domingo, 25 de agosto de 2019

Dez filmaços que completaram vinte anos em 2019 e merecem ser revisitados


O ano de 1999 foi espetacular para o Cinema. Eclética e diversificada, a safra ajudou a estabelecer algumas mudanças no paradigma da indústria, preparando o terreno para as transformações que tomariam conta do meio com a iminente chegada do novo século. Tivemos, por exemplo, o tenebroso A Bruxa de Blair, um sucesso global de baixíssimo orçamento que se tornou um exemplo de lucratividade (e qualidade) em Hollywood. Com O Sexto Sentido, o mundo conheceu M. Night Shyamalan e as suas inacreditáveis reviravoltas, algo que se tornou comum no gênero nos anos seguintes. O que falar então do ‘hit’ Matrix. Além de estabelecer um conceito estético\narrativo que viria a se tornar muito popular, as irmãs Wachowski causaram um impacto natural com os seus espetaculares efeitos visuais, resgatando uma veia pop que parecia ter se perdido dentro da indústria. Por falar em obras anárquicas, como não citar o cultuado Clube da Luta. Embora não seja propriamente um fã do longa, uma película que, na minha opinião, se acha mais inteligente do que é, o magnífico David Fincher capturou como poucos a essência de uma sociedade machista, agressiva e adoentada, tirando do papel um thriller provocante e instigante. Quando o assunto são as crônicas sociais, entretanto, poucos filmes superam o primoroso Beleza Americana. Um dos primeiros dramas realmente adultos que me lembro de ter assistido, o longa estrelado por um hoje defenestrado Kevin Spacey invadiu com profundidade a intimidade de uma família disfuncional corroída por conflitos reconhecíveis. Infidelidade, solidão, falta de comunicação, ambição, frustração, esses e outros temas embasam a preciosa obra de Sam Mendes, escancarando os “podres” por trás do ideal da família americana. No quesito disfuncionalidade, aliás, como não citar o comovente Tudo Sobre Minha Mãe. Para muitos a obra prima de Pedro Almodóvar, o longa toca em questões humanas ao narrar a jornada de uma mulher disposta a busca no passado a força para superar uma grande perda. E tivemos ainda o impactante thriller corporativo O Informante, a iluminada comédia-romântica Dez Coisas que eu Odeio em Você, o popular drama racial A Espera de Um Milagre, a sombria fantasia A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça, a marcante cinebiografia O Mundo de Andy, o pesado drama sobre homofobia Meninos Não Choram, a hilária animação Toy Story 2. Isso para não falar dos longas que não ganharam o devido crédito. Para fugir do lugar comum, neste artigo decidi então revisitar algumas destas produções, preparando uma lista com dez filmaços lançados em 1999 que merecem uma segunda chance. 


- Heróis Muito Loucos


Quem disse que X-Men reinaugurou o gênero super-heroico em 1999? Brincadeiras à parte, Heróis Muito Loucos decidiu subverter os clássicos arcos das HQ’s ao narrar as desventuras de um time de desajustados heróis que do dia para a noite se torna a improvável última esperança da sua cidade. Com um senso de humor\irreverência que, anos mais tarde, seria facilmente reconhecível em títulos como Kick-Ass, Guardiões da Galáxia, Deadpool a recente série The Boys, o longa estrelado por Ben Stiller, William H. Macy, Janeane Garofalo e Wes Studi conseguiu fazer jus ao espírito dos quadrinhos ao tirar do papel uma comédia de ação descompromissada e sagaz. Numa época em que os fãs do segmento viviam literalmente do passado, Heróis Muito Loucos representou um alento, uma “distração” à frente do seu tempo que ajudou a preparar o terreno para um ‘boom’ que viria a acontecer nos anos seguintes. Na época do lançamento, porém, o longa foi um fracasso comercial retumbante. Um daqueles títulos totalmente incompreendidos.

