quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Crítica | A Esposa (The Wife)

À sombra do talento

“Por trás de todo homem existe uma grande mulher”. Eis um dito popular que não envelheceu nada bem. Um provérbio patriarcal que, até pouco tempo atrás, era utilizado com orgulho por homens de sucesso para reverenciar os feitos de suas esposas, filhas, mães. Mulheres que dedicaram muito do seu tempo e sonhos em prol do triunfo dos seus reconhecidos maridos, pais, filhos. Uma sentença que, verdade seja dita, ainda hoje reflete a visão social de muitos, dos entusiastas do slogan bela, recatada e do lar. Por trás deste perigoso “elogio”, entretanto, reside escondida uma mentalidade arcaica. Uma rotina de submissão, abnegação e (claro!) desigualdade extremamente reconhecível. Um problema social que só realça a importância de títulos como A Esposa, um drama denso e intimista sobre uma destas muitas mulheres que sacrificou a sua voz em prol do bem-estar da sua família. Embora narrativamente irregular e por vezes apressado, o longa dirigido por Bjorn Runge encontra na soberba performance de Glenn Close a maturidade necessária para lidar com um tema tão espinhoso, se esquivando do viés unidimensional ao não parecer contente em propor um tardio duelo de gêneros. O foco, aqui, não está no grito de liberdade feminino, nem tão pouco na busca por reconhecimento, mas no latente sentimento de culpa que cerca uma relação marcada por um distorcido senso de cumplicidade. 



Com roteiro assinado por Jane Anderson (da primorosa série Mad Men), inspirada na obra ficcional de Meg Wolitzer, A Esposa não é um filme fácil. Longe disso. Como se não bastasse a temática adulta, o diretor Bjorn Runge dedica o tempo que julga necessário para estabelecer a situação do casal Joe (Jonathan Pryce) e Joan Castelman (Glenn Close), ele um egocêntrico escritor recém selecionado para receber o prêmio Nobel de Literatura, ela a sua fiel e zelosa esposa. Uma abordagem lenta e pouco recompensadora que não deve agradar a todos. O primeiro grande trunfo do longa, porém, está justamente na forma seca com que o argumento disseca estes dois populares arquétipos. Numa opção perspicaz, o realizador sueco mostra frieza ao capturar o desconforto do casal diante do frisson em torno do anuncio. A bajulação se torna o primeiro grande agente catalisador da trama, mostrando que na raiz desta longa relação existia um problema silencioso. Enquanto se concentra no tempo presente, Runge é habilidoso ao valorizar o aspecto mais insinuante do texto, ao investigar tanto a face mais carente, mulherenga e narcisista de Joe, quanto o lado mais amargurado, enigmático e vaidoso de Joan. As pistas para os conflitos entre os dois são soltas no ar com descrição, refletindo o estado de espírito inicial do casal. Embora pese a mão em alguns momentos, vide a pueril relação extra-conjugal do escritor, são nestes gestos mais sutis que tudo começa a ficar mais claro e reconhecível aos olhos do público. A cada agradecimento vazio de Joe, por exemplo, a sensação de insatisfação de Joan parece ficar mais evidente. Não estamos diante de uma mulher somente cansada de ser a esposa modelo, a babá, a mão que afaga nos tempos de crise. Por trás da sua impavidez elegante existe alguém sofrendo, com remorsos e frustrações. Uma brilhante construção de personagem que explica o salto de qualidade da película como um todo a partir do segundo ato.


Um predicado potencializado pelo segundo agente catalisador da história, o persistente biógrafo Nathaniel Bone (Christian Slater, ardiloso sempre que está em cena). Mesmo se revelando uma peça aleatória dentro do roteiro, o escritor surge para adicionar a pimenta que o longa precisava, indo além das questões familiares ao colocar o dedo na verdadeira ferida escondida na obra. Sem querer revelar muito, A Esposa é enfático ao escancarar a face mais cruel do “por trás de todo grande homem existe uma grande mulher”, ao revelar o impacto da desigualdade de gêneros na vida de Joan. Cuidadoso ao alimentar os segredos em torno da personagem e da sua complexa relação com o marido escritor, Bjorn Runge não perde também a oportunidade de se insurgir contra a desvalorização do trabalho feminino, a falta de reconhecimento e principalmente de oportunidades. Uma mensagem igualitária que só se torna mais relevante quando descobrimos que dos 114 vencedores do Nobel de Literatura, apenas 14 são mulheres*. E isso, como dito acima, sem precisar apelar para o viés panfletário\unidimensional. Embora não se furte de exibir o pior dos seus protagonistas, o diretor esbanja maturidade ao entregar dois tipos complexos, repletos de nuances sentimentais. Estamos diante de um casal de personagens com falhas, mas experimentados pela vida, consciente do impacto dos seus respectivos erros e de até onde estariam dispostos a ir para manter esta relação. O que fica bem claro, em especial, na fantástica sequência da briga seguida por uma repentina boa notícia. Uma cena que começa carregada de cinismo e provocação, explode para um momento de raiva, mas logo ganha contornos genuinamente afetuosos quando os dois deixam as suas diferenças momentâneas de lado para celebrar a novidade. A intenção, aqui, não é julgar A ou B. Ambos têm erros e acertos, pecados e virtudes. O foco está na situação em si, no quão desconcertante pode ser o impacto de uma mentira na vida de um envelhecido casal.


Como disse mais acima, entretanto, A Esposa está longe de ser um filme de fácil digestão. E muito por suas próprias falhas. Na tentativa de tornar tudo mais palatável, Bjorn Runge decide apostar no dispensável uso do flashback. Mesmo servindo ao contexto da película em um ou dois momentos, as sequências no passado destoam por completo do nível de qualidade (atuação\direção) da obra, uma concessão narrativa travestida de flerte com melodrama que definitivamente não funciona a contento. Até porque, verdade seja dita, as principais sequelas dos erros passados são bem melhores trabalhadas quando estão no tempo presente. Outro ponto que me incomodou, e muito, foi o personagem do filho vivido pelo competente Max Irons. Ainda que funcione numa cena chave do filme, o aspirante a escritor se revela um tipo oco e mimado, um homem com atitudes imaturas que de longe está entre os pontos mais baixos do script. Por fim, na transição para o último ato, A Esposa peca ao forçar a barra no que diz respeito às reações do casal de protagonistas. A impressão que fica é que o longa vai de 0 a 100 com precipitação, tornando alguns dos seus atos um tanto quanto incompreensíveis. Um deslize de rota que, ao menos aqui, é facilmente corrigido pelos fantásticos Jonathan Pryce e Glenn Close. Numa das grandes performances da sua carreira, a estrela dos anos 1980 e 90 volta aos holofotes com imponência, interiorizando o misto de conflitos e emoções da sua Joan com uma elegância maturada digna de todos os elogios que ela está recebendo. Quando necessário, porém, Close explode em cena com ímpeto e muita verdade, refletindo as agruras de muitas mulheres ao redor do mundo com a força que a sua personagem exigia. Do outro lado da equação, Jonathan Pryce responde na mesma moeda ao desconstruir o seu Jon perante o público. Por trás do narcisismo do escritor diante da bajulação, dos seus discursos de gratidão vazio, do seu egocentrismo e da sua insensibilidade, existia um homem frágil, consciente da sua própria culpa, mas incapaz de verdadeiramente repará-la. Um tipo refém da sua vaidade, do arquétipo bem-sucedido construído em sua volta, que, graças a intensa performance de Pryce, não esconde também a sua face mais humana e consequentemente errática. 


Impulsionado pela magnífica performance de Glenn Close, A Esposa é um drama competente que ganha pontos extras ao defender uma urgente e infelizmente atual mensagem de igualdade entre os gêneros. Sem a intenção de propor um julgamento raso acerca do tema proposto, Bjorn Runge entrega uma obra impactante, por vezes desnivelada, mas que não foge da raia ao questionar a mentalidade machista\patriarcal que ainda impera em diversos núcleos familiares. Um filme sincero e elegante que, ao lado dos recentes (e excelentes) Tully e Primeiro Homem, merece ganhar relevância por dar uma realística voz a um dos arquétipos mais desvalorizados em Hollywood.


(*) Números de 2017.

2 comentários:

Thais Reder disse...

ESPETACULAR! AS VEZES A CRÍTICA FICA MELHOR QUE O PRÓPRIO FILME EU NÃO ASSISTI MAS AGORA QUERO MAIS DO QUE NUNCA.

thicarvalho disse...

Obrigado pelo comentário Thais. Melhor do que o próprio filme é a atuação de Glenn Close. Que grande trabalho.