Sem medo de errar, poucos longas
lançados em 2018 me surpreenderam tanto quanto Shirkers: O Filme Perdido.
Uma exaltação do cinema faça você mesmo, a película escrita e
dirigida por Sandi Tan impressiona ao se debruçar sobre as agruras de uma jovem aspirante à cineasta que viu o seu sonho juvenil se transformar num
desconcertante pesadelo. Embora o roteiro se disperse demais nos seus
primeiros minutos, se distanciando do tema em questão ao estabelecer o contexto
sócio-político da Singapura (país de origem da documentarista) e a formação cultural das
protagonistas, Tan não demora muito para fisgar a atenção do espectador com a
sua hipnotizante história de vida. Transitando entre o passado e o presente com desenvoltura, o doc retorna a década de 1990 para narrar a jornada da
jovem Sandi, uma adolescente com anseios artístico que diante da repressão e da
censura só queria fazer cinema. Ao lado das suas duas inseparáveis amigas, a
madura Jamine Ng e a cativante Sophie, ela decide filmar o que seria uma das
primeiras produções ‘indies’ do seu país. Tudo sai do controle, entretanto,
quando Sandi decide trazer o seu mentor cinematográfico, o enigmático Georges
Cardona, para o comando da produção. O estopim de um relacionamento complexo
que viria a mudar a sua vida de uma vez por todas.
Com uma linguagem visual descolada,
uma pegada levemente anárquica, personagens inesperadamente elaborados e uma
inquietante construção do mistério em torno da realização do tal filme perdido, Shirkers
surpreende ao se revelar um suspense da vida real. Ao longo da primeira metade da obra, Sandi Tan imprime em tela as suas
próprias experiências ao
refletir com franqueza sobre a sua versão mais jovem. Sobre
os sonhos, a ingenuidade, a devoção à arte, o talento e a particular visão de cinema de uma adolescente despreparada para lidar com o que estar por vir. O passado é reinterpretado. O filme perdido revela as influências da artista. Expõe o apreço dela por cineastas como os Irmãos Coen, Ingmar Bergman (que a própria diz
odiar) Steven Soderbergh e (especialmente) David Lynch. É por si só revigorante ver
a criação daquelas jovens de uma (até então) isolada ilha asiática ganhando vida, cores e uma abordagem ‘indie’ surrealista genuinamente imagética.
Por trás do rosto inocente de Sandi existia uma cineasta com uma visão clara, com uma história para contar. Um
sentimento honesto trabalhado com sutileza ao longo do documentário. A diretora é cuidadosa ao extrair o máximo de sinceridade dos(a)
entrevistados(a). O seu comportamento no set surge como um
prenúncio do que estava por vir. No auge da sua devoção ao projeto, Sandi, talvez
por inexperiência, talvez por ego, talvez pela cegueira gerada pela empolgação, não percebeu que o filme era cada vez menos seu.
Shirkers ganha um
imprevisível novo rumo no momento em que decide colocar Georges Cardona no
centro da trama. Um daqueles tipos reais que de tão intrigante até parece ter sido criado por um
Ás dos roteiros. Uma peça chave dentro do documentário, ele surge inicialmente
como o mentor, um adulto estrangeiro capaz de apresentar um novo mundo para
aquele seleto grupo de jovens. Georges é tratado como um homem
excêntrico. Uma figura que usa o seu conhecimento para seduzir quem cruzasse o seu caminho. As
suas histórias eram incríveis, o seu passado nebuloso, a sua presença inestimável para elas.
Por trás desta persuasiva fachada, entretanto, existia um outro homem. Shirkers se esforça para focar nesta faceta até então desconhecida. Na persona daquele que transformaria o sonho em pesadelo. Num profundo estudo de personagem, Sandi Tan envolve ao tentar entender o porquê dos
seus atos, ao buscar alguma pista que o seu eu mais imaturo não conseguiu
capturar. De uma hora para outra Shirkers vira uma mistura de O Grande Gatsby
com Prenda-Me se For Capaz. Um retrato intrigante sobre o que levou aquele
fascinante homem a tais atos. À procura de respostas, Sandi revela a sua dor. O "furto" gera vergonha, tristeza e desilusão. As feridas são reais. As cicatrizes ainda expostas. A realizadora esbanja sobriedade ao, a partir da
sua peculiar história, invadir um terreno muito reconhecível dentro da
indústria do cinema. Um cenário em que jovens realizadoras\atrizes precisam se submeter ao
crivo dos superiores (entenda homens) para ver a sua ideia ganhar
forma. Um ‘modus operandi’ opressivo e desigual que, durante muitos anos, afastou
vozes femininas como a de Sandi Tan do showbiz. Shirkers se alimenta da tristeza para defender o empoderamento. A jornada, aqui, é de recuperação pelo controle criativo da narrativa. O documentário, de fato, não é a tal fita roubada, mas é o legado dela.
Ora um desconcertante grito de
liberdade, ora uma doce manifestação de afeto quanto a sua criação, Shirkers é um daqueles títulos indispensáveis para os fãs da Sétima Arte.
Um relato sincero sobre uma jovem talentosa com sonhos e também muitas falhas
(a maioria delas expostas corajosamente no documentário) que não titubeou em
compartilhar a sua singular visão de cinema. Para Sandi Tan, infelizmente, a
espera foi grande. Provavelmente revoltante. Mas, quase três décadas depois,
ela ganhou a oportunidade de exorcizar os seus mais íntimos fantasmas num
documentário sentimental, virtuoso, instigante e, acima de tudo, surpreendente.
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