- Ecos do Além


Eclipsado pelo sucesso de O Sexto Sentido, Ecos de Além é um suspense instigante que merecia ter alçado voos maiores. Com o versátil Kevin Bacon na pele de um escritor obcecado por uma presença fantasmagórica, o longa dirigido por David Koepp (Janela Secreta) conseguiu transitar com fluidez entre o suspense psicológico e o paranormal num filme tenso e imersivo. Sem a intenção de se sustentar em reviravoltas, algo que se tornaria muito comum dentro do gênero após o ‘hit’ de M. Night Shyamalan, o diretor, com a ajuda de um insano Bacon, troca os sustos fáceis pela construção da atmosfera. Ecos do Além impacta ao se debruçar sobre a jornada emocional do protagonista, conseguindo criar um clima de claustrofobia que serve muitíssimo bem ao longa.

- Uma História Real


Reconhecido pelas suas produções surreais, David Lynch abraçou o naturalismo com inspiração no encantador drama Uma História Real. Com base numa história baseada em fatos, o cultuado realizador mostrou a sua face mais “acessível” ao nos presentear com um ‘road-movie’ íntimo e sensível, a história de um idoso disposto a cruzar os EUA no seu cortador de gramas na tentativa de reencontrar o seu adoentado irmão. Impulsionado pela tocante performance de Richard Farnsworth, soberbo ao capturar o misto resiliência, maturidade e arrependimento do seu Alvin, Lynch passeia pelo coração da américa num filme visualmente soberbo, dramaticamente sólido e narrativamente primoroso. É legal ver, aliás, a maneira com que o cineasta abraça uma linguagem ‘indie’ que viria a se tornar muito popular nos anos seguintes (Na Natureza Selvagem, Nebraska), uma abordagem melancólica\contemplativa sobre o tempo, o envelhecimento e a chance de redenção. Com direito a um fantástico desfecho, uma sequência final com a simplicidade que só os gênios são capazes de tirar do papel, Uma História Real é um drama encantador, uma obra que definitivamente merece ser reconhecida.

- Garota, Interrompida


Responsável por nos presentear com a melhor atuação da carreira de Angelina Jolie, Garota Interrompida escancara a posição de vulnerabilidade de uma mulher numa sociedade conservadora e machista. Com Winona Ryder na pele de uma jovem depressiva obrigada pelos pais a se internar num sanatório, o diretor James Mangold esbanjou sensibilidade ao invadir a realidade de um grupo de vítimas de um sistema insensível, incapaz de aceitar as diferenças. O “problema” aqui é tratado com a repressão, com o silenciamento. A partir das suas ricas personagens, o realizador é cuidadoso ao refletir sobre o impacto da imposição na identidade delas. Sem nunca reduzi-las ao rótulo de loucas, o argumento é cuidadoso ao permitir que cada uma delas ganhe um arco significativo, refletindo a partir dos dilemas das internas sobre a repressão parental, o vício em drogas, a crise de autoestima e especialmente sobre o poder de autodestruição do ser humano. Um tema que ganha força na monumental performance de Angelina Jolie que, através da sua expansiva Lisa, nos dá a chance de enxergar como alguns problemas podem ser potencializados pela insensibilidade humana. Com um fantástico elenco feminino (completam o time Elisabeth Moss, Whoopi Goldberg, Vanessa Redgrave, Clea DuVall e Brittany Murphy), algo bem raro para a época, Garota, Interrompida investiga a nossa falha natureza sob uma perspectiva densa, complexa e indiscutivelmente original. Um filme que precisa ser levado a sério.

