quinta-feira, 2 de maio de 2019

Crítica | O Peso do Passado

Maquiagem e pretensão

No papel, O Peso do Passado tinha tudo para funcionar. Uma história de vingança com potencial. Uma diretora reconhecidamente talentosa. Uma protagonista estrelar disposta a sair da sua zona de conforto. Bastaram as primeiras imagens de uma quase desfigurada Nicole Kidman ganharem as redes sociais, por exemplo, para o ‘hype’ em torno do projeto chegar aos trending topics. Nem só de grife, porém, pode viver uma obra. Por mais que a transformação física da atriz realmente chame a atenção, Destroyer (no original) se revela um suspense oco, carente de tensão e inexplicavelmente pretensioso. Embora com um ‘plot’ promissor em mãos, Kusama investe numa obra frouxa e mal montada, uma produção que, na ânsia de parecer mais complexa do que realmente é, falha enquanto filme de vingança, enquanto thriller policial e acima de tudo enquanto drama familiar. No fim, o melhor do filme está realmente na performance de uma “corroída” Nicole Kidman, que, num trabalho físico e intenso, entrega muito mais do que o problemático argumento oferece a ela. 




Entender o fracasso de O Peso do Passado é muito simples. Basta ver o quão vazia é a personagem de Nicole Kidman, a detetive Erin Bell. Num primeiro momento, diante da expressão quase esquelética da protagonista, fica claro que estamos diante de uma mulher quebrada, raivosa, com sérios problemas para ao menos parecer sociável. Visualmente, ela funciona. O impacto é quase que instantâneo. Não demora muito, porém, para percebermos que é basicamente nisso que o roteiro vai se escorar. Ao longo das absurdas duas horas de projeção, com uma hora e meia esse ‘plot’ poderia ser facilmente resolvido, Karyn Kusama (prejudicada pelo argumento assinado por Phil Hay e Matt Manfredy) não consegue em momento algum explorar as nuances dramáticas da sua protagonista. Parece que estamos diante de um mero arquétipo. Uma figura vazia, explosiva, que anda se arrastando, mas sem nos dar motivos para tal comportamento. Na ânsia de proteger os segredos em torno do passado dela, mais a frente comento sobre isso, a realizadora impede que a sua personagem cresça, encare de frente os seus traumas, as suas culpas, tornando tudo extremamente raso aos olhos do público. Diante disso, como disse acima, resta a uma áspera Nicole Kidman conseguir exprimir na sua atuação o que o roteiro só resolve realmente entregar lá pelo último ato. E mesmo com um material tão raso em mãos, a atriz causa um desconforto natural ao abraçar a decadência da sua Erin, o desapego, a completa falta de vaidade, a frieza. É devido a ela que o longa não se revela um fiasco definitivo.


O que realmente frustra em O Peso do Passado, porém, é o seu pretensioso roteiro. Ao optar por uma estrutura narrativa não linear, que atrapalha bem mais do que serve a trama, Karyn Kusama vê o seu filme afundar diante da tentativa de atrelar a tensão aos eventuais ‘twists’ pensados pelo script. O que, como ficou bem claro acima, só prejudica o arco de Erin e a construção de todos os demais personagens do longa. Transitando entre o passado e o presente sem qualquer pulso narrativo, a realizadora não se mostra capaz em momento algum de trabalhar os elementos que tornariam a reação da protagonista compreensível. A começar, por exemplo, pelo terrível antagonista vivido por Toby Kebbell. Uma figura caricata, nada ameaçadora e com pouquíssimo tempo de tela que destrói qualquer chance de a obra prosperar enquanto filme de vingança. O mesmo, aliás, podemos dizer do interesse amoroso vivido pelo talentoso Sebastian Stan. Por mais que a química entre ele e Nicole Kidman funcione, Kusama trata o elo entre os dois de maneira superficial, se concentrando mais uma vez na imagem em detrimento do texto. Os diálogos entre os dois, em especial, são de um vazio absurdo, o que nos deixa em sinceras dúvidas quanto a real conexão da dupla. Um problema, indiscutivelmente, potencializado pela péssima montagem. Em filmes de vingança, é comum que a perda por trás de tamanho ódio seja logo estabelecida nos seus primeiros minutos. É importante o espectador compartilhar o sentimento da protagonista, se sentir parte da sua jornada. Até em títulos que brincam com este recurso narrativo, como o cultuado Amnésia (2000), a “chama” que move o personagem é estabelecida o mais rapidamente possível. Em O Peso do Passado isso nunca acontece. O filme joga “sujo” com o espectador. Promete algo que nunca vem. A montagem não linear trunca, omite, esconde, mas adiciona bem pouco ao arco de Erin. Sobra então um jogo de gato e rato insosso e previsível que, no momento em que deveria justificar as suas opções narrativas, entrega um desfecho criminosamente anticlimático.


Somado a isso, O Peso do Passado é também um retrocesso na filmografia de Karyn Kusama. Reconhecida pelos seus consistentes trabalhos na TV e no Cinema, a realizadora entrega um thriller policial com cara de telefilme, escancarando as evidentes limitações orçamentárias em torno do projeto ao investir num ‘mise en scene’ genérico e carente de tensão. E ela tinha muito mais a oferecer, o que fica bem claro na empolgante sequência do assalto ao banco. Enfim, com personagens vazios, uma montagem confusa e uma protagonista extremamente subaproveitada, O Peso do Passado é um filme de vingança anêmico que decepciona ao valorizar a “maquiagem” em detrimento do conteúdo. O esforço de Nicole Kidman merecia ser recompensado com uma película melhor.

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