Extrair significados de Us é algo
até fácil. As interpretações dos símbolos podem ser tantas. E eles não parecem
dispostos a se anular. Após colocar o dedo na ferida quanto ao racismo nos EUA
no ácido Corra!, o diretor Jordan Peele não parece interessado aqui em reduzir
o alvo. Óbvio que Us (Nós, no Brasil) traz consigo uma forte temática racial.
Ter uma família negra num ambiente habitado majoritariamente por brancos faz
todo o sentido dentro desta instigante alegoria social. O cineasta, porém, quer
ir além. Existem outros males a serem combatidos. Tão ou mais perigosos. Uma
ameaça reprimida. Uma ameaça que odeia. Uma ameaça que segrega. Uma ameaça que
persegue. Uma ameaça que mata. Um mal que de tão reconhecível pode até se
passar por nós mesmos.
O primeiro grande trunfo de Us
está na sagacidade com que Jordan Peele mantém tudo quase sempre em aberto. Os
símbolos estão aqui para provocar. As eventuais respostas estão nas
entrelinhas e são subjetivas. A representação do mal pode assumir inúmeras
formas. Os acorrentados, num primeiro momento, surgem como uma ameaça com um
claro contexto racial. Como se Peele estivesse propondo um choque de versões. Enquanto
Adelaide (Lupita N’yongo), Gabe (Winston Duke), Zora (Shahadi Wright Joseph) e
Jason (Evan Alex) representam a realidade de uma funcional família
afro-americana, Red, Abraham, Pluto e Umbrae surgem como a forma com que eles
durante tanto tempo foram vistos. O negro enquanto ameaça. O negro primitivo. O
negro violento. O negro invasor. Uma imagem que durante muito tempo foi alimentada
nos EUA. Um país em que a segregação era institucionalizada. Uma “herança”
ainda hoje muito viva por lá. O sucesso do afro-americano ainda é incômodo para
alguns. E Peele sabe disso.
O que fica bem claro, a meu ver,
quando Us decide ampliar o escopo da sua alegoria. No momento em que
descobrimos que existem outros “clones” e que eles possuem um plano em mente, o
realizador é engenhoso ao atribuir novos significados aos acorrentados. Por
mais que o viés racial siga saltando aos olhos, a “casca” dos personagens
negros é mais grossa do que a dos desprotegidos brancos, Jordan Peele expande a
discussão ao olhar para o atual Estados Unidos da América. O país que elegeu
Donald Trump. Um homem com opiniões indiscutivelmente perigosas. Que parece
representar uma velha América. Uma realidade que parecia ter ficado no passado,
mas aparentemente estava adormecida. Ou escondida, quem sabe, em túneis...
Neste sentido, os acorrentados poderiam representar o flerte com o fascismo. O
ódio enraizado em muitos. O sentimento de vingança. De destituição de algo que
foi legitimamente conquistado. Existe muita raiva nos antagonistas. Por outro
lado, é possível enxergar também nos vilões um quê reacionário. Seriam eles uma
representação dos marginalizados? Daqueles que foram (e são) esquecidos.
Esmagados por uma classe superior. Abandonados à sua própria sorte como
inocentes\desprotegidos coelhos. Produtos da hostilidade. Assim como em Corra!, é legal ver
como Peele abraça sem um pingo de vergonha a fantasiosa (e criativa) mitologia
proposta. E ela só reforça este viés social da película. Por mais absurdo que
possa parecer, a realidade dos acorrentados é reconhecível. Fruto da
desigualdade, da insensibilidade, da falta de recursos, da educação, de
dignidade. Repare, por exemplo, como o diretor usa a sombra como uma
representação visível dos relegados, daqueles que estão abaixo de nós, inertes.
Sem querer revelar mais do que o necessário, um contexto que se reflete
diretamente no arco de Adelaide e na repentina\divisiva reviravolta proposta por
Peele no último ato.
A pergunta que não quer calar,
entretanto, é simples. Quem está por trás das inúmeras mazelas citadas acima? Do racismo, da repressão, da desigualdade, do fanatismo, da insensibilidade
humana... Quem? Nós! Us, no fim, usa a violência, o horror e o cenário
“distópico” para apontar a mira para o seu público. Para o mal que se esconde
no espelho. Que carregamos ou espalhamos no dia a dia. O mal que compartilhamos
quando somos tóxicos, machistas, homofóbicos, preconceituosos, agressivos. Quando
defendemos o indefensável, alimentamos discursos perigosos, nos recusamos a
aceitar\enxergar os fatos, damos voz\poder aqueles que não merecem tê-lo.
Seguindo esta lógica, Us traria uma mensagem sobre o mal que está entre nós. O
mal que se esconde na futilidade, na pretensa sensação de superioridade, no
vazio que nos cerca. Uma alegoria sócio-política inquietante e inteligente
capaz de fazer de Nós um dos melhores filmes de 2019.
Seria um tanto quanto injusto,
porém, reduzir Us a sua poderosa mensagem. Estamos diante de um grande exemplar
do cinema de Horror. Jordan Peele nos brinda com uma obra estilosa, visualmente
impactante e genuinamente assustadora. Enquanto exercício estético, na verdade,
Nós se revela uma produção praticamente irretocável. Tudo funciona com
brilhantismo. A tensão é natural e quase que instantânea. O que fica bem claro,
em especial, na enervante sequência da abertura, onde, basicamente, o pavor
impresso no olhar de uma criança me fez entrar no clima da película. Com um
jogo de câmera ora plástico e vistoso, ora caótico e angustiante, Peele extrai
o máximo do plot ao criar uma atmosfera de imprevisibilidade inigualável dentro
do gênero. A ameaça é anárquica. Muitas vezes só com a sugestão da brutalidade
o cineasta consegue tirar o público da “zona de conforto”, incomodar ou até
mesmo chocar. Um predicado potencializado primeiro pela saturada fotografia de
Mike Gioulakis (Corrente do Mal), expressiva ao valorizar a negritude dos
personagens, a cor dos objetos\figurino e a iluminação dos cenários. E segundo
pela eclética\enervante trilha sonora de Michael Abels (Corra!), criativa ao
combinar o eruditismo dos solos de violino e dos coros orquestrados com os
riffs de hip-hop.
Se Us é um filme assustador, no
entanto, muito se deve a magnífica performance do elenco. Por mais que a
caracterização dos personagens contribua bastante, a maquiagem e o figurino são
bem ‘creep’, impressiona a devoção do elenco a ideia proposta por Jordan Peele.
Com destaque máximo para Lupita N’Yongo. O que a vencedora do Oscar por 12 Anos
de Escravidão faz aqui é algo inimaginável. Por mais que a sua convincente
performance com uma figura materna ‘bad-ass’ seja empolgante, o nível realmente
sobre quando ela surge como a vidrada Red. O que vemos é um show de uma atriz
com pleno domínio sobre o seu corpo. A sua expressão é insana. O seu andar é
desconforme. Ela parece funcionar numa velocidade própria. E o que falar da voz
dela. Ela se comunica com um timbre gutural, com dificuldades, como se ali
realmente tivesse alguém que durante muito tempo perdeu a oportunidade de
falar. Perdeu a sua voz. Não importa o período em que o longa foi lançado.
Lupita merece ser reconhecida na temporada de premiações. O mesmo vale para a
igualmente fantástica Elisabeth Moss. Mesmo com um menor tempo de tela, a
estrela de Mad Men e Handmaid Tale’s traduz o choque de identidade proposto por
Peele com uma insanidade ímpar, nos brindando com um par de cenas digna de
aplausos. Todos na verdade, em especial as crianças, se revelam peças
fundamentais na tentativa do diretor em trazer uma aura psicopática aos
antagonistas.
No fim, curiosamente, o melhor e
o pior de Us estão no roteiro. Se bem que pior é um adjetivo que de maneira
alguma deveria estar associado a esta obra. Magnífico enquanto alegoria
social\política, o argumento dá as suas escorregadas em alguns momentos. É
inegável que Jordan Peele gosta dos seus personagens. O diretor, no entanto,
abusa mais do que ideal das conveniências narrativas ao mantê-los seguros
demais. Em pelo menos dois momentos, os antagonistas parecem renegar a sua “natureza”
sem grande motivo, dando o tempo necessário para que a morte de um deles fosse impedida.
Outro ponto que incomoda são os alívios cômicos. Um dos maiores trunfos de
Corra!, o humor me pareceu deslocado aqui. Embora Peele mostre astúcia ao não
se levar tão a sério assim, algo fundamental neste tipo de produção, as piadas
são irregulares e fora de tom. Talvez o verdadeiro único senão de Us, porém,
esteja na reviravolta final proposta por Peele. Um plot-twist que faz sentido.
Isso é um fato. Nos ajuda também a entender melhor a protagonista. Outro fato.
Surge como uma interessante alternativa a realidade daqueles que foram
abandonados. Novo fato. Mas é mal desenvolvido. Na tentativa de proteger este
segredo, Peele simplesmente omite informações do espectador que trariam um quê mais inquietante ao arco de Adelaide, deixando uma lacuna que pode incomodar os mais
“sensíveis”. Uma brecha para a interpretação que, por outro lado, tem muito a insinuar
sobre a mensagem final de Us. Sobre a importância de olharmos para nós mesmos e
oferecermos a nossa melhor versão.
Um comentário:
Análise show👏👏👏.
Postar um comentário