sábado, 9 de março de 2019

Crítca | Distúrbio

Cinema em sua mais pura essência

Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça. Como bem afirmava o cultuado diretor brasileiro Glauber Rocha, isso é basicamente tudo que um diretor precisa para tirar um filme do papel. Óbvio que, no auge da revolução tecnológica do cinema, é incrível ver o virtuosismo de grandes realizadores com as inimagináveis possibilidades oferecidas, por exemplo, pelo CGI, ou pelos monstruosos equipamentos utilizados praticamente inventados por nomes como James Cameron. Alguns, porém, seguem precisando de bem pouco para criar. O que fica bem claro, em especial, quando nos deparamos com títulos do quilate de Distúrbio. Um dos realizadores mais cultuados do cinema norte-americano na atualidade, Steven Soderbergh aprontou das suas mais uma vez ao rodar um longa-metragem usando “apenas” a câmera de um IPhone. Embora não seja uma novidade dentro do cinema ‘indie’, Sean Baker (Projeto Flórida) ganhou relevância num projeto semelhante chamado Tangerine (2015), o eclético diretor da trilogia 11 Homens e um Segredo entrega um suspense psicológico praticamente irretocável, uma obra vistosa e angustiante capaz de testar as expectativas do público como poucos representantes do gênero conseguiram nos últimos anos. 



Muito em função, é verdade, da fidelidade de Steven Soderbergh ao cinema de autor. Embora já tenha produzido e\ou dirigidos sucessos de público, estamos diante de um realizador que não “sacrificou” a sua liberdade dentro da indústria. Seus filmes são realmente seus. Seus projetos prezam pelo padrão de qualidade. Seu nome se tornou sinônimo de “filme\série a ser visto”. Mesmo longe do considerado cinema ‘mainstream’, ele permanece nos holofotes graças a originalidade dos seus projetos, seja um ‘road-movie’ sobre strippers masculinos (Magic Mike), seja um transloucado filme de assalto (Logan Lucky), seja um agressivo thriller com toques de horror (Distúrbio). É difícil projetar qual será o seu próximo passo, algo que fica bem claro quando nos deparamos com este projeto. Com o prestígio para trabalhar com nomes como a extraordinária atriz Claire Foy, Soderbergh resolve tocar em temas urgentes e espinhosos dentro da nossa sociedade ao narrar a jornada Sawyer (Foy), uma executiva independente “presa” a um problemático relacionamento passado. Convivendo com as sequelas deste período, ela decide buscar ajuda numa clínica psicológica, sem sequer desconfiar que estaria recomeçando ali o seu maior pesadelo.


Fazendo um primoroso uso dos planos subjetivos logo nos primeiros minutos do longa, Steven Soderbergh esbanja sagacidade ao alimentar os mistérios em torno desta marcante personagem. Enquanto se concentra no aspecto íntimo, o realizador é enfático ao tocar numa verdadeira ferida da nossa sociedade, refletindo sobre a vulnerabilidade feminina sob uma perspectiva realística, tensa e naturalmente incômoda. Sem querer revelar muito, o argumento mostra propriedade ao explorar a dolorosas sequelas causadas por um ‘stalker’, indo além do drama humano ao expor os traumas de Swayer e ao construir os mistérios em torno da posição da protagonista. Soderbergh é cuidadoso ao, mesmo sem nunca desacredita-la, levantar dúvidas sobre o seu estado emocional, sobre a sua reação aos fatos. O suspense psicológico, aqui, é explorado de maneira insinuante, permitindo que o público tenha uma participação ativa dentro da história. Algo que é sempre muito bem-vindo dentro do gênero. Distúrbio, porém, só melhora no momento em que, tal qual Swayer, nos sentimos presos dentro de um lugar ao qual não pertencemos. À medida que a verdade começa a ser esclarecida, Soderbergh desfila a sua genial visão de mundo ao buscar numa verdadeira brecha jurídica a base para a construção de um ‘plot’ sufocante. Como de costume na sua obra, o realizador amplia o escopo da trama ao tocar em temas ainda mais abrangentes, questionando o desdém para com a saúde mental nos EUA dentro de um contexto inacreditavelmente real. Nas entrelinhas, inclusive, o longa é feroz ao revelar os interesses escusos por trás de diagnósticos precoces e precipitados, ampliando a carga de tensão ao trazer para a história um ardiloso novo tipo de antagonista.


Não se engane, porém, com esta aparente dispersão narrativa. No momento em que o suspense psicológico parecia não ter muito mais a oferecer, Steven Soderbergh não titubeia em abraçar o Horror com unhas e dentes, reaquecendo as engrenagens da sua obra ao tirar do papel um violento jogo de gato e rato. Um predicado valorizado não só pela maneira com que o argumento assinado por Jonathan Bernstein e James Greer explora os complexos personagens de apoio, mas principalmente pela soberba performance de Claire Foy. Na pele de uma mulher vítima dos seus medos, a talentosa atriz britânica cria uma personagem repleta de nuances, ora engraçada e comunicativa, ora independente e persuasiva, ora desequilibrada e fragilizada. Estamos diante de uma figura real, o que ajuda explicar o crescente elo entre público e personagem. Somado a isso, dentro do implacável clímax, Foy mostra porque é considerada uma das atrizes mais promissoras da sua geração, capturando o misto de ferocidade, inteligência e senso de sobrevivência da sua Sawyer de forma espantosa.


É impossível não finalizar este texto, porém, sem deixar de elogiar o virtuosismo estético de Steven Soderbergh. Também responsável pela cinematografia do longa, o cineasta extrai o máximo dos recursos oferecidos por este popular aparelho “telefônico”, brincando com filtros, com a mobilidade e com efeitos na construção do seu engenhoso (e claustrofóbico) ‘mise en scene’. Com enquadramentos fechados, um enervante uso da câmera na mão e algumas soluções visuais extremamente criativas (a cena do surto é brilhante), Soderbergh usa os predicados estéticos a serviço da construção da atmosfera, do clima de tensão, realçando o sentimento de inércia e desconforto enfrentado por muitas mulheres com a seriedade que o tema merece ser tratado. Um dos filmes mais subestimados de 2018, Distúrbio traz o melhor do cinema de Soderbergh ao comprovar a facilidade que ele tem para transitar sobre temas duros e realísticos sem em nenhum momento sacrificar o senso de entretenimento da sua obra. Os fãs de suspense agradecem.


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