terça-feira, 30 de abril de 2019

Crítica | Alguém Especial (Someone Great)

O fim e o recomeço

Com uma franqueza revigorante, Alguém Especial é um daqueles raros filmes na atualidade que quando se encerram deixam um gostinho de quero mais. Embora eu esteja longe do público alvo do longa, a cativante comédia romântica escrita e dirigida por Jennifer Kaytin Robinson sobra na turma ao narrar sem filtros e também pudores as desventuras sentimentais de uma jovem mulher às avessas com um rompimento repentino. Por mais que a mais nova produção original Netflix siga uma linha narrativa bem basicona, a realizadora compensa ao verdadeiramente valorizar a representatividade proposta pela trama, ao dar uma voz moderna, urbana e genuinamente feminina as suas três empoderadas protagonistas. O resultado é um ‘girlmance’ (se é que esse termo existe) saboroso, uma obra com diálogos vigorosos, um elenco entrosadíssimo e muito (mais muito) estilo. 


No papel, Alguém Especial nem traz nada de tão novo assim. Uma jornalista independente (Gina Rodriguez) vê o seu namoro de novo anos chegar ao fim após receber um convite para se mudar à trabalho. Disposta a superar a dor da inesperada separação, ela decide recrutar as suas duas melhores amigas para uma daquelas noitadas inesquecíveis. A partir deste ‘plot’ enxuto, mas reconhecível, Jennifer Kaytin Robinson estreia na direção com muita energia e domínio sobre a proposta espontânea defendida pela produção. Tudo soa muito natural aqui. A dinâmica entre as personagens, o comportamento de cada uma delas. Não se trata de um filme que busca propositalmente quebrar regras ou padrões sociais consolidados pelo gênero. Nem tão pouco o tipo de produção que parece querer pintar o retrato da mulher moderna. A ideia é tornar tudo o mais atual possível. Sem grandes pretensões. E parece que realmente estamos diante de três amigas de longa data, tamanho o grau de intimidade impresso em tela. Por mais que os predicados visuais da obra saltem aos olhos, vide o descolado design de produção “millennial” e a expressiva fotografia neonizada de Autumn Eakin, o foco de Robinson sabiamente está na construção do elo entre as protagonistas, na rotina de três mulheres (volto a frisar) empoderadas dispostas a romper com os clichês do tipo O Diário de Bridget Jones. Uma obra que, por sinal, eu gosto muito e me fez enxergar o segmento de maneira totalmente diferente. Mas que envelheceu, sejamos bem francos.


Neste sentido, Alguém Especial traz um inegável frescor ao gênero ao captar com sinceridade os anseios de muitas mulheres dos grandes centros urbanos. Jenny, Blair (Brittany Snow) e Erin (Dewanda Wise) são o que são. E gostam do que são. Elas experimentam, erram, falam besteira, acertam, tentam. Num segmento que durante muito tempo foi “dominado” (entenda dirigido) por homens, é muito legal ver uma comédia romântica tratar de maneira tão descomplicada os anseios femininos das suas personagens, os seus medos, inseguranças, prazeres e expectativas. Me senti vendo uma abordagem realmente nova sobre o tema em questão, uma perspectiva mais reconhecível que no auge do gênero era inimaginável. Esqueça o clichê do pote de sorvete com moletom. Esqueça o clichê da rivalidade entre mulheres. Esqueça o clichê do “que será de mim sem ele”. Aqui é na amizade, no companheirismo e porque não no álcool que elas buscam curar as suas respectivas feridas sentimentais. Impulsionada pela extraordinária química entre as atrizes, Jennifer Kaytin Robinson consegue ir além do vínculo entre as três ao não reduzir tudo ao rompimento de Jenny. Embora ela faça parte do arco central do longa, a realizadora é cuidadosa ao em nenhum momento diminuir a importância das suas amigas, conseguindo assim ampliar o escopo sobre os dilemas afetivos destas mulheres independentes, fortes, mas humanas.


São por filmes assim, aliás, que eu defendo a luta por representatividade na direção. Por mais que não esteja entre aqueles que acreditam que um diretor não possa ter sensibilidade feminina, o fato de termos uma mulher no comando de títulos como Alguém Especial só confere mais veracidade ao projeto, mais peso aos diálogos, mais identidade às personagens. Não existe espaço para arquétipos aqui. Para personagens retilíneos e unidimensionais. Por trás da resiliência de Jenny existe dor e tristeza. Por trás do empoderamento de Erin existe medo e frustração. Por trás da maturidade de Blair existe carência e impulso. Com fluidez e poder de síntese, Robinson consegue desenvolver as nuances das suas personagens, ir além do que elas tentam mostrar, o que só ajuda a estreitar os laços entre as amigas. Algo, obviamente, valorizado pelas radiantes performances de Gina Rodriguez (imparável como a verborrágica Jenny), DeWanda Wise (engraçadíssima como a sarcástica Erin) e Brittany Snow (muito à vontade como a “recatada” Blair). Somado a isso, é interessante ver a maneira gradativa com que o longa investiga o quão intenso foi o romance que surge como o agente catalisador da história. Ainda que o talentoso LaKeith Stanfield soe um tanto quanto distante em alguns momentos, Robinson compensa ao investir em estilosos flashbacks, entrelaçando a trama com as boas e as más lembranças de Jenny ao longo dos nove anos de namoro. Mais uma vez é possível sentir o elo entre eles e consequentemente os motivos por trás das contraditórias reações de Jenny. O diferencial, porém, é que enquanto as sequências entre as amigas no tempo presente são leves e espontâneas, as cenas do casal são mais romantizadas e cinematográficas. Com uma simples mudança na palheta de cores e enquadramentos mais vistosos, Robinson mostra recursos estéticos ao se aprofundar o bastante na relação sem se dispersar demais, realçando o valor das (boas) experiências vividas ao no fim das contas propor ainda uma pertinente reflexão sobre fins e recomeços.


No embalo da sua singular trilha sonora, a sequência ao som da saudosa cantora Selena é de uma subversão engraçadíssima, Alguém Especial causa um misto de fascínio e alegria ao verdadeiramente romper com alguns clichês de um gênero que durante muito tempo foi tão conservador. E isso sob uma perspectiva plural, natural e feminina, o que só ajuda conferir uma aura autoral ao projeto.

Nenhum comentário: