quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Crítica | Shirkers: O Filme Perdido

Um fascinante grito de liberdade

Sem medo de errar, poucos longas lançados em 2018 me surpreenderam tanto quanto Shirkers: O Filme Perdido. Uma exaltação do cinema faça você mesmo, a película escrita e dirigida por Sandi Tan impressiona ao se debruçar sobre as agruras de uma jovem aspirante à cineasta que viu o seu sonho juvenil se transformar num desconcertante pesadelo. Embora o roteiro se disperse demais nos seus primeiros minutos, se distanciando do tema em questão ao estabelecer o contexto sócio-político da Singapura (país de origem da documentarista) e a formação cultural das protagonistas, Tan não demora muito para fisgar a atenção do espectador com a sua hipnotizante história de vida. Transitando entre o passado e o presente com desenvoltura, o doc retorna a década de 1990 para narrar a jornada da jovem Sandi, uma adolescente com anseios artístico que diante da repressão e da censura só queria fazer cinema. Ao lado das suas duas inseparáveis amigas, a madura Jamine Ng e a cativante Sophie, ela decide filmar o que seria uma das primeiras produções ‘indies’ do seu país. Tudo sai do controle, entretanto, quando Sandi decide trazer o seu mentor cinematográfico, o enigmático Georges Cardona, para o comando da produção. O estopim de um relacionamento complexo que viria a mudar a sua vida de uma vez por todas.



Com uma linguagem visual descolada, uma pegada levemente anárquica, personagens inesperadamente elaborados e uma inquietante construção do mistério em torno da realização do tal filme perdido, Shirkers surpreende ao se revelar um suspense da vida real. Ao longo da primeira metade da obra, Sandi Tan imprime em tela as suas próprias experiências ao refletir com franqueza sobre a sua versão mais jovem. Sobre os sonhos, a ingenuidade, a devoção à arte, o talento e a particular visão de cinema de uma adolescente despreparada para lidar com o que estar por vir. O passado é reinterpretado. O filme perdido revela as influências da artista. Expõe o apreço dela por cineastas como os Irmãos Coen, Ingmar Bergman (que a própria diz odiar) Steven Soderbergh e (especialmente) David Lynch. É por si só revigorante ver a criação daquelas jovens de uma (até então) isolada ilha asiática ganhando vida, cores e uma abordagem ‘indie’ surrealista genuinamente imagética. Por trás do rosto inocente de Sandi existia uma cineasta com uma visão clara, com uma história para contar. Um sentimento honesto trabalhado com sutileza ao longo do documentário. A diretora é cuidadosa ao extrair o máximo de sinceridade dos(a) entrevistados(a). O seu comportamento no set surge como um prenúncio do que estava por vir. No auge da sua devoção ao projeto, Sandi, talvez por inexperiência, talvez por ego, talvez pela cegueira gerada pela empolgação, não percebeu que o filme era cada vez menos seu.


Shirkers ganha um imprevisível novo rumo no momento em que decide colocar Georges Cardona no centro da trama. Um daqueles tipos reais que de tão intrigante até parece ter sido criado por um Ás dos roteiros. Uma peça chave dentro do documentário, ele surge inicialmente como o mentor, um adulto estrangeiro capaz de apresentar um novo mundo para aquele seleto grupo de jovens. Georges é tratado como um homem excêntrico. Uma figura que usa o seu conhecimento para seduzir quem cruzasse o seu caminho. As suas histórias eram incríveis, o seu passado nebuloso, a sua presença inestimável para elas. Por trás desta persuasiva fachada, entretanto, existia um outro homem. Shirkers se esforça para focar nesta faceta até então desconhecida. Na persona daquele que transformaria o sonho em pesadelo. Num profundo estudo de personagem, Sandi Tan envolve ao tentar entender o porquê dos seus atos, ao buscar alguma pista que o seu eu mais imaturo não conseguiu capturar. De uma hora para outra Shirkers vira uma mistura de O Grande Gatsby com Prenda-Me se For Capaz. Um retrato intrigante sobre o que levou aquele fascinante homem a tais atos. À procura de respostas, Sandi revela a sua dor. O "furto" gera vergonha, tristeza e desilusão. As feridas são reais. As cicatrizes ainda expostas. A realizadora esbanja sobriedade ao, a partir da sua peculiar história, invadir um terreno muito reconhecível dentro da indústria do cinema. Um cenário em que jovens realizadoras\atrizes precisam se submeter ao crivo dos superiores (entenda homens) para ver a sua ideia ganhar forma. Um ‘modus operandi’ opressivo e desigual que, durante muitos anos, afastou vozes femininas como a de Sandi Tan do showbiz. Shirkers se alimenta da tristeza para defender o empoderamento. A jornada, aqui, é de recuperação pelo controle criativo da narrativa. O documentário, de fato, não é a tal fita roubada, mas é o legado dela. 


Ora um desconcertante grito de liberdade, ora uma doce manifestação de afeto  quanto a sua criação, Shirkers é um daqueles títulos indispensáveis para os fãs da Sétima Arte. Um relato sincero sobre uma jovem talentosa com sonhos e também muitas falhas (a maioria delas expostas corajosamente no documentário) que não titubeou em compartilhar a sua singular visão de cinema. Para Sandi Tan, infelizmente, a espera foi grande. Provavelmente revoltante. Mas, quase três décadas depois, ela ganhou a oportunidade de exorcizar os seus mais íntimos fantasmas num documentário sentimental, virtuoso, instigante e, acima de tudo, surpreendente. 


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