de proteger este segredo, Peele simplesmente omite informações do espectador que acrescentariam bastante ao arco de Adelaide, deixando uma lacuna que pode incomodar os mais “sensíveis”. Uma brecha para a interpretação que, por outro lado, tem muito a insinuar sobre a mensagem final de Us. Sobre a importância de olharmos para nós mesmos e oferecermos a nossa melhor versão.

Um comentário:

Unknown disse...

Análise show👏👏👏.