sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Crítica | Upgrade

Tecnologia a serviço da Ação. Ou seria do Horror?

Mais uma das pérolas da Blumhouse Productions, Upgrade é um prato cheio para os fãs de um verdadeiro Sci-Fi. Uma obra capaz de abraçar a ação sem renegar a razão. Embora parta de um ‘plot’ com um inegável gosto de já vi isso antes, uma espécie de John Wick versão turbinada, o diretor e roteirista Leigh Whannell (de Jogos Mortais e Sobrenatural) brinca com as convenções do gênero ao nunca reduzir tudo a batida história de vingança. Por trás das insanas sequências de ação e do clima de mistério envolvendo a busca do protagonista existe um filme pensante, com reflexões instigantes sobre a nossa problemática relação com as novas tecnologias e uma visão de futuro muito mais complexa (e estilosa) do que a premissa parecia exigir. Uma produção com um crescente quê ambóguo capaz de transitar entre a Ação, o Sci-Fi e o Horror com enorme espontaneidade.


No papel, Upgrade nem parece tão inovador assim. Quantas vezes não vimos a história do homem atormentado disposto a tudo para fazer justiça com as próprias mãos contra aqueles que mataram a sua mulher\namorada? Inúmeras. A diferença, aqui, está no contexto. Por mais que o longa custe a engrenar, Leigh Whannell compensa ao nos levar para um futuro ‘hi-tech’ reconhecível. Tudo soa fascinante e possível. Mesmo limitado pelo baixo orçamento, o realizador faz um primoroso trabalho na construção deste mundo em que a inteligência artificial era algo natural no nosso dia a dia. Esqueça, por exemplo, os carros voadores de Blade Runner. Em Upgrade os veículos eram totalmente independentes, guiados por um sistema autônomo pretensamente infalível. A comida não era entregue por drones. Era “impressa” por uma avançada assistente digital. Os micro implantes eram uma realidade. A tecnologia estava a serviço do aprimoramento da vida humana. Inserido neste cenário, o traumatizado Grey (Logan Marshall-Green) decide dar uma chance para o experimento de um cultuado neurocientista após ver a sua esposa ser assassinada e ficar tetraplégico. Mesmo avesso às novas tecnologias, ele, movido pela raiva, decide se submeter ao procedimento na esperança de poder ir atrás daqueles que tiraram o grande amor da sua vida. O que ele não esperava, entretanto, era que a micro placa de processamento iria “incrementar” as suas habilidades, o transformando numa verdadeira máquina de matar.


Por mais que o Leigh Whannell deixe a desejar no que diz respeito ao aspecto dramático, em especial na construção do elo entre Grey e a sua querida esposa Asha (Melanie Valejjo), Upgrade compensa pela solidez com que abraça as outras facetas do seu roteiro. A começar pelo contexto Sci-Fi. Mais do que simplesmente construir um verossímil mundo futurista, o cineasta não foge da raia ao preencher a trama com indagações bem pertinentes sobre a nossa perigosa relação com as novas tecnologias. Sob o olhar de um espantado Grey, Whannell esbanja propriedade ao refletir sobre a relação quase que de dependência entre humanos e as suas “criações”. Sem nunca sacrificar o ritmo da obra, o realizador encontras as brechas necessárias para discutir a moralidade destes experimentos, as inúmeras possibilidades permitidas pela nanotecnologia e pela biotecnologia, a interferência da inteligência artificial, a perda da humanidade e principalmente a nossa frágil noção de controle sobre tudo isso. E isso sem nunca soar mais complicado do que deveria ser. A discussão aqui ganhar um ar mais enfático graças a objetividade com que o argumento aborda o tema. Não existe espaço para insinuações. É legal perceber como, à medida que a trama avança, a busca pelos assassinos perde importância. Existe algo maior por trás de tudo isso. E Whannell é contundente ao buscar nesses ingredientes a quebra de expectativa que o longa precisava para não soar como uma mistura de John Wick com Robocop: O Policial do Futuro. Nas entrelinhas, aliás, o realizador é igualmente cuidadoso ao tecer breves comentários sobre a vigilância, a imersão virtual e o perigo de se tratar a tecnologia como arma, culminando em vislumbres de futuro genuinamente aterrorizantes. Como não citar, por exemplo, toda a sequência no prédio ‘hacker’ e a maneira com a película traduz visualmente a dependência das “vítimas” da realidade virtual. Um cenário distópico, mas ainda assim reconhecível. 


Na verdade, tenho até as minhas ressalvas em tratar Upgrade como um clássico filme de ação. Por mais que Leigh Whannell mostre um virtuosismo absurdo na construção dos “automatizados” embates físicos, um balé insano marcado por ousados movimentos de câmera, uma coreografia de luta milimetricamente calculada e planos com um forte senso de agressividade, é interessante ver como ele volta às suas origens ao manter sempre um pé no horror. A violência é impressa em tons gráficos. O ‘gore’ é explorado com criatividade. Uma alternativa objetiva do longa traduzir o pessimismo da obra para com as novas tecnologias. Graças a humana performance Logan Marshall-Green, um homem pacato repentinamente transformado numa máquina de matar, Whannell esbanja sagacidade ao diluir a barreira que separa aquele que controla daquele que é controlado. Com gestos físicos de rara expressividade, o talentoso ator parece um fantoche em alguns momentos, conseguindo exprimir sentimentos conflitantes de maneira poucas vezes vista. Na transição para o último, inclusive, Upgrade rompe de vez a linha que separava os gêneros ao criar um mix muito próprio, culminando num desfecho impactante, denso e provocante. Sem querer revelar muito, embora a reviravolta em si esteja longe de ser surpreendente, as consequências em torno dela são, algo que casa brilhantemente com a proposta da produção.


Com uma assinatura visual vistosa, a fotografia estilizada de Stefan Duscio e o design de produção saltam aos olhos, Upgrade é o tipo de produção que entrega o que se esperava dela e muito mais. Leigh Whannell extrai o máximo da liberdade proposta por estúdios como a Blumhouse na construção de um Sci-fi travestido de filme de ação. Um filme que, mesmo sem reinventar a roda quanto às questões filosóficas levantadas, satisfaz o apetite daqueles que gostam de um entretenimento elétrico e ao mesmo tempo pensante.

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