- A Múmia


Uma das últimas grandes Aventuras lançadas por Hollywood, A Múmia é ainda hoje uma obra empolgante e impactante. Com efeitos visuais muito à frente do seu tempo, o longa estrelado por Brendan Fraser e Rachel Weisz criou uma combinação saborosa de ação, comédia e terror extremamente eficaz dentro da sua proposta. Vou além, eu enxergo muito da Fórmula Marvel em A Múmia. Sem se levar tão a sério assim, o diretor Stephen Sommers tirou do papel um filme para todos os públicos, uma aventura sólida com personagens cativantes, um afiado ‘timing’ cômico, um antagonista marcante (melhor do que muitos do MCU), sequências de ação em escala inimagináveis para época e um conjunto cênico digno dos melhores elogios. Em suma, um blockbuster maiúsculo, A Múmia é entretenimento inteligente e – como se não bastassem os seus inúmeros predicados – ainda ajudou a revelar a fantástica Rachel Weisz.

- Três Reis


Antes de se tornar um queridinho da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, David O. Russell ficou conhecido pelo seu temperamento. Um misto de inquietude e agressividade que se refletiu em algumas das suas primeiras produções, em especial no enérgico Três Reis. Nos bastidores, a estrela do filme George Clooney confirmou que esta foi uma das piores experiências profissionais da sua carreira. Segundo consta, em dado momento, o nível de estresse era tão grande que, após Clooney reclamar da postura do realizador com o elenco e a equipe de produção, Russell partiu para o embate, xingou, ameaçou e por muito pouco não desencadeou uma briga. Um clima explosivo que, positivamente, se refletiu sobre esta inusitada produção sobre a guerra no Iraque. Com George Clooney e Mark Wahlberg como soldados desertores à procura de um tesouro do ditador Saddam Hussein, David O. Russell nos brindou com um filme de assalto travestido de drama de guerra com personagens cativantes, um ritmo alucinante, diálogos engraçadíssimos e algumas peculiaridades que conferiram um charme especial ao longa. Uma produção empolgante e inigualável.

- Os Picaretas


Com Eddie Murphy e Steve Martin em grande forma, Os Picaretar é muito mais do que uma impagável comédia. É uma ode ao esforço de muitos cineastas na tentativa de levar as suas ideias para a tela grande. Numa afiada sátira sobre os bastidores de uma indústria muito fechada, o longa dirigido por Frank Oz debocha de tudo e de todos ao narrar as desventuras de um decadente diretor na tentativa de rodar um Sci-Fi trash com uma das maiores estrelas do cinema norte-americano. Como se não bastasse a química e o excepcional tempo de comédia da dupla de protagonistas, o realizador cativa ao capturar o esforço dedicado a uma inusitada produção, brincando com arquétipos e os percalços enquanto embarca no sonho dos seus personagens. Um filme recheado de sequências hilárias, em especial pela forma com que explora a insanidade da paranoica “vítima” deste grupo de cineastas. Por quê comedias como Os Picaretas caíram tanto em desuso...

- O Gigante de Ferro


Quando o assunto são filmes subestimados, entretanto, poucos foram (e são) tão subvalorizados quando o fantástico O Gigante de Ferro (1999). Um dos últimos grandes representantes da tradicional animação em 2-D, o longa dirigido por Brad Bird se revela uma pérola comovente, uma história de amizade entre um curioso garoto e um gigantesco robô com problemas de memória. A partir de traços lúdicos e recheados de personalidade, o diretor investe numa história doce, uma jornada afetuosa consagrada por personagens cativantes, pela delicadeza do texto, pelas magníficas cenas de ação e pela maneira com que explora as diferenças de escala entre os protagonistas. Além disso, como se não bastasse o esmero de Bird em estreitar os laços entre o pequeno garoto e o gigante robô, o argumento é enfático ao questionar as raízes bélicas norte-americanas, tirando um sagaz proveito do contexto histórico (a Guerra Fria) e do ‘background’ super-heroico ao preparar o terreno para um encantador último ato. Um desfecho arrepiante digno dos melhores filmes do segmento. Lançado num momento em que a animação digital já começava a dominar o mercado, O Gigante de Ferro foi tratado com um inigualável desdém. Hoje respeitado pela mídia especializada, na época do lançamento o filme não teve a mesma atenção, o que talvez explique o seu pífio desempenho nas bilheterias. Com orçamento de US$ 70 milhões, o longa faturou US$ 23 milhões ao redor do mundo, um desempenho injusto que de maneira alguma reflete o nível de qualidade desta produção.

- Chá com Mussolini


O Cinema Paradiso (1988) do saudoso Franco Zeffirelli, Chá com Mussolini é um filme agradável de se ver. E com muito a dizer sobre o momento em que vivemos. No papel, o realizador italiano leva a sua infância para a tela grande ao dar vida as suas memórias afetivas. Sob uma perspectiva infanto-juvenil, Zeffirelli causa um misto de fascínio e tristeza ao acompanhar a história de um grupo de aristocratas inglesa numa Itália recém-dominada pelo Fascismo e por Mussolini. Com um elenco extraordinário, Maggie Smith divide o set com Cher, Judi Dench e Joan Plowright, o cineasta italiano reflete sobre a sua criação a partir da sua peculiar relação com este grupo de mulheres. Embora tome óbvias liberdades poéticas, em especial no otimista clímax, Zeffirelli esbanja ferocidade ao traduzir a ascensão do fascismo, ao mostrar como um ambiente de amor, arte e cultura foi “demolido” pela nefasta mão do Estado. Vemos o fascismo em sua forma mais atual, travestido de nacionalismo, de coação, de repressão. E isso sob a óptica refinada de um diretor que sentiu na pele as sequelas deste período. Um belo filme.

- Magnólia


Por fim uma obra que merece ser revisitada, mas por motivos diferentes dos longas citados acima. Ao contrário deles, Magnólia desde a época de lançamento foi recebido com aclamação pela crítica e por parte do público. Me incomoda, porém, ver um dos relatos mais humanos das últimas décadas ter ficado com a alcunha de “filme difícil”. Por mais que as três horas de duração causem certa desconfiança junto ao espectador mais desavisado, Magnólia surge como uma crônica inesgotável sobre a vida e as nossas escolhas dentro de uma sociedade corrosiva. Impressiona como a primeira grande obra-prima de Paul Thomas Anderson segue viva. E atual. Usando o vaidoso mundo do showbiz como a “teia” que une os seus personagens, o cultuado cineasta reflete sobre como os erros do passado podem interferir no presente num filme sobre o peso da culpa, a dor do arrependimento e principalmente a angustiante busca por perdão. Com uma direção enérgica, uma montagem vigorosa e uma edição cirúrgica, PTA extrai o máximo do seu primoroso elenco na construção de uma crônica urbana que tem muito a dizer sobre os nossos vícios, falhas e pecados mais íntimos. Numa época em que temas como o machismo era bem pouco debatido em Hollywood, o realizador, por exemplo, coloca o dedo na ferida ao tratar a masculinidade frágil como a raiz de um círculo vicioso implacável capaz de corromper, agredir e destruir. Vemos os erros do passado se repetindo no presente. Vemos o estrago causado por eles. Vemos a solidão. Vemos a deterioração. Vemos o vício. Vemos os inocentes que tentam sobreviver a isso. Erroneamente reduzido por muitos a conhecida e debatida sequência da chuva de sapos, na minha opinião uma mera distração que só comprova a intenção do diretor em pelos menos aqui colocar um fim nestes círculos viciosos, Magnólia é o filme definitivo a sociedade que chegaria ao século XXI. Um retrato ora otimista, ora inclemente sobre o indivíduo urbano, os seus conflitos, os seus medos e a nossa incapacidade de reconhecer aquilo que parece bem evidente.

2 comentários:

Unknown disse...

👏👏👏👏👏 Perfeito. Suas escolhas, suas análises são apenas 10.

thicarvalho disse...

Valeu, obrigado pelo comentário.