“Por trás de todo homem existe
uma grande mulher”. Eis um dito popular que não envelheceu nada bem. Um
provérbio patriarcal que, até pouco tempo atrás, era utilizado com orgulho por
homens de sucesso para reverenciar os feitos de suas esposas, filhas, mães. Mulheres
que dedicaram muito do seu tempo e sonhos em prol do triunfo dos seus reconhecidos
maridos, pais, filhos. Uma sentença que, verdade seja dita, ainda hoje reflete
a visão social de muitos, dos entusiastas do slogan bela, recatada e do lar. Por trás deste perigoso “elogio”, entretanto, reside escondida uma mentalidade
arcaica. Uma rotina de submissão, abnegação e (claro!) desigualdade extremamente reconhecível. Um problema social que só realça a
importância de títulos como A Esposa, um drama denso e intimista sobre uma
destas muitas mulheres que sacrificou a sua voz em prol do bem-estar da sua
família. Embora narrativamente irregular e por vezes apressado, o longa
dirigido por Bjorn Runge encontra na soberba performance de Glenn Close a
maturidade necessária para lidar com um tema tão espinhoso, se esquivando do
viés unidimensional ao não parecer contente em propor um tardio duelo de
gêneros. O foco, aqui, não está no grito de liberdade feminino, nem tão pouco
na busca por reconhecimento, mas no latente sentimento de culpa que cerca uma
relação marcada por um distorcido senso de cumplicidade.
Com roteiro assinado por Jane
Anderson (da primorosa série Mad Men), inspirada na obra ficcional de Meg
Wolitzer, A Esposa não é um filme fácil. Longe disso. Como se não bastasse a
temática adulta, o diretor Bjorn Runge dedica o tempo que julga necessário para
estabelecer a situação do casal Joe (Jonathan Pryce) e Joan Castelman (Glenn
Close), ele um egocêntrico escritor recém selecionado para receber o prêmio
Nobel de Literatura, ela a sua fiel e zelosa esposa. Uma abordagem lenta e
pouco recompensadora que não deve agradar a todos. O primeiro grande trunfo do
longa, porém, está justamente na forma seca com que o argumento disseca estes
dois populares arquétipos. Numa opção perspicaz, o realizador sueco mostra
frieza ao capturar o desconforto do casal diante do frisson em torno do anuncio.
A bajulação se torna o primeiro grande agente catalisador da trama, mostrando
que na raiz desta longa relação existia um problema silencioso. Enquanto se
concentra no tempo presente, Runge é habilidoso ao valorizar o aspecto mais
insinuante do texto, ao investigar tanto a face mais carente, mulherenga e
narcisista de Joe, quanto o lado mais amargurado, enigmático e vaidoso de Joan.
As pistas para os conflitos entre os dois são soltas no ar com descrição,
refletindo o estado de espírito inicial do casal. Embora pese a mão em alguns
momentos, vide a pueril relação extra-conjugal do escritor, são nestes gestos
mais sutis que tudo começa a ficar mais claro e reconhecível aos olhos do
público. A cada agradecimento vazio de Joe, por exemplo, a sensação de
insatisfação de Joan parece ficar mais evidente. Não estamos diante de uma
mulher somente cansada de ser a esposa modelo, a babá, a mão que afaga nos
tempos de crise. Por trás da sua impavidez elegante existe alguém sofrendo, com
remorsos e frustrações. Uma brilhante construção de personagem que explica o
salto de qualidade da película como um todo a partir do segundo ato.
Um predicado potencializado pelo
segundo agente catalisador da história, o persistente biógrafo Nathaniel Bone
(Christian Slater, ardiloso sempre que está em cena). Mesmo se revelando uma
peça aleatória dentro do roteiro, o escritor surge para adicionar a pimenta que
o longa precisava, indo além das questões familiares ao colocar o dedo na
verdadeira ferida escondida na obra. Sem querer revelar muito, A Esposa é
enfático ao escancarar a face mais cruel do “por trás de todo grande homem
existe uma grande mulher”, ao revelar o impacto da desigualdade de gêneros na
vida de Joan. Cuidadoso ao alimentar os segredos em torno da personagem e da
sua complexa relação com o marido escritor, Bjorn Runge não perde também a
oportunidade de se insurgir contra a desvalorização do trabalho feminino, a
falta de reconhecimento e principalmente de oportunidades. Uma mensagem
igualitária que só se torna mais relevante quando descobrimos que dos 114
vencedores do Nobel de Literatura, apenas 14 são mulheres*. E isso, como dito
acima, sem precisar apelar para o viés panfletário\unidimensional. Embora não se
furte de exibir o pior dos seus protagonistas, o diretor esbanja maturidade ao
entregar dois tipos complexos, repletos de nuances sentimentais. Estamos diante
de um casal de personagens com falhas, mas experimentados pela vida, consciente
do impacto dos seus respectivos erros e de até onde estariam dispostos a ir
para manter esta relação. O que fica bem claro, em especial, na fantástica
sequência da briga seguida por uma repentina boa notícia. Uma cena que começa
carregada de cinismo e provocação, explode para um momento de raiva, mas logo
ganha contornos genuinamente afetuosos quando os dois deixam as suas diferenças
momentâneas de lado para celebrar a novidade. A intenção, aqui, não é julgar A
ou B. Ambos têm erros e acertos, pecados e virtudes. O foco está na situação em
si, no quão desconcertante pode ser o impacto de uma mentira na vida de um
envelhecido casal.
Como disse mais acima,
entretanto, A Esposa está longe de ser um filme de fácil digestão. E muito por
suas próprias falhas. Na tentativa de tornar tudo mais palatável, Bjorn Runge
decide apostar no dispensável uso do flashback. Mesmo servindo ao contexto da
película em um ou dois momentos, as sequências no passado destoam por completo
do nível de qualidade (atuação\direção) da obra, uma concessão narrativa
travestida de flerte com melodrama que definitivamente não funciona a contento.
Até porque, verdade seja dita, as principais sequelas dos erros passados são bem
melhores trabalhadas quando estão no tempo presente. Outro ponto que me
incomodou, e muito, foi o personagem do filho vivido pelo competente Max Irons.
Ainda que funcione numa cena chave do filme, o aspirante a escritor se revela
um tipo oco e mimado, um homem com atitudes imaturas que de longe está entre os
pontos mais baixos do script. Por fim, na transição para o último ato, A Esposa
peca ao forçar a barra no que diz respeito às reações do casal de
protagonistas. A impressão que fica é que o longa vai de 0 a 100 com
precipitação, tornando alguns dos seus atos um tanto quanto incompreensíveis.
Um deslize de rota que, ao menos aqui, é facilmente corrigido pelos fantásticos
Jonathan Pryce e Glenn Close. Numa das grandes performances da sua carreira, a
estrela dos anos 1980 e 90 volta aos holofotes com imponência, interiorizando o
misto de conflitos e emoções da sua Joan com uma elegância maturada digna de
todos os elogios que ela está recebendo. Quando necessário, porém, Close
explode em cena com ímpeto e muita verdade, refletindo as agruras de muitas
mulheres ao redor do mundo com a força que a sua personagem exigia. Do outro
lado da equação, Jonathan Pryce responde na mesma moeda ao desconstruir o seu
Jon perante o público. Por trás do narcisismo do escritor diante da bajulação,
dos seus discursos de gratidão vazio, do seu egocentrismo e da sua
insensibilidade, existia um homem frágil, consciente da sua própria culpa, mas
incapaz de verdadeiramente repará-la. Um tipo refém da sua vaidade, do
arquétipo bem-sucedido construído em sua volta, que, graças a intensa
performance de Pryce, não esconde também a sua face mais humana e
consequentemente errática.
Impulsionado pela magnífica
performance de Glenn Close, A Esposa é um drama competente que ganha pontos
extras ao defender uma urgente e infelizmente atual mensagem de igualdade entre
os gêneros. Sem a intenção de propor um julgamento raso acerca do tema
proposto, Bjorn Runge entrega uma obra impactante, por vezes desnivelada, mas
que não foge da raia ao questionar a mentalidade machista\patriarcal que ainda
impera em diversos núcleos familiares. Um filme sincero e elegante que, ao lado
dos recentes (e excelentes) Tully e Primeiro Homem, merece ganhar relevância
por dar uma realística voz a um dos arquétipos mais desvalorizados em
Hollywood.
(*) Números de 2017.
2 comentários:
ESPETACULAR! AS VEZES A CRÍTICA FICA MELHOR QUE O PRÓPRIO FILME EU NÃO ASSISTI MAS AGORA QUERO MAIS DO QUE NUNCA.
Obrigado pelo comentário Thais. Melhor do que o próprio filme é a atuação de Glenn Close. Que grande trabalho.
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