Escrever sobre cinema hoje e em
dia é uma missão pouco recompensadora. Sejamos bem francos, com o (merecido)
‘boom’ dos canais de cinema no Youtube e dos grandes sites de cultura pop, a
“audiência” dos espaços menores\independentes nunca estiveram tão baixas. É
duro dedicar o seu tempo a um texto, se preocupar em fazer uma análise
profunda, em ir além do filme em si e ver o seu artigo alcançar 50, 100,
150 views. Na atual conjuntura, sinceramente, mais do que isso eu já estou até comemorando.
Talvez por isso, inclusive, eu venha percebendo uma queda no número de textos
envolvendo certos gêneros, àqueles que costumeiramente nunca atraíram a atenção
do grande público. O ‘blockbuster’ não só dominou as salas de cinema, mas, em
muitos casos, os espaços dedicados a análise da Sétima Arte. Aqui no
Cinemaniac, entretanto, desde a origem do blog em 2008, a intenção sempre foi
dar voz a esse tipo de segmento. Aos filmes clássicos, ao Western, ao cinema
‘indie’... É revigorante ir além do ‘mainstream’ e ora vez ser surpreendido com
uma pequena produção independente, com obras subestimadas ou até então com um
título completamente esquecido. Uma sensação que eu pude experimentar nos
últimos dias ao assistir três preciosos documentários: o angustiante vencedor
do Oscar Free Solo, o curioso Desenterrando Sad Hill e o revelador 78\52. Três
obras que merecem ser vistas. Vamos a eles.
- Free Solo (2019)
Uma poderosa experiência
imagética, Free Solo invade a psique de um insano alpinista ao entender o que
move um homem a desafiar a morte com tamanha franqueza. Com base no incrível
feito do montanhista Alex Honnold, o longa dirigido pela dupla Jimmy Chin e Elizabeth
Chai Vasarhelyi consegue ir muito além da vertiginosa (e um tanto quanto
suicida) escalada ao ouvir a voz do documentado. Sob uma perspectiva intimista,
a dupla de realizadores instiga num primeiro momento ao desvendar a mente de
Alex, ao evidenciar os medos, o modo de pensar, a visão de mundo e o grau de
obsessão que o levou a escalar o temido El Capitain sem qualquer material de
proteção. Isso mesmo, sem cordas, ganchos, capacetes (totalmente dispensáveis
em caso de queda nestas circunstâncias) e demais apetrechos típicos do esporte.
Sem um pingo de condescendência, o doc é objetivo ao mostrar o melhor e o pior
deste homem. Tanto a sua face mais tranquila\engajada\sincera, quanto no seu
lado mais egoísta\insensível\frio. Embora ao longo da primeira metade do longa
Chin e Vasarhelyi se distanciem exageradamente da perigosa empreitada de Alex,
principalmente quando o foco está na complicada relação amorosa entre ele e a “azarada”
Sanni McCandless, é legal ver como o período de treinos e dúvidas sobre a
escalada se transforma numa ponte para que enxerguemos melhor a intimidade do
alpinista. Conhecemos a infância dele, as conflitantes visões sobre o seu núcleo
familiar, uma sugerida herança genética, seus medos, seus anseios e o
sentimento que o movia durante o doloroso processo de preparação. A intenção,
aqui, não é oferecer respostas fáceis, mas expor um pouco da verdade de Alex e
aquilo que o motivava.
Algo que, indiscutivelmente, faz
todo o sentido quando o longa chega nos seus vinte minutos finais. E ai, meu
amigo, é cinema em sua máxima potência. Por mais que Jimmy Chin e Elizabeth
Chai Vasarhelyi entreguem um documentário que, em sua totalidade, se revele
visualmente poderoso, com direito a expressivos planos abertos, impactantes
planos fechados e um nível de detalhismo absurdo, o longa atinge um padrão de
realismo poucas vezes visto na Sétima Arte ao narrar a escalada de Alex. Ao
longo das quase quatro horas de uma inacreditável subida, a dupla de diretores
extrai o máximo de adrenalina da situação em si ao nos brindar com um ‘mise en
scene’ primoroso, uma variada mistura de planos e enquadramentos brilhantemente
montados. Se por um lado, no aspecto íntimo da coisa, o doc sacrifica em alguns
momentos a naturalidade em prol de algumas situações mais “pensadas” que o
ideal, por outro, quando se concentra na subida em si, os dois acertam em cheio
ao deixar os fatos falarem por si só. Até porque qualquer interferência fora do
planejamento poderia representar um erro e a provável morte do alpinista, algo
que, aliás, se torna um interessante tema nas mãos dos preocupados
documentaristas. Com câmeras milimetricamente posicionadas, a dupla consegue não
só escancarar a imponência deste quase que intransponível obstáculo natural, como
também o desespero da equipe em solo e a absoluta concentração de Alex durante
a escalada, entregando alguns dos takes mais vertiginosos da história recente
do cinema. Sem querer revelar muito, as cenas em que Chin e Vasarhelyi decidem
filmar Alex de cima para baixo são magistrais, principalmente pela ousadia
estética deles em capturar a vulnerabilidade do alpinista diante do misto de
rochas e árvores que o esperavam em caso de uma eventual queda. Um registro
monumental sobre o esforço de um homem comum em busca daquilo que ele
considerava a grandeza, Free Solo começa dispersivo, um tanto quanto errático,
mas, tal qual Alex Honnold, atinge o seu objetivo com louvor e muita perícia.
- Desenterrando
Sad Hill (2017)
Um relato genuíno sobre o amor
pela Sétima Arte, Sad Hill Hunearthed é um documentário emocionante envolvendo o impacto
de uma obra do quilate de Três Homens em Conflito na rotina de um grupo de
apaixonados pelo filme. Com depoimentos marcantes, entre eles os do ator Clint
Eastwood, do compositor Ennio Morricone e do vocalista do Metálica James
Hatfield, o longa revigora ao narrar a iniciativa de três fãs espanhóis
para recuperar um cenário real do filme, o icônico cemitério de Sad Hill. Palco
de uma das cenas mais tensas da história do Western, o inesquecível duelo final
entre Tuco, Blondie e Angel Eyes, o abandonado cenário volta a tomar forma
perante os nossos olhos ao longo da obra, servindo como o pano de fundo para um
resgate desta quinquagenária pérola. O grande trunfo do doc está na sua
sagacidade em revisitar a obra de Sérgio Leone. Indo além da comovente
iniciativa do grupo de moradores da região, o longa consegue entrevistas
preciosas, revela curiosidades, os bastidores da produção e reverencia a
genialidade de Sérgio Leone.
Como não ser pego de surpresa,
por exemplo, quando descobrimo que o diretor italiano usou o exército espanhol
na realização do filme, ou então que por falha de comunicação ele precisou explodir
e construir uma ponte duas vezes porque alguém acendeu o pavio ligado a
dinamite antes que as câmeras estivessem gravando. Com uma fotografia belíssima
e uma sagaz dinâmica narrativa, aos poucos o doc se transforma numa ode ao
poder integrador do cinema, a magia por trás das "imagens em
movimento" e o efeito delas na identidade daqueles que a troco de
"nada" resolveram desenterrar um cemitério. Enfim, Desenterrando Sad
Hill se revela uma celebração universal da Sétima Arte, um relato comovente
sobre como em algumas horas um filme\trilha sonora\cena podem ajudar a
transformar a identidade de um indivíduo. Numa época em que tudo parece tão
descartável, como é bom ver um clássico do porte de Três Homens em Conflito
receber uma homenagem tão digna.
- 78\52 (2017)
Algumas cenas transcendem a
barreira de um filme. Se tornam mais icônicas do que as próprias obra em que
estão inseridas. Uma das mais assustadoras sequências da história do cinema, o
assassinato no chuveiro de Psicose (1960) é dissecado com profundidade e
dinamismo no indispensável documentário 78\52. Embora o longa se repita em
alguns momentos, o diretor e roteirista Alexandre O. Phillipe não só reverencia
a genialidade técnica\narrativa de Hitchcock com sagacidade, como também
investiga os significados por trás do maior 'plot twist' da história do cinema,
ajudando a tornar o filme ainda mais impactante. Como se não bastasse a grande
revelação inicial, boa parte da cena em si foi gravada pela dublê de corpo de
Janet Leigh, a modelo Marli Renfro, o doc reúne grandes nomes do cinema (entre
eles Peter Bogdanovich, Guillermo Del Toro, Jamie Lee Curtis e Elijah Wood)
para extrair o máximo dos quase 10 min de cena. O resultado é muito
interessante e só ajuda a reforçar a face mais provocadora de Hitchcock.
Além de propor um estudo de
enquadramentos, objetos cênicos e das metáforas visuais pensadas pelo diretor, 78\52
nos permite enxergar uma fração da inventividade deste mestre do suspense. Em
Psicose, fica claro que Hitchcock resolve apontar a sua mira para o espectador,
embutindo uma série de questões morais\sociais na obra ao falar sobre o frágil
senso de segurança da época, a explosão da violência, o voyeurismo, a repressão
sexual e o peso de um crime na rotina de uma mulher. O 'insight' de Peter Bogdanovich
sobre a relação do explícito assassinato de Marion Crane com a perda de espaço
das mulheres em Hollywood nos anos 50 e 60 é genial, como se ali, o próprio
Hitchcock, estivesse filmando a "morte" do protagonismo feminino na
indústria da época. Outro ponto que agrada é a forma com que o documentário estuda
o impacto cultural de Psicose e da cena do chuveiro na cultura
pop\cinematográfica. Embora isso já fosse bem claro, é sempre bom ver um
diretor muito à frente do seu tempo, entregando algo que viria a mudar o cinema
de horror.
E para quem quer aprender um
pouco mais sobre o aspecto técnico, sobre ângulos, planos, enquadramentos e os
“truques” utilizados na construção fílmica, 78\52 se revela uma verdadeira aula
de cinema ministrada por um dos grandes gênios da Sétima Arte. Mesmo sob a
perspectiva de terceiros, é possível entender melhor o seu estilo, a sua forma
de contar histórias, o seu virtuosismo, as suas referências e os seus mais
espertos truques narrativos. Existia uma fórmula na obra de Hitchcock, um
padrão revigorado de tempos em tempos que ficou ainda mais claro para mim ao
longo da película. Por mais que se alongue no terço final, 78\52 é um
documentário recompensador para qualquer fã de cinema. Um estudo de cena
minucioso que tem muito a dizer não só sobre Alfred Hitchcock e a complexidade
de Psicose, mas sobre o decisivo trabalho de alguns dos seus grandes parceiros
na confecção deste clássico inesgotável.
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