terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Os Incríveis 2

Valeu a pena esperar

Em qualquer outro estúdio, o extraordinário Os Incríveis (2004) se tornaria uma daquelas lucrativas franquias, exploradas a exaustão na busca por audiência, novas marcas e (óbvio!) rios de dinheiro. Séries como Madagascar (três filmes e um spin-off), Shrek (quatro filmes e um spin-off), Meu Malvado Favorito (três filmes e um spin-off), A Era do Gelo (quatro filmes) não me deixam mentir. Uma alternativa justa, afinal de contas nem todas as companhias tem a estabilidade e o poder de investimento de uma empresa do porte da Pixar. Desde a sua criação, lá no início da década de 1990, a produtora então comandada por John Lasseter decidiu prezar pela originalidade das suas produções. Com exceção das marcas Carros e Toy Story, dois ‘cases’ de sucesso pessoalmente criados\administrados pelo mandachuva da empresa, a Pixar decidiu nadar contra a corrente, privilegiando a qualidade à quantidade com obras do quilate de Rattatouile, Wall-E, Up: Altas Aventuras, Divertida Mente e o recente Viva: A Vida É uma Festa. Diante desta filosofia, Os Incríveis sempre foi tratado como um produto solo, apesar do desfecho literalmente em aberto e do potencial do gênero super-heroico na época do seu lançamento. Durante muito tempo, inclusive, o diretor Brad Bird nunca escondeu de ninguém que o longa só ganharia uma continuação se ele encontrasse algo novo para contar. Felizmente, ele achou os motivos certos para tirar do papel uma continuação à altura do original. Embora fique um degrau abaixo do seu antecessor no fator empolgação, Os Incríveis 2 é uma sequência memorável, uma aventura inteligente, madura e genuinamente engraçada que surpreende ao revigorar o ‘status quo’ dos seus personagens. Indo além da brincadeira com a disfuncionalidade desta família de super-heróis, Bird é cuidadoso ao tecer um brilhante comentário sobre a luta diária pela independência feminina, propondo uma saborosa inversão de arquétipos ao defender o quão turbulenta pode ser a tão subestimada (e desigual) rotina doméstica. 



Com roteiro assinado por Brad Bird, Os Incríveis 2 se revela a típica obra com múltiplas camadas que a Pixar sabe fazer tão bem. Apesar da aura aventuresca saltar aos olhos, estamos diante de um filme super-herói com pedigree, é impressionante a sagacidade do texto em buscar um diálogo sincero com todos os públicos. A criançada, por exemplo, tem tudo para pirar com o pequeno Zezé, o bebê Incrível (e superpoderoso) que, seguindo o rumo sugerido pelo filme original, se torna uma impagável pedra no sapato para o papai Roberto Pêra. Já os adolescentes tendem a se empolgar com as espetaculares sequências de ação, que, graças a assinatura inventiva de Bird, são tão impactantes e dinâmicas quanto as do seu antecessor. Por fim, os adultos, aqueles que geralmente financiam a sessão, são premiados com um retrato contemporâneo sobre as novas estruturas familiares, uma reflexão perspicaz sobre a renovação dos papeis de pai e mãe no dia a dia das grandes metrópoles. Com fluidez e pulso narrativo, Bird revigora um ‘plot’ aparentemente requentado ao surgir com um fato novo, a colocar a elástica Srª Incrível como uma peça chave nos planos de um casal de irmãos dispostos a recuperar o prestígio dos super-heróis. Se no primeiro filme o Srº Incrível era o marido frustrado, um super-herói com uma rotina burocrática que lutava contra o crime às escondidas, aqui é a sua esposa que se sente tentada a recuperar os dias de glória, a largar a vida doméstica em prol da ação, uma mudança de rumo sustentada com maestria pelo argumento. Tratado como um coadjuvante talvez pela primeira vez na sua vida, o superpoderoso pai se vê obrigado a assumir o cuidado dos seus filhos, a irritadiça Violeta, o indomável Flecha e o já citado Zezé, uma nova e complexa realidade que logo se revelará mais desafiadora do que qualquer grande vilão.


 Por mais que Os Incríveis 2 funcione com energia enquanto filme de super-herói, o grande trunfo da continuação está na ousadia de Brad Bird em privilegiar o micro em detrimento do macro. Em entender, aqui, que o foco está na disfuncionalidade da família Incrível. Ao sacudir as engrenagens deste grupo de personagens, o realizador consegue se aproximar da realidade de muitos pais e mães do mundo moderno, passeando por questões reconhecíveis, ora tratadas com ironia e uma forte veia escapista, ora tratadas com firmeza e um inspirado viés crítico. Quando se concentra na atrapalhada figura de Roberto, à beira de um ataque de nervos na tentativa de substituir a figura materna em casa sem alarmá-la, Bird mostra leveza ao tratar tudo com uma afiada dose de humor, principalmente no que diz respeito ao caótico Zezé. Sem precisar descaracterizar os seus personagens, o diretor é cuidadoso ao rir do misto de inveja e inabilidade do Srº Incrível enquanto um impaciente homem “do lar”, um herói corpulento obrigado a assistir o sucesso da sua esposa como uma vigilante zelosa e popular. Tudo soa muito cômico e satírico. Por outro lado, no momento em que mira na jornada de autoafirmação da Srª Incrível, Bird investe numa abordagem mais sóbria e reflexiva, aproximando o ‘girl power’ da realidade de muitas mulheres ao defender a divisão de responsabilidades, a igualdade entre os gênero. Aos poucos vemos uma mãe de família se redefinindo enquanto indivíduo, se enxergando como alguém capaz de brilhar num contexto competitivo, se tornando a provedora de uma família. Transitando entre estes dois arcos com fluidez, o realizador consegue não só inverter estes (ainda hoje) enraizados arquétipos, mas principalmente diluir a lacuna entre eles, ressaltando que homens e mulheres precisam estar preparados para assumirem as duas funções. Uma mensagem oportuna construída dentro de um contexto indiscutivelmente singular.


Não se engane, porém, com a aparente seriedade de Os Incríveis 2. Como eu disse acima, estamos diante de um filme de super-herói recheado de predicados, que, acertadamente, se inicia logo após o término do original numa espetacular sequência de ação. Com o padrão Brad Bird de criatividade, o longa coloca a superfamília contra o imponente Escavador numa sequência dinâmica capaz de estabelecer com inspiração o ‘plot’ da obra. Um dos pontos altos da película, principalmente pela facilidade com que o realizador explora o enferrujado senso de coletividade dos Incríveis em ação, uma cena brilhantemente dirigida e montada que está à altura de qualquer grande representante do gênero. Valorizando, como de costume, o viés altruísta dos personagens, Bird tira proveito dos quase quinze anos de evolução tecnológica ao investir em planos e movimentos de câmera extremamente ousados, potencializando a velocidade (em especial) da Srª Incrível num ‘mise en scene’ imersivo e engenhoso. Vide, por exemplo, a frenética sequência da perseguição ao trem “magnético” e a maneira com que ele explora a desmontável moto da protagonista. Outro ponto que agrada, e muito, é o novo vilão da série, o soturno Hipnotizador. Por mais que o ‘background’ envolvendo a crise de identidade dos vigilantes soe demasiadamente requentado, o antagonista funciona tanto narrativamente, quanto esteticamente, permitindo que o diretor brinque com o contraste de cores e luzes em pelo menos duas grandes sequências. 


Por outro lado, apesar destes e de outros méritos visuais, é no aspecto super que Os Incríveis 2 mostra também o seu lado mais falho. A começar pela maneira com que Bird, aqui, subaproveita o jogo coletivo dos heróis. Embora a “separação” do casal sirva perfeitamente ao propósito da obra, a impressão que o diretor flerta com soluções redundantes, demorando demais a reunir os Incríveis no campo de batalha. E quando o faz, inclusive, a cena está longe dos momentos mais impactantes, ficando aquém ao inesquecível clímax do primeiro longa. O ponto que mais me incomodou, no entanto, foi a falta de criatividade do roteiro quando o assunto são os novos super-heróis. Enquanto o carismático Gelado segue como um acerto retumbante, os poderosos personagens de apoio se revelam opacos e dispensáveis, se revelando meros peões no último ato. Um desnível, diga-se de passagem, potencializado pela equipe de dublagem brasileira, que, quando se refere a esses personagens, é terrível. Na boa, quem foi o gênio que escalou o Raul Gil para dar voz a um super-herói envelhecido. Ainda assim, mesmo subaproveitada pelo roteiro, a comunicativa Void rende ótimos momentos nas sequências mais frenéticas, muito em função dos seus dinâmicos superpoderes. 


No embalo da primorosa trilha sonora de Michael Giacchino, Os Incríveis 2 é uma continuação exemplar, um filme com novas e inspiradas ideias capaz de refletir sobre as remodeladas estruturas familiares urbanas sem sacrificar por um segundo sequer o fator entretenimento. Embora o roteiro insista demais em algumas situações, as gags envolvendo os incontroláveis poderes do fofíssimo Zezé perdem força na transição para o último ato, Brad Bird faz jus ao padrão Pixar de qualidade ao valorizar igualmente visual e conteúdo, entregando uma obra ao mesmo tempo empolgante e inteligente, engraçada e densa. Uma sequência com identidade original.

Nenhum comentário: