Visualmente primoroso,
Viva surpreende ao transitar por um terreno denso e adulto
Confesso que, num primeiro momento, Viva: A Vida é Uma Festa não me
chamou tanto a atenção. Por mais que o visual, como de costume nas produções
Pixar, saltasse aos olhos logo na primeira prévia, tematicamente o filme
parecia trazer consigo aquela sensação de "já vi isso antes".
Recentemente, inclusive, a excelente animação Festa no Céu (2014) havia
explorado as tradições culturais mexicanas com riqueza e criatividade, o que só
ajudou a reforçar a minha primeira impressão. Felizmente, existem muitas formas
de se contar uma mesma história. Apesar das inegáveis semelhanças narrativas
entre as suas obras, Viva comprova a genialidade da Pixar ao abordar a nossa
relação com a morte sob um prisma denso e emotivamente adulto. Por mais que o
espetacular visual colorido dê uma aparência infantil à trama, a película
dirigida por Lee Unkrich (Toy Story 3) e Adrian Molina ganha um sincero escopo
dramático a medida avança, refletindo sobre a fama, os vínculos familiares e o
valor das memórias numa obra que permanece após os créditos finais. Uma obra
revigorante que encanta e emociona graças à força da sua mensagem.
Curiosamente, porém, o primeiro ato de Viva: A Vida é Uma Festa parecia
corroborar as minhas impressões iniciais. Com roteiro assinado pela própria
dupla de diretores, ao lado de Jason Katz e Matthew Aldrich, o longa sugere um
plot muito semelhante ao proposto por Festa no Céu, a jornada de um jovem aspirante
a músico que, contrariando a vocação da sua família, decide seguir os seus
sonhos. A diferença é que, enquanto na animação produzida por Guillermo Del
Toro o protagonista pertencia a uma família de toureiros, em Viva o personagem
central, o esperto Miguel, carregava a responsabilidade de se tornar mais um
sapateiro da sua prole. Não demora muito, porém, para que possamos enxergar a
ousadia do selo Pixar na história. Por mais que, inicialmente, o background
dramático em torno da família não seja tão bem explorado assim, aos poucos os
segredos por trás