Numa era em que blockbusters como Vingadores: Ultimato “dominam” (compreensivamente) as salas de cinema ao redor do mundo, alguns (muitos) outros filmes não tem a mesma sorte. A competição é grande, a sede pelo lucro também, o que impede tantos títulos de não conquistarem o mesmo espaço\atenção. Em muitos casos, inclusive, verdadeiras pérolas passam completamente despercebidas simplesmente pela falta de uma “janela” de exibição. Embora hoje, com o fortalecimento dos serviços de ‘streaming’, parte destas obras encontrem rapidamente o seu público, é inegável que inúmeras delas acabam por cair no esquecimento e passam longe de adquirir o status que mereciam. Aqui no Cinemaniac, aliás, eu sempre tento dar espaço para estas subestimadas (ou então esnobadas) produções. Longas que, sabe-se lá porque, se perdem em meio ao emaranhado de lançamentos e a um (ainda hoje) falho sistema de distribuição em solo brasileiro. Neste artigo, portanto, decidi preparar uma lista com dez filmes recentes que não ganharam o devido crédito junto ao público. E, melhor. Todos já disponíveis nos principais serviços de streaming.
- A Mula (2019)
E nada melhor do que abrir esta
lista com o aniversariante do dia. Do alto dos seus 89 anos recém-completados,
Clint Eastwood segue com uma visão de cinema muito altiva e independente. Com a
experiência (e consequentemente a liberdade) adquirida ao longo de uma
celebrada carreira, o legendário realizador não parece interessado em agradar. Algo
bem comum na Hollywood atual. Embora se assuma publicamente como um conservador,
um viés ideológico que costuma se refletir nas suas produções, Eastwood nunca
se deixou seduzir pelos clichês “republicanos”. Seus filmes sempre trazem um
algo a mais. Um comentário humano sobre a sociedade norte-americana. Sobre as
suas virtudes e principalmente falhas. Seus “heróis” são trôpegos e muitas
vezes traumatizados\amargurados. O que fica bem claro, por exemplo, no seu mais
recente projeto, o imperfeito A Mula. De volta aos holofotes após quase sete
anos apenas na direção dos seus projetos, o octogenário ator entrega um
thriller dramático - para o bem e para o mal - nada sutil. Com base na história
real de um idoso que, para ajudar a sua família num momento difícil, decide se
tornar uma mula (um transportador de drogas) para um cartel mexicano, Eastwood
não titubeia em criar um protagonista contraditório. Um homem sem filtros, um
tanto quanto misógino, que sempre colocou o trabalho como florista em primeiro
lugar. Num primeiro momento, confesso, o veterano realizador pesa a mão ao
traduzir a posição de isolamento do persuasivo Earl após uma longa vida de
ausências. Os conflitos do protagonista são introduzidos com pressa, os
diálogos são expositivos, a falta de refinamento narrativo chama a atenção. Tudo
soa muito cru e porque não superficial. Por mais que, na transição para o
clímax, Eastwood consiga reoxigenar o drama familiar com um par de sequências com
a sua delicada assinatura, ele deixa claro que em A Mula não existe espaço para
a redenção. O tempo, aqui, não pode ser comprado. O que passou passou.
Com o arco familiar em segundo plano, Clint Eastwood mostra a mesma falta de sutileza (desta vez como algo muito positivo) ao investigar o complexo Earl. Por trás do carisma e do senso de humor do protagonista existia um homem falho, relapso, infiel, vaidoso. O realizador não parece interessado em nos fazer gostar do personagem, mas sim compreendê-lo. A partir do comportamento na estrada de Earl podemos projetar o passado dele. Embora os sentimentos do veterano de guerra nunca sejam questionados, é legal ver como Eastwood desconstrói o rótulo do homem de família. O código “moral” de Earl é bastante maleável, o que só ajuda a expor a incoerência do personagem. Além disso, mesmo numa posição cada vez mais vulnerável dentro desta perigosa empreitada, ele exibe uma pretensa superioridade, como se fosse melhor do que os traficantes latinos. Um traço de inconsequência que, além de servir muito bem a trama, escancara a face mais racista de Earl. Nas idas e vindas do octogenário pelo coração da América, Eastwood, como de costume na sua filmografia, amplia o escopo da obra ao refletir também sobre o rumo das coisas nos EUA de Donald Trump. Tal qual o seu personagem, o realizador invade sem pudores o universo de Earl, escancarando o preconceito, o machismo e a desigualdade enraizada numa América que insiste em não se atualizar. O choque de geração proposto pelo longa, aliás, quase sempre traz um comentário ácido\distorcido sobre o presente, como se as coisas fossem mais simples num passado em que os homens brancos eram os “dominantes”. Isso, óbvio, sob a errática perspectiva de Earl, que, graças a sagacidade do experiente cineasta, só reforça o potencial crítico da obra. Um filme que, sabiamente, não parece interessado em julgar, nem tão pouco em ser condescendente. Somado a isso, embora o foco não esteja na investigação do agente vivido por um magnético Bradley Cooper, Clint Eastwood mantém o clima de tensão sempre à espreita, permitindo que o público tema pelo destino do seu humano (e por isso facilmente identificável) personagem. Mesmo com falhas e alguns excessos, o “desbunde” feminino na cena da festa me pareceu muito gratuito, A Mula fisga ao investir num protagonista incorrigível com uma visão de mundo um tanto ultrapassada. Um personagem, porém, com muito a dizer (ainda hoje) sobre o ambiente em que vivemos.
Onde Assistir: Google Play.
- Christopher Robin: Um
Reencontro Inesquecível (2018)
Uma ode a arte de procrastinar,
Christopher Robin: Um Reencontro Inesquecível resgata um grupo de clássicos
personagens infantis numa aventura doce, lúdica e genuinamente comovente. Sob a
delicada batuta de Marc Foster, voltando a trabalhar com o universo da
literatura infantil após o celebrado Em Busca da Terra do Nunca (2004), o longa
estrelado por Ewan McGregor abraça o fantástico com gosto ao projetar como
seria o retorno do agora adulto Christopher Robin para o “mundo” da sua
infância. Ao contrário do igualmente ótimo Adeus Christopher Robin (2017), que,
com sutileza e dramaticidade, investigou os tristes bastidores da criação deste
clássico atemporal, a produção com o selo Disney obviamente se concentra no
mundo mágico, nas desventuras de um pai ‘workaholic’ obrigado a enxergar uma
verdade esquecida há algum tempo através dos olhos dos seus velhos amigos de
infância. Ainda assim, Foster é habilidoso ao realçar o potencial dramático
desta releitura em ‘live-action,’ ao trazer para a trama conflitos e
sentimentos que marcaram a vida do verdadeiro Christopher Robin,
reinterpretando os fatos ao encontrar na pureza de Pooh, Tigrão, Bisonho,
Leitão e sua turma as respostas para os problemas da vida adulta. Inocência à
parte, Christopher Robin consegue com leveza e bom humor propor uma lúdica
reflexão acerca das nossas prioridades enquanto adultos, da maneira com que
complicamos algo que poderia ser tão simples, indo muito além dos clichês do
tipo não cale a criança interior ao exaltar ume estilo de vida mais pacato e
descomplicado. Uma mensagem de certa forma importante potencializada pelo
magnífico visual e pelos expressivos efeitos digitais. Numa proposta original,
Foster preza pelo peso e pela textura dos personagens de maneira poucas vezes
vista dentro do gênero, dando vida a “bonecos de pelúcia” carismáticos,
engraçados e naturalmente cativantes. Um predicado valorizado pelo marcante
trabalho da equipe de dublagem, entre eles os experientes Jim Cummings
(Pooh\Tigrão), Brad Garret (Bisonho) e Toby Jones (Abel). Muito mais do que uma
adaptação “caça-níqueis”, Christopher Robin: Um Reencontro Sentimento resgata a
magia de um verdadeiro clássico infantil com singeleza e muito coração.
Onde Assistir: Telecine Play.
- Hostis (2019)
Lançado diretamente via streaming
no Brasil, Hostis é um faroeste adulto sobre o peso da culpa na identidade de
um brutalizado grupo de homens. Dirigido pelo subestimado Scott Cooper, dos
excelentes Coração Louco (2010) e Tudo por Justiça (2014), o longa subverte o
formato clássico do gênero ao investir numa obra melancólica revisionista, uma
crônica sobre o impacto do genocídio e da violência nos indivíduos que
teoricamente deveriam presar pela lei. Com Christian Bale esbanjando
intensidade na pele de um cansado capitão do exército obrigado a fazer a
escolta de um outrora agressivo líder indígena, Hostis impacta ao colocar lado
a lado perseguidor e perseguido. Esqueça os gestos de bravura. Esqueça o
distorcido senso de justiça tão replicado pelo segmento. Cooper nos brinda com
um filme recheado de personagens quebrados, castigados pelo rastro de sangue
deixado num passado nem tão distante assim. Poucos títulos, na verdade,
conseguiram capturar de forma tão realística a crueldade do velho oeste
americano. Sem nunca atenuar a responsabilidade dos “yankees”, que, durante
este período, dizimaram grande parte dos nativos americanos, é interessante ver
a sagacidade do argumento em diluir as linhas que separam os heróis dos
bandidos, as vítimas dos algozes. Sob a perspectiva de uma sobrevivente de um
massacre causado por indígenas, a resiliente Rosalie (Rosamund Pike), Cooper
torna tudo mais complexo ao refletir sobre as traumáticas sequelas desta
“guerra”. O foco, aqui, não está somente nos homens da lei. Muito pelo
contrário. Cooper não titubeia em tratar a maior parte dos seus personagens
como vítimas de um nefasto sistema. No fim, após anos de massacres e mortes de
ambos os lados, tudo parece ter perdido o sentido. Um sentimento que dita o tom
de Hostis, um longa sóbrio e impactante que, embora derrape nas curvas da
condescendência no terço final, causa um desconforto natural ao investigar as
feridas causadas por um dos períodos mais sombrios da história norte-americana.
Onde Assistir: Telecine Play.
- Perigo Próximo (2016)
Há tempos queria ver Better Watch
Out (Perigo Próximo no Brasil). Uma daquelas obras totalmente subestimadas que
sequer ganhou lançamento por aqui. E que surpresa! Que quebra de expectativa!
Estamos diante de uma mistura de Halloween (1978), com Funny Games (1997) e
Esqueceram de Mim (1990). Um relato corrosivo, agressivo e crítico sobre os
efeitos da masculinidade tóxica. Levi Miller explode em cena de maneira
inesperada numa performance memorável. Óbvio que o filme tem os seus problemas,
algumas soluções não convencem tanto, mas o promissor diretor Chris Peckover
compensa ao usar um gênero tão popular para refletir sobre uma herança que
insiste em ser "transmitida" por gerações. E isso sob uma perspectiva
violenta, exagerada e positivamente insana. Um filme corajoso que, além de
tocar (as vezes literalmente) em incomodas (e reconhecíveis) feridas sociais
abertas, esconde na psicopatia do antagonista um desconcertante paralelo com a
(triste) realidade de muitas mulheres ao redor do mundo. Como é bom ver uma
obra instigante e angustiante que, mesmo sem renegar as suas raízes, consegue
valorizar o subtexto, escancarar os perigos em torno do machismo, da
superproteção parental e dos vícios alimentados pela nossa própria
sociedade.
Onde Assistir: Telecine Play.
- Oitava Série (2019)
Um retrato definitivo sobre os
anseios, incoerências e frustrações das novíssimas gerações, Oitava Série é o
tipo de filme que deveria fazer parte do currículo escolar tamanho o grau de
verossimilhança com que aborda o tema proposto. Sob uma perspectiva quase
naturalista, o aclamado longa dirigido por Bo Burnham causa um misto de
sensações ao narrar as desventuras de uma introspectiva jovem disposta a, na
última semana do Ensino Fundamental, colocar em prática as lições dos seus
pueris vídeos de autoajuda. Embora situado numa realidade bem atual, um
ambiente de conexões afetivas frágeis regido por redes sociais e pelo
“colorido” mundo do Instagram, é muito fácil para qualquer um se identificar
com a figura de Kayla (Elsie Fisher). Reconhecer os seus conflitos. As gerações
podem mudar, o contexto pode mudar, mas, no fim, as expectativas e medos em
torno da juventude não costumam ser tão diferentes assim. Aqui, logo de cara,
Burnham é impecável ao tornar tudo o mais universal possível. Todo mundo
conheceu\conhece uma Kayla. Todo mundo conheceu\conhece os conflitos dela. É
legal ver a sinceridade com que o realizador escolhe dar voz a tipos
frequentemente calados. Ela não era a mais popular, nem tão pouco a mais
bonita, nem a mais peculiar. Kayla era apenas mais uma na multidão, tentando se
enturmar, se autoafirmar, colocar em prática aquilo que sempre sonhou. Numa
sacada inteligente, entretanto, Burnham é astuto ao usar o exibicionismo
virtual dos dias de hoje para expor as contradições dela. Na tentativa de
correr contra o tempo perdido na busca por alguma experiência que tornasse essa
fase minimamente memorável, Kayla distorce as suas próprias lições. Teoria e
prática não caminham de mãos dadas aqui. Amadurecer é difícil e Bo Burnham
nunca subestima os passos em falso da sua protagonista.
O grande trunfo de Oitava Série,
entretanto, está na maneira com que o argumento investiga os “agentes
complicadores” enfrentados pelas novas gerações. Como se não bastassem as
pressões, as inseguranças, a falta de perspectiva sobre o futuro e as inúmeras
transformações físicas, Bo Burnham, nas entrelinhas, é bem menos compreensivo
ao colocar em cheque a rotina da garota em um ambiente “virtualizado”. Sem medo
de pesar a mão, o realizador causa um choque natural ao traduzir o vazio em
torno da vida dos jovens aqui mostrados, adolescentes de 13\14 anos dispersos,
fúteis e incapazes de terem uma interação social mais real. Por mais que,
obviamente, Burnham peque pelo exagero, as intenções não deixam de ser justas,
principalmente quando percebemos os perigos em torno de tamanho distanciamento.
Os laços soam propositalmente falsos. Não estamos diante de um ‘coming of age
movie’ sobre o valor da amizade. Apesar do genuíno esforço de Kayla em criar
elos tardios, o resultado só escancara a solidão e a toxicidade em torno destes
jovens. Um ambiente hostil potencializado pela primorosa performance de Elsie
Fisher. Não sei qual o grau de semelhança entre a identidade da protagonista e
da sua personagem, mas, ao longo das envolventes 1h e 30 min de película, a
impressão que fica é que estamos diante de uma não atriz. Elsie anda como uma
jovem introspectiva, age e reage como tal. Por mais que a estilosa condução de
Burnham torne tudo vistoso aos olhos do público, a fotografia de Andrew Wehde,
em especial, faz um primoroso uso da iluminação dos objetos cênicos (celular,
laptops) para realçar as expressões da adolescente, Oitava Série não parece
interessado em investir em filtros. A realidade, aqui, é factível. Kayla tem
espinhas, é irritante em alguns momentos, solitária em outros. E, no final das
contas, ela segue sendo ela. Não existem grandes lições, nem tão pouco grandes
mudanças. Tudo não passa de uma das mais complicadas fases das nossas vidas.
Onde Assistir: Google Play,
Looke.
- Terra de Minas (2017)
Se você achou Guerra ao Terror
(2009) enervante, se prepare, porque em Terra de Minas o grau de tensão supera,
por muito, o nível de angústia causado pelo aclamado longa da diretora Kathryn
Bigelow. Um dos indicados ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiros mais
subestimados dos últimos anos, a película dirigida por Martin Zandvliet mostra
as sequelas da Segunda Guerra Mundial sobre um novo prisma ao narrar as
desventuras de um grupo de soldados alemães obrigado pelas vitoriosas tropas
Aliadas a desarmar dois milhões de minas terrestres deixadas pelo Terceiro
Heich em solo dinamarquês. Sem a intenção de focar no lado político da coisa, o
denso filme causa um impacto natural ao mostrar que do outro lado do conflito
também haviam vítimas. Esqueça, portanto, o viés unidimensional. Numa opção
corajosa, Zandvliet confere um olhar humano aos personagens. É sabido que,
diante da iminente derrota, Hitler e o seus séquitos decidiram mandar para as
trincheiras militares cada vez mais novos. Muitos sem treinamento. A grande
maioria nem sabia pelo que estava lutando. Eles só queriam defender a sua
pátria. Neste sentido, Terra de Minas respeita a complexidade do tema ao nos
colocar diante de jovens totalmente despreparados para lidar com a situação.
Sob a óptica do raivoso e solitário Sargento Rasmussem (Roland Møller), é
interessante ver como, num primeiro momento, o argumento dá ao público o
benefício da desconfiança. Por trás dos rostos quase infantis existem soldados,
militares que, por motivos sabiamente não explorados, decidiram “abraçar” a
causa Nazista.
Não demora muito, porém, para
que, tal qual o veterano soldado dinamarquês, nós percebamos a realidade da
situação. Algo potencializado pelo contexto apresentado pelo longa. Obrigados a
desarmar minas por quilômetros e quilômetros da costa de dinamarquesa, o grupo,
largado a sua própria sorte, passa a ter que conviver não só com a fome e o
cárcere, mas principalmente com o perigo da morte iminente. Um cenário de
extrema vulnerabilidade brilhantemente explorado pelo roteiro. Diante de
tamanha pressão, conhecemos melhor a identidade dos prisioneiros, a intenções
deles, a ingenuidade, os seus medos e anseios. Martin Zandvliet, em especial, é
particularmente cuidadoso ao traduzir o misto de desespero e pavor nos olhos
dos personagens, desarmando o público ao expor a face mais vil e punitiva da
guerra. No fim, de fato, todos saem perdendo. Independentemente da bandeira que
você empunhou durante o conflito. Embora recheado de soluções previsíveis,
daquelas que o espectador mais atento consegue antecipar à distância, Terra de
Minas contorna todos estes pequenos deslizes narrativos ao revelar o
desconcertante destino de muitos e muitos jovens ao redor da Europa durante um
dos períodos mais sombrios da nossa história.
Onde Assistir: HBO GO.
- Alfa (2018)
Um dos filmes mais subestimados
de 2018, Alfa oferece o que se espera dele com grandiosidade, sentimento e
indiscutível requinte técnico. Dirigido por Albert Hughes (O Livro de Eli),
que, num trabalho competente, emula o estilo 300 (2008) de Zack Snyder com
expressivos cenários digitais e um vistoso uso da câmera lenta, o longa
estrelado pelo talentoso Kodi Smit-McPhee parte de uma esperta premissa para projetar
como teria se iniciado o estreito laço de fidelidade\companheirismo entre
homens e os seus queridos caninos. Narrativamente, Alfa segue uma linha bem
basicona. Nada muito novo para quem cresceu assistindo a títulos como Caninos
Brancos (1991), Iron Will (1994) e Lassie (1994). A diferença é que, aqui, a
história de amizade entre um jovem e o seu cão\lobo acontece há vinte mil anos.
Por mais que o longa custe a engrenar, o primeiro ato se arrasta numa
redundante tentativa de explicar o já explicado, Hughes compensa ao criar um
filme de sobrevivência com pedigree, respeitando o instinto dos personagens ao
acompanhar a jornada de um garoto e a sua tentativa desesperada de voltar para
casa. Com cenários digitais impressionantes, enquadramentos dignos de moldura e
um constante (e crescente) senso de ameaça, o realizador mostra ambição ao
investir num filme silencioso, em alguns momentos contemplativo, mas nunca
carente de tensão. Embora as conveniências narrativas sejam óbvias, o argumento
é esperto o bastante para criar obstáculos naturais, os utilizando como o
agente catalisador para a construção do elo entre lobo e adolescente. À medida
que a trama avança, inclusive, Hughes é perspicaz ao (sem grandes
justificativas) nos permitir compreender melhor o comportamento do canino, algo
que, em mãos erradas, poderia soar extremamente sentimentalista. Simples em sua
proposta, ousado em sua execução, Alfa é uma aventura com um forte senso de
entretenimento que acerta ao substituir a pieguice que tomou conta do gênero
por uma honesta história de amizade entre seres “diferentes”.
Onde Assistir: HBO GO.
- Você Nunca Esteve Realmente
Aqui (2018)
Como sobreviver a brutalidade que
cerca o nosso dia a dia? Essa é a pergunta que fica martelando nas nossas
cabeças ao longo dos impiedosos noventa minutos do imprevisível Você Nunca
Esteve Realmente Aqui. Após causar um choque natural ao refletir sobre a
psicopatia juvenil no desconcertante drama Precisamos Falar Sobre Kevin (2011),
a talentosa cineasta Lynne Ramsey volta a provocar o público com um thriller de
ação visceral, agressivo e soberbamente contextualizado. O Taxi Drive (1976) da
nova geração, o longa estrelado por um introspectivo Joaquin Phoenix subverte
as nossas expectativas ao colocar o dedo na ferida de uma forma bem mais
autoral. No papel, Você Nunca Esteve Realmente Aqui traz uma premissa
reconhecível. Seguimos os passos de um veterano de guerra traumatizado que,
após ser contratado para resgatar uma adolescente de um bordel de luxo, se vê
em uma perigosa conspiração capaz de ameaçar todos as poucas pessoas que ele
ainda se importava. Não espere, porém, mais uma obra do tipo Busca Implacável
(2008) e\ou O Protetor (2014). A ação é um mero detalhe aos olhos do Ramsey.
Sob uma perspectiva muito corajosa, potencializada pela primorosa montagem e
pelo insinuante roteiro, a realizadora se recusa a tratar o rastro de sangue
deixado pelo protagonista como o elemento brutal da sua obra. Por diversas
vezes, com extrema sofisticação estética\narrativa, Lynne Ramsey surpreende ao
simplesmente não “banalizar” a explosão de ódio do protagonista. Num take “a
ameaça” está à espreita, no outro ela já está abatida. E quando decide colocar
o brutalizado homem em ação, ela o faz da maneira menos plástica possível,
realçando o misto de força, caos e inconsequência do acuado mercenário. Ele não
tem realmente nada a perder.
Na verdade, a violência aqui é
muito mais social. Os personagens não estão “quebrados” porque perderam alguém.
Os traumas são muito mais pesados e enraizados. Temos guerra, tráfico humano,
exploração sexual infantil, violência doméstica, corrupção... Sem a intenção de
dar respostas vazias sobre as chagas sociais citadas acima, Ramsey “brinca” de
fazer cinema ao, quase sempre em ‘insights’ visuais
angustiantes, estabelecer a dor dos seus personagens. A realidade, aqui, é
impiedosa e não escolhe idade. Logo cedo Joe, o mercenário, e Nina, a
resgatada, se acostumaram a enxergar o pior do ser humano. Unidos pelos seus
traumas, os dois criam um laço quase que instantâneo aos olhos do público, o
que só impulsiona o senso de urgência da trama. Um predicado, obviamente,
valorizado pela soberba performance de Joaquin Phoenix, que, num dos melhores
trabalhos da sua carreira, cria um anti-herói recheado de nuances sentimentais.
Um homem ora amoroso, ora frio. Ora hostil, ora piedoso. Ora instável, ora
obstinado. Uma figura no limite da razão que, graças a complexidade narrativa
de Ramsey, protagoniza algumas das sequências mais poderosas dos últimos anos. Uma
cena deste filme, em especial, é de uma beleza improvável e desconcertante.
Como se ali, e só ali, pudéssemos realmente enxergar a índole do homem
escondido em sua claustrofóbica casca. Impressiona, aliás, a capacidade da
diretora de, em meio a crueza das sequências mais agressivas, nos brindar com
alguns planos íntimos de rara sensibilidade, conseguindo investigar o estado de
espírito dos seus combalidos personagens com extrema profundidade e inegável
perícia visual. No fim, porém, a pergunta persiste. Como sobreviver a brutalidade
presente no nosso dia a dia...
Onde Assistir: Amazon Prime.
- Desobediência (2018)
Logo no seu brilhante monólogo de
abertura, uma reflexão poderosa sobre o que nos define enquanto ser humano,
Desobediência abraça a complexidade do tema proposto ao investigar as sequelas
causadas por uma relação homossexual numa comunidade de mentalidade retrógrada.
Fazendo um primoroso uso do elemento religioso e das rígidas tradições da
cultura judaica, o sensível diretor Sebastian Lelio reúne duas das melhores
atrizes em atividade na construção de um romance ambientado num cenário rígido,
lúgubre e repressor. De volta para casa para o velório do seu pai, um
respeitado rabino, a independente fotógrafa Ronit (Rachel Weisz) surge como a
ovelha perdida do rebanho, uma mulher empoderada incapaz de abaixar a cabeça
para os dogmas defendidos pelo seu progenitor. Do outro lado da equação está
Esti (Rachel McAdams), uma professora submissa que, com a fuga da sua melhor
amiga, decidiu casar com um aspirante à pastor (e velho amigo) Dovid
(Alessandro Nivola). A partir deste insinuante triângulo “sentimental”, Lelio
é comedido ao estabelecer a real conexão entre os personagens, os
motivos por trás de tamanho afastamento e o efeito causado por esta “presença”
na pacata rotina do casal. Num primeiro momento, é interessante ver como o
realizador chileno explora os arquétipos das protagonistas. Sem precisar dizer
muito, o afiado roteiro estabelece com clareza o elo entre elas, as feridas não
cicatrizadas. Como se não bastasse a instantânea química entre Weisz e McAdams,
Lelio é cuidadoso ao reconstruir esta relação esfriada pelo tempo. Ele se
concentra na expressão de timidez\desconforto das atrizes. No (tolo) esforço das duas em não
reacender uma chama até então enfraquecida. Quando o olhar de Ronit e Esti se
cruzam, independentemente do ambiente em que elas estão inseridas, é como se
fogos de artifício tomasse conta das duas. Existe amor, existe paixão, existe
euforia, existe alívio.
Sem um pingo de pressa, Sebastian
Lelio é igualmente habilidoso ao desenvolver também os perigos em torno desta
fulminante reaproximação. À medida que o vínculo afetivo entre Esti e Ronit é
restabelecido, a posição das duas dentro daquela controladora sociedade é
colocada em cheque. Neste contexto, a partir dos obstáculos impostos as duas, o
realizador mostra categoria ao discutir a questão da liberdade diante do
retrocesso e da repressão. Com sutileza e uma leve dose de cinismo, encarada
com entusiasmo pela rebelde personagem de Rachel Weisz, Lelio coloca o dedo na
ferida ao discorrer sobre a delicada posição de mulheres como Esti, tipos
submissos, com medo de reagir ao que se espera deles, obrigados a sacrificar os
seus próprios anseios em prol do bem comum. Por mais que a conexão entre ela e
Ronit seja óbvia, a lacuna que as separa também é evidente. À essa altura,
jogar tudo para o alto não era mais uma opção. Com maturidade e consciente da
complexidade temática, Lelio não titubeia em invadir a intimidade do trio, em
ir além do silêncio do luto, extraindo a tensão da iminência da crise. As
consequências podem ser sérias e o diretor sabe bem disso. Na transição para o
último ato, inclusive, Lelio eleva o nível de suspense ao explorar o temor do
público, ao trabalhar com medos reconhecíveis. O resultado é um soberbo último
ato, um desfecho comovente principalmente pela delicadeza com que o roteiro resolve
os conflitos sem descaracterizar os seus personagens. Impulsionado pelas
soberbas performances de Rachel McAdams e Rachel Weisz, que, mesmo diante de
tipos tão diferentes, interiorizam os conflitos pessoais de Esti e Ronit com
similar intensidade, Desobediência parte de um cenário específico para discutir
o reconhecível drama de duas mulheres pressionadas a não se assumirem como são.
Um filme silencioso, íntimo e denso que, embora tenha os seus momentos mais
lentos, compensa ao confiar na humanidade dos seus personagens.
Onde Assistir: Looke.
- Temporada (2019)
Por fim, nada melhor do que falar
sobre uma produção do nosso país. Cinema brasileiro em sua máxima potência,
Temporada surge como um verdadeiro antidoto para a grave crise de empatia que
tomou conta do nosso país. Sob uma perspectiva naturalista, o longa dirigido
por André Novais Oliveira se revela uma crônica cativante sobre um Brasil que
existe e resiste. Sobre aqueles que ajudam a manter a roda girando com
resiliência, sufoco e muita presença de espírito. Ambientado em Minas Gerais,
mas poderia ser em qualquer outra região suburbana do país, o argumento
assinado pelo próprio diretor segue os passos de Juliana (Grace Passô), uma
agente de combate à dengue que vê a sua rotina ganhar um outro sentido quando é
chamada para preencher uma vaga do serviço público. Em busca da independência
perdida, ela é acolhida com afeto pelo novo grupo de colegas, redefinindo as prioridades da sua vida enquanto experimenta o ônus e o bônus desta situação.
Com muito a dizer sobre a realidade dos seus personagens, Oliveira causa um
misto de desconforto e fascínio ao desconstruir a sua tímida protagonista aos
olhos do público. Num primeiro momento, seguindo uma lógica cinematográfica,
Juliana parece apenas mais um rosto na multidão. Não demora muito, porém, para
Temporada mostrar as suas reais intenções. O foco, aqui, está no cidadão comum,
nos seus anseios, frustrações, expectativas. O pacato é colocado em evidência. À
medida que a trama avança, percebemos a complexidade em torno da jornada de
Juliana. Impulsionada pela magnética presença de Grace Passô, o realizador
esbanja humanidade ao se debruçar sobre os conflitos dela. Uma mulher em busca
de empoderamento, da felicidade consumida por uma relação traumática. Sob uma
perspectiva otimista, Oliveira é sutil ao falar sobre amor próprio, ao
arquitetar a jornada de libertação e autoafirmação desta mulher reconhecível,
refletindo sobre o valor da amizade e do companheirismo em tempos nebulosos. E
isso com uma honestidade digna de elogios, escancarada através de personagens
como o extrovertido Russão (Russo Apr) e o gentil Hélio (Hélio Ricardo). Com
uma pureza contagiante, Temporada pode ser um filme lento em alguns momentos,
mas bastam alguns poucos minutos para mergulharmos neste cenário
tão acessível, tão tipicamente brasileiro, tão acolhedor.
Onde Assistir: Netflix.
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