sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Crítica | Anos 90

Somos tão jovens

Estreia do ator Jonah Hill na direção, Anos 90 é um filme importante. Numa época em que Hollywood anda tão seduzida pela estética escapista nostálgica da década de 1980, a estrela de Superbad: É Hoje (2007) invade uma realidade pouco revisitada num ‘coming of age movie’ honesto e extremamente reconhecível. Indo muito além do visual noventista proposto, que salta aos olhos graças ao enquadramento 4:3 e os efeitos de “envelhecimento” da imagem, Hill nos brinda com uma experiência cinematográfica espontânea, um retrato íntimo, realista e comovente sobre as agruras de uma geração disfuncional em busca de um nicho para chamar de seu. Por trás dos estereótipos e do aparente vazio existem garotos com conflitos sólidos, moldados pelo ambiente que os cercam, dispostos a construir nas ruas laços que lhe eram carentes nos seus respectivos núcleos familiares. Uma busca ao mesmo tempo perigosa e reveladora que guia a jornada dos erráticos protagonistas. 


A partir da perspectiva do ingênuo Steve (Sunny Suljic), um garoto solitário e introvertido que encontra num grupo de skatistas a ponte para o caótico mundo da adolescência, Anos 90 é impecável ao explorar algo inerente a esta geração: a sensação de pertencimento. Esqueça os clichês oitentistas. Esqueça a velha rixa entre os atletas e os nerds, entre os populares e os impopulares. Na década de 1990 tudo ficou mais cinza. Mais complexo. A cultura da “nichificação” tornou tudo mais difícil. A simples convivência deixou de ser um fator preponderante. Era preciso se sentir parte do seu grupo. Um processo complicado revelado com um misto de saudosismo e questionamentos sob a óptica de Jonah Hill. Nascido em 1983, o ator e também roteirista leva parte das suas experiências juvenis para tela ao tentar entender o que movia este grupo de jovens. A ideia é claramente desmistifica-los. Diluir a imagem ‘junkie’ tão frequentemente associada a nichos como os dos skatistas. Eles bebiam sim. Fumavam. Usavam drogas. Falavam besteiras. Eram jovens. Falhos. Não existe espaço para falsos moralismos aqui. Nem tão pouco filtros. É legal ver a franqueza com que Hill coloca o jovem Sunny Sulkic em situações nada condizentes com a sua idade. Essa era a realidade de muitos garotos daquela geração. Adolescentes sem referências, criados numa realidade complicada, com uma “liberdade” incompatível com a idade deles.


Como disse acima, porém, por trás da rebeldia existem problemas sólidos. E Jonah Hill sabe muito bem disso. Influenciado por nomes como Richard Linklater, o agora diretor é cuidadoso ao invadir a intimidade deste grupo. Através do olhar curioso de Steve, o cineasta esbanja sutileza ao estabelecer o contexto, ao situar o público quanto a realidade dos seus personagens. E isso sem precisar soar tão didático assim. Embora parte de uma mesma turma, o choque de realidade entre eles era claro e se refletia nas suas respectivas identidades. O que fica bem claro, por exemplo, quando conhecemos o intenso Ray (Na-Kel Smith). Tratado como o cara descolado, o skatista habilidoso capaz de conseguir prosperar na modalidade, ele esconde nesta carapuça um senso de humanidade fascinante. Estamos diante de alguém que sabe valorizar o que tem, que sente na pele o efeito dos seus atos. Um sentimento potencializado pela marcante performance do rapper Na-Kel Smith, magnífico ao em momentos chave da trama se revelar uma espécie de mentor, aquele com algo a dizer. Olho nele. O mesmo podemos dizer de Fuckshit (Olan Prennat) e Ruben (Gio Galicia). Por trás da rebeldia do primeiro e da inveja do segundo existem sentimentos mais complexos, existe o medo da perda, a solidão, a vulnerabilidade, a violência. Eles são frutos do meio em que vivem, filhos da disfuncionalidade parental. Ao longo dos enxutos 85 minutos de projeção, Hill é objetivo ao trabalhar o ‘background’ deles, ao expor a face que eles tentavam esconder a qualquer custo, conseguindo estreitar o elo entre eles ao mostrar que, no fim, todos ali estão num barco semelhante. Todos possuem algo realmente em comum.


É através da figura de Steve, no entanto, que Anos 90 consegue genuinamente capturar a essência desta época. Embora deixe escapar vez o outra um sentimento de nostalgia, principalmente quando resolve invadir o universo dos skatistas e capturar em takes recheados de afeto a rotina deles pelas ruas de Los Angeles, Jonah Hill abraça o realismo ao construir a jornada de amadurecimento do seu complexo personagem. Sem a intenção de dar respostas fáceis, o realizador é habilidoso ao em poucos minutos estabelecer os conflitos do garoto. Ao contrário dos demais, ele vivia uma realidade aparentemente funcional. Tinha uma casa confortável, uma mãe carinhosa (Katherine Waterston, excelente como de costume), um SNES, um quarto para chamar de seu. Não demora muito, porém, para a sensação de vazio se aflorar. Para os conflitos deles se concretizarem. Sob uma perspectiva madura, Hill é cuidadoso ao traduzir o efeito destes problemas na identidade de Steve, na sua formação, na busca por algo que sempre lhe faltou. Guiado pelo misto de ingenuidade, raiva e desconforto de Steve, o cineasta tira do papel um ‘coming of age movie’ intenso e intimista, um retrato cru sobre as descobertas da adolescência, a perda da inocência e o valor da amizade em tempos difíceis. Uma abordagem profunda incrementada pela impressionante performance de Sunny Suljic. Com treze anos na época das filmagens, o jovem ator é categórico ao interiorizar o turbilhão de emoções do seu Steve, ao imprimir em tela a sua repentina transformação, indo da introspecção pueril a ao grito de revolta estridente com rara propriedade.


Por outro lado, por mais que a proposta dinâmica\experimentalista de Jonah Hill seja bem-sucedida, Anos 90 sofre com a falta de acabamento. Em especial narrativo. Na ânsia de se concentrar nos mais jovens, o realizador desperdiça oportunidades ao subaproveitar o drama de alguns dos seus mais ricos personagens. Como não citar, por exemplo, o irmão ‘bully’ vivido pelo expressivo Lucas Hedges. De longe o personagem mais complexo da trama, ele surge ao mesmo tempo como a causa e a solução para os conflitos de Steve, mas nunca é tratado com o devido peso. Ele talvez seja a maior vítima da disfuncionalidade, mas, por opção de Hill, não passa de um elemento contextualizador dentro da trama. Outra que padece do mesmo problema é a figura materna vivida por Katherine Waterson. Por trás da aparentemente zelosa mãe existe (ou melhor, existiu) uma mulher jovem, igualmente errática, talvez relapsa. Hill parece confiar demais no poder de insinuação do seu texto quanto ao desenvolvimento dela, o que, aqui, soa um tanto quanto decepcionante. Nem a magnífica sequência final dela, quando, com clareza, ela finalmente reconhece a busca do seu estimado filho, é capaz de amenizar este sentimento de frustração.


Nada que no fim prejudique o efeito causado por Anos 90. Usando a sua câmera como uma verdadeira máquina do tempo, Jonah Hill nos leva para um período reconhecidamente complexo na tentativa de elucidar os tormentos de um nicho moldado por duros problemas sociais. Uma geração cansada de repetir padrões. Cansada de sofrer calada. Cansada de encarar o vazio. Mas totalmente despreparada para lidar com dilemas tão complexos.

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