Em qualquer outro estúdio, o
extraordinário Os Incríveis (2004) se tornaria uma daquelas lucrativas
franquias, exploradas a exaustão na busca por audiência, novas marcas e (óbvio!) rios de dinheiro. Séries como Madagascar (três filmes e um spin-off), Shrek (quatro
filmes e um spin-off), Meu Malvado Favorito (três filmes e um spin-off), A Era
do Gelo (quatro filmes) não me deixam mentir. Uma alternativa justa, afinal de
contas nem todas as companhias tem a estabilidade e o poder de investimento de
uma empresa do porte da Pixar. Desde a sua criação, lá no início da década de
1990, a produtora então comandada por John Lasseter decidiu prezar pela
originalidade das suas produções. Com exceção das marcas Carros e Toy Story, dois
‘cases’ de sucesso pessoalmente criados\administrados pelo mandachuva da
empresa, a Pixar decidiu nadar contra a corrente, privilegiando a qualidade à
quantidade com obras do quilate de Rattatouile, Wall-E, Up: Altas Aventuras,
Divertida Mente e o recente Viva: A Vida É uma Festa. Diante desta filosofia,
Os Incríveis sempre foi tratado como um produto solo, apesar do desfecho
literalmente em aberto e do potencial do gênero super-heroico na época do seu
lançamento. Durante muito tempo, inclusive, o diretor Brad Bird nunca escondeu
de ninguém que o longa só ganharia uma continuação se ele encontrasse algo novo
para contar. Felizmente, ele achou os motivos certos para tirar do papel
uma continuação à altura do original. Embora fique um degrau abaixo do seu
antecessor no fator empolgação, Os Incríveis 2 é uma sequência memorável, uma
aventura inteligente, madura e genuinamente engraçada que surpreende ao
revigorar o ‘status quo’ dos seus personagens. Indo além da brincadeira com a
disfuncionalidade desta família de super-heróis, Bird é cuidadoso ao tecer um
brilhante comentário sobre a luta diária pela independência feminina, propondo
uma saborosa inversão de arquétipos ao defender o quão turbulenta pode ser a
tão subestimada (e desigual) rotina doméstica.
Com roteiro assinado por Brad
Bird, Os Incríveis 2 se revela a típica obra com múltiplas camadas que a Pixar
sabe fazer tão bem. Apesar da aura aventuresca saltar aos olhos, estamos diante
de um filme super-herói com pedigree, é impressionante a sagacidade do texto em
buscar um diálogo sincero com todos os públicos. A criançada, por exemplo, tem
tudo para pirar com o pequeno Zezé, o bebê Incrível (e superpoderoso) que,
seguindo o rumo sugerido pelo filme original, se torna uma impagável pedra no
sapato para o papai Roberto Pêra. Já os adolescentes tendem a se empolgar com
as espetaculares sequências de ação, que, graças a assinatura inventiva de
Bird, são tão impactantes e dinâmicas quanto as do seu antecessor. Por fim, os
adultos, aqueles que geralmente financiam a sessão, são premiados com um retrato
contemporâneo sobre as novas estruturas familiares, uma reflexão perspicaz
sobre a renovação dos papeis de pai e mãe no dia a dia das grandes metrópoles.
Com fluidez e pulso narrativo, Bird revigora um ‘plot’ aparentemente requentado
ao surgir com um fato novo, a colocar a elástica Srª Incrível como uma peça
chave nos planos de um casal de irmãos dispostos a recuperar o prestígio dos
super-heróis. Se no primeiro filme o Srº Incrível era o marido frustrado, um
super-herói com uma rotina burocrática que lutava contra o crime às escondidas,
aqui é a sua esposa que se sente tentada a recuperar os dias de glória, a
largar a vida doméstica em prol da ação, uma mudança de rumo sustentada com
maestria pelo argumento. Tratado como um coadjuvante talvez pela primeira vez
na sua vida, o superpoderoso pai se vê obrigado a assumir o cuidado dos seus
filhos, a irritadiça Violeta, o indomável Flecha e o já citado Zezé, uma nova e
complexa realidade que logo se revelará mais desafiadora do que qualquer grande
vilão.
Não se engane, porém, com a
aparente seriedade de Os Incríveis 2. Como eu disse acima, estamos diante de um
filme de super-herói recheado de predicados, que, acertadamente, se inicia logo
após o término do original numa espetacular sequência de ação. Com o padrão
Brad Bird de criatividade, o longa coloca a superfamília contra o imponente
Escavador numa sequência dinâmica capaz de estabelecer com inspiração o ‘plot’
da obra. Um dos pontos altos da película, principalmente pela facilidade com
que o realizador explora o enferrujado senso de coletividade dos Incríveis em
ação, uma cena brilhantemente dirigida e montada que está à altura de qualquer
grande representante do gênero. Valorizando, como de costume, o viés altruísta
dos personagens, Bird tira proveito dos quase quinze anos de evolução
tecnológica ao investir em planos e movimentos de câmera extremamente ousados, potencializando
a velocidade (em especial) da Srª Incrível num ‘mise en scene’ imersivo e
engenhoso. Vide, por exemplo, a frenética sequência da perseguição ao trem
“magnético” e a maneira com que ele explora a desmontável moto da protagonista.
Outro ponto que agrada, e muito, é o novo vilão da série, o soturno
Hipnotizador. Por mais que o ‘background’ envolvendo a crise de identidade dos
vigilantes soe demasiadamente requentado, o antagonista funciona tanto
narrativamente, quanto esteticamente, permitindo que o diretor brinque com o
contraste de cores e luzes em pelo menos duas grandes sequências.
Por outro
lado, apesar destes e de outros méritos visuais, é no aspecto super que Os
Incríveis 2 mostra também o seu lado mais falho. A começar pela maneira com que
Bird, aqui, subaproveita o jogo coletivo dos heróis. Embora a “separação” do
casal sirva perfeitamente ao propósito da obra, a impressão que o diretor
flerta com soluções redundantes, demorando demais a reunir os Incríveis no
campo de batalha. E quando o faz, inclusive, a cena está longe dos momentos
mais impactantes, ficando aquém ao inesquecível clímax do primeiro longa. O
ponto que mais me incomodou, no entanto, foi a falta de criatividade do roteiro
quando o assunto são os novos super-heróis. Enquanto o carismático Gelado segue
como um acerto retumbante, os poderosos personagens de apoio se revelam opacos
e dispensáveis, se revelando meros peões no último ato. Um desnível, diga-se de
passagem, potencializado pela equipe de dublagem brasileira, que, quando se refere
a esses personagens, é terrível. Na boa, quem foi o gênio que escalou o Raul
Gil para dar voz a um super-herói envelhecido. Ainda assim, mesmo
subaproveitada pelo roteiro, a comunicativa Void rende ótimos momentos nas
sequências mais frenéticas, muito em função dos seus dinâmicos superpoderes.
No embalo da primorosa trilha sonora de Michael Giacchino, Os Incríveis 2 é uma continuação exemplar, um filme com novas e inspiradas ideias capaz de refletir sobre as remodeladas estruturas familiares urbanas sem sacrificar por um segundo sequer o fator entretenimento. Embora o roteiro insista demais em algumas situações, as gags envolvendo os incontroláveis poderes do fofíssimo Zezé perdem força na transição para o último ato, Brad Bird faz jus ao padrão Pixar de qualidade ao valorizar igualmente visual e conteúdo, entregando uma obra ao mesmo tempo empolgante e inteligente, engraçada e densa. Uma sequência com identidade original.
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