Com uma franqueza revigorante,
Alguém Especial é um daqueles raros filmes na atualidade que quando se encerram
deixam um gostinho de quero mais. Embora eu esteja longe do público
alvo do longa, a cativante comédia romântica escrita e dirigida por Jennifer
Kaytin Robinson sobra na turma ao narrar sem filtros e também pudores as
desventuras sentimentais de uma jovem mulher às avessas com um rompimento
repentino. Por mais que a mais nova produção original Netflix siga uma linha
narrativa bem basicona, a realizadora compensa ao verdadeiramente valorizar a
representatividade proposta pela trama, ao dar uma voz moderna, urbana e
genuinamente feminina as suas três empoderadas protagonistas. O resultado é um ‘girlmance’
(se é que esse termo existe) saboroso, uma obra com diálogos vigorosos, um
elenco entrosadíssimo e muito (mais muito) estilo.
No papel, Alguém Especial nem
traz nada de tão novo assim. Uma jornalista independente (Gina Rodriguez) vê o
seu namoro de novo anos chegar ao fim após receber um convite para se mudar à
trabalho. Disposta a superar a dor da inesperada separação, ela decide recrutar
as suas duas melhores amigas para uma daquelas noitadas inesquecíveis. A partir
deste ‘plot’ enxuto, mas reconhecível, Jennifer Kaytin Robinson estreia na
direção com muita energia e domínio sobre a proposta espontânea defendida pela produção.
Tudo soa muito natural aqui. A dinâmica entre as personagens, o comportamento
de cada uma delas. Não se trata de um filme que busca propositalmente quebrar
regras ou padrões sociais consolidados pelo gênero. Nem tão pouco o tipo de
produção que parece querer pintar o retrato da mulher moderna. A ideia é tornar
tudo o mais atual possível. Sem grandes pretensões. E parece que realmente
estamos diante de três amigas de longa data, tamanho o grau de intimidade
impresso em tela. Por mais que os predicados visuais da obra saltem aos olhos, vide
o descolado design de produção “millennial” e a expressiva fotografia neonizada
de Autumn Eakin, o foco de Robinson sabiamente está na construção do elo entre
as protagonistas, na rotina de três mulheres (volto a frisar) empoderadas dispostas
a romper com os clichês do tipo O Diário de Bridget Jones. Uma obra que, por
sinal, eu gosto muito e me fez enxergar o segmento de maneira totalmente
diferente. Mas que envelheceu, sejamos bem francos.
Neste sentido, Alguém Especial
traz um inegável frescor ao gênero ao captar com sinceridade os anseios de
muitas mulheres dos grandes centros urbanos. Jenny, Blair (Brittany Snow) e
Erin (Dewanda Wise) são o que são. E gostam do que são. Elas experimentam,
erram, falam besteira, acertam, tentam. Num segmento que durante muito tempo
foi “dominado” (entenda dirigido) por homens, é muito legal ver uma comédia
romântica tratar de maneira tão descomplicada os anseios femininos das suas
personagens, os seus medos, inseguranças, prazeres e expectativas. Me senti
vendo uma abordagem realmente nova sobre o tema em questão, uma perspectiva
mais reconhecível que no auge do gênero era inimaginável. Esqueça o clichê do
pote de sorvete com moletom. Esqueça o clichê da rivalidade entre mulheres. Esqueça
o clichê do “que será de mim sem ele”. Aqui é na amizade, no companheirismo e
porque não no álcool que elas buscam curar as suas respectivas feridas
sentimentais. Impulsionada pela extraordinária química entre as atrizes, Jennifer
Kaytin Robinson consegue ir além do vínculo entre as três ao não reduzir tudo
ao rompimento de Jenny. Embora ela faça parte do arco central do longa, a
realizadora é cuidadosa ao em nenhum momento diminuir a importância das suas amigas,
conseguindo assim ampliar o escopo sobre os dilemas afetivos destas mulheres
independentes, fortes, mas humanas.
São por filmes assim, aliás, que
eu defendo a luta por representatividade na direção. Por mais que não esteja
entre aqueles que acreditam que um diretor não possa ter sensibilidade
feminina, o fato de termos uma mulher no comando de títulos como Alguém
Especial só confere mais veracidade ao projeto, mais peso aos diálogos, mais identidade
às personagens. Não existe espaço para arquétipos aqui. Para personagens
retilíneos e unidimensionais. Por trás da resiliência de Jenny existe dor e tristeza.
Por trás do empoderamento de Erin existe medo e frustração. Por trás da
maturidade de Blair existe carência e impulso. Com fluidez e poder de síntese,
Robinson consegue desenvolver as nuances das suas personagens, ir além do que
elas tentam mostrar, o que só ajuda a estreitar os laços entre as amigas. Algo,
obviamente, valorizado pelas radiantes performances de Gina Rodriguez (imparável
como a verborrágica Jenny), DeWanda Wise (engraçadíssima como a sarcástica
Erin) e Brittany Snow (muito à vontade como a “recatada” Blair). Somado a isso,
é interessante ver a maneira gradativa com que o longa investiga o quão intenso
foi o romance que surge como o agente catalisador da história. Ainda que o
talentoso LaKeith Stanfield soe um tanto quanto distante em alguns momentos,
Robinson compensa ao investir em estilosos flashbacks, entrelaçando a trama com
as boas e as más lembranças de Jenny ao longo dos nove anos de namoro. Mais uma
vez é possível sentir o elo entre eles e consequentemente os motivos por trás
das contraditórias reações de Jenny. O diferencial, porém, é que enquanto as
sequências entre as amigas no tempo presente são leves e espontâneas, as cenas do
casal são mais romantizadas e cinematográficas. Com uma simples mudança na
palheta de cores e enquadramentos mais vistosos, Robinson mostra recursos
estéticos ao se aprofundar o bastante na relação sem se dispersar demais, realçando
o valor das (boas) experiências vividas ao no fim das contas propor ainda uma
pertinente reflexão sobre fins e recomeços.
No embalo da sua singular trilha
sonora, a sequência ao som da saudosa cantora Selena é de uma subversão engraçadíssima,
Alguém Especial causa um misto de fascínio e alegria ao verdadeiramente romper
com alguns clichês de um gênero que durante muito tempo foi tão conservador. E
isso sob uma perspectiva plural, natural e feminina, o que só ajuda conferir
uma aura autoral ao projeto.
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