segunda-feira, 11 de março de 2019

Vamos falar sobre documentários com Free Solo, Desenterrando Sad Hill e 78\52



Escrever sobre cinema hoje e em dia é uma missão pouco recompensadora. Sejamos bem francos, com o (merecido) ‘boom’ dos canais de cinema no Youtube e dos grandes sites de cultura pop, a “audiência” dos espaços menores\independentes nunca estiveram tão baixas. É duro dedicar o seu tempo a um texto, se preocupar em fazer uma análise profunda, em ir além do filme em si e ver o seu artigo alcançar 50, 100, 150 views. Na atual conjuntura, sinceramente, mais do que isso eu já estou até comemorando. Talvez por isso, inclusive, eu venha percebendo uma queda no número de textos envolvendo certos gêneros, àqueles que costumeiramente nunca atraíram a atenção do grande público. O ‘blockbuster’ não só dominou as salas de cinema, mas, em muitos casos, os espaços dedicados a análise da Sétima Arte. Aqui no Cinemaniac, entretanto, desde a origem do blog em 2008, a intenção sempre foi dar voz a esse tipo de segmento. Aos filmes clássicos, ao Western, ao cinema ‘indie’... É revigorante ir além do ‘mainstream’ e ora vez ser surpreendido com uma pequena produção independente, com obras subestimadas ou até então com um título completamente esquecido. Uma sensação que eu pude experimentar nos últimos dias ao assistir três preciosos documentários: o angustiante vencedor do Oscar Free Solo, o curioso Desenterrando Sad Hill e o revelador 78\52. Três obras que merecem ser vistas. Vamos a eles. 


- Free Solo (2019)


Uma poderosa experiência imagética, Free Solo invade a psique de um insano alpinista ao entender o que move um homem a desafiar a morte com tamanha franqueza. Com base no incrível feito do montanhista Alex Honnold, o longa dirigido pela dupla Jimmy Chin e Elizabeth Chai Vasarhelyi consegue ir muito além da vertiginosa (e um tanto quanto suicida) escalada ao ouvir a voz do documentado. Sob uma perspectiva intimista, a dupla de realizadores instiga num primeiro momento ao desvendar a mente de Alex, ao evidenciar os medos, o modo de pensar, a visão de mundo e o grau de obsessão que o levou a escalar o temido El Capitain sem qualquer material de proteção. Isso mesmo, sem cordas, ganchos, capacetes (totalmente dispensáveis em caso de queda nestas circunstâncias) e demais apetrechos típicos do esporte. Sem um pingo de condescendência, o doc é objetivo ao mostrar o melhor e o pior deste homem. Tanto a sua face mais tranquila\engajada\sincera, quanto no seu lado mais egoísta\insensível\frio. Embora ao longo da primeira metade do longa Chin e Vasarhelyi se distanciem exageradamente da perigosa empreitada de Alex, principalmente quando o foco está na complicada relação amorosa entre ele e a “azarada” Sanni McCandless, é legal ver como o período de treinos e dúvidas sobre a escalada se transforma numa ponte para que enxerguemos melhor a intimidade do alpinista. Conhecemos a infância dele, as conflitantes visões sobre o seu núcleo familiar, uma sugerida herança genética, seus medos, seus anseios e o sentimento que o movia durante o doloroso processo de preparação. A intenção, aqui, não é oferecer respostas fáceis, mas expor um pouco da verdade de Alex e aquilo que o motivava.


Algo que, indiscutivelmente, faz todo o sentido quando o longa chega nos seus vinte minutos finais. E ai, meu amigo, é cinema em sua máxima potência. Por mais que Jimmy Chin e Elizabeth Chai Vasarhelyi entreguem um documentário que, em sua totalidade, se revele visualmente poderoso, com direito a expressivos planos abertos, impactantes planos fechados e um nível de detalhismo absurdo, o longa atinge um padrão de realismo poucas vezes visto na Sétima Arte ao narrar a escalada de Alex. Ao longo das quase quatro horas de uma inacreditável subida, a dupla de diretores extrai o máximo de adrenalina da situação em si ao nos brindar com um ‘mise en scene’ primoroso, uma variada mistura de planos e enquadramentos brilhantemente montados. Se por um lado, no aspecto íntimo da coisa, o doc sacrifica em alguns momentos a naturalidade em prol de algumas situações mais “pensadas” que o ideal, por outro, quando se concentra na subida em si, os dois acertam em cheio ao deixar os fatos falarem por si só. Até porque qualquer interferência fora do planejamento poderia representar um erro e a provável morte do alpinista, algo que, aliás, se torna um interessante tema nas mãos dos preocupados documentaristas. Com câmeras milimetricamente posicionadas, a dupla consegue não só escancarar a imponência deste quase que intransponível obstáculo natural, como também o desespero da equipe em solo e a absoluta concentração de Alex durante a escalada, entregando alguns dos takes mais vertiginosos da história recente do cinema. Sem querer revelar muito, as cenas em que Chin e Vasarhelyi decidem filmar Alex de cima para baixo são magistrais, principalmente pela ousadia estética deles em capturar a vulnerabilidade do alpinista diante do misto de rochas e árvores que o esperavam em caso de uma eventual queda. Um registro monumental sobre o esforço de um homem comum em busca daquilo que ele considerava a grandeza, Free Solo começa dispersivo, um tanto quanto errático, mas, tal qual Alex Honnold, atinge o seu objetivo com louvor e muita perícia.


- Desenterrando Sad Hill (2017)


Um relato genuíno sobre o amor pela Sétima Arte, Sad Hill Hunearthed é um documentário emocionante envolvendo o impacto de uma obra do quilate de Três Homens em Conflito na rotina de um grupo de apaixonados pelo filme. Com depoimentos marcantes, entre eles os do ator Clint Eastwood, do compositor Ennio Morricone e do vocalista do Metálica James Hatfield, o longa revigora ao narrar a iniciativa de três fãs espanhóis para recuperar um cenário real do filme, o icônico cemitério de Sad Hill. Palco de uma das cenas mais tensas da história do Western, o inesquecível duelo final entre Tuco, Blondie e Angel Eyes, o abandonado cenário volta a tomar forma perante os nossos olhos ao longo da obra, servindo como o pano de fundo para um resgate desta quinquagenária pérola. O grande trunfo do doc está na sua sagacidade em revisitar a obra de Sérgio Leone. Indo além da comovente iniciativa do grupo de moradores da região, o longa consegue entrevistas preciosas, revela curiosidades, os bastidores da produção e reverencia a genialidade de Sérgio Leone.


Como não ser pego de surpresa, por exemplo, quando descobrimo que o diretor italiano usou o exército espanhol na realização do filme, ou então que por falha de comunicação ele precisou explodir e construir uma ponte duas vezes porque alguém acendeu o pavio ligado a dinamite antes que as câmeras estivessem gravando. Com uma fotografia belíssima e uma sagaz dinâmica narrativa, aos poucos o doc se transforma numa ode ao poder integrador do cinema, a magia por trás das "imagens em movimento" e o efeito delas na identidade daqueles que a troco de "nada" resolveram desenterrar um cemitério. Enfim, Desenterrando Sad Hill se revela uma celebração universal da Sétima Arte, um relato comovente sobre como em algumas horas um filme\trilha sonora\cena podem ajudar a transformar a identidade de um indivíduo. Numa época em que tudo parece tão descartável, como é bom ver um clássico do porte de Três Homens em Conflito receber uma homenagem tão digna.

- 78\52 (2017)


Algumas cenas transcendem a barreira de um filme. Se tornam mais icônicas do que as próprias obra em que estão inseridas. Uma das mais assustadoras sequências da história do cinema, o assassinato no chuveiro de Psicose (1960) é dissecado com profundidade e dinamismo no indispensável documentário 78\52. Embora o longa se repita em alguns momentos, o diretor e roteirista Alexandre O. Phillipe não só reverencia a genialidade técnica\narrativa de Hitchcock com sagacidade, como também investiga os significados por trás do maior 'plot twist' da história do cinema, ajudando a tornar o filme ainda mais impactante. Como se não bastasse a grande revelação inicial, boa parte da cena em si foi gravada pela dublê de corpo de Janet Leigh, a modelo Marli Renfro, o doc reúne grandes nomes do cinema (entre eles Peter Bogdanovich, Guillermo Del Toro, Jamie Lee Curtis e Elijah Wood) para extrair o máximo dos quase 10 min de cena. O resultado é muito interessante e só ajuda a reforçar a face mais provocadora de Hitchcock.


Além de propor um estudo de enquadramentos, objetos cênicos e das metáforas visuais pensadas pelo diretor, 78\52 nos permite enxergar uma fração da inventividade deste mestre do suspense. Em Psicose, fica claro que Hitchcock resolve apontar a sua mira para o espectador, embutindo uma série de questões morais\sociais na obra ao falar sobre o frágil senso de segurança da época, a explosão da violência, o voyeurismo, a repressão sexual e o peso de um crime na rotina de uma mulher. O 'insight' de Peter Bogdanovich sobre a relação do explícito assassinato de Marion Crane com a perda de espaço das mulheres em Hollywood nos anos 50 e 60 é genial, como se ali, o próprio Hitchcock, estivesse filmando a "morte" do protagonismo feminino na indústria da época. Outro ponto que agrada é a forma com que o documentário estuda o impacto cultural de Psicose e da cena do chuveiro na cultura pop\cinematográfica. Embora isso já fosse bem claro, é sempre bom ver um diretor muito à frente do seu tempo, entregando algo que viria a mudar o cinema de horror.


E para quem quer aprender um pouco mais sobre o aspecto técnico, sobre ângulos, planos, enquadramentos e os “truques” utilizados na construção fílmica, 78\52 se revela uma verdadeira aula de cinema ministrada por um dos grandes gênios da Sétima Arte. Mesmo sob a perspectiva de terceiros, é possível entender melhor o seu estilo, a sua forma de contar histórias, o seu virtuosismo, as suas referências e os seus mais espertos truques narrativos. Existia uma fórmula na obra de Hitchcock, um padrão revigorado de tempos em tempos que ficou ainda mais claro para mim ao longo da película. Por mais que se alongue no terço final, 78\52 é um documentário recompensador para qualquer fã de cinema. Um estudo de cena minucioso que tem muito a dizer não só sobre Alfred Hitchcock e a complexidade de Psicose, mas sobre o decisivo trabalho de alguns dos seus grandes parceiros na confecção deste clássico inesgotável.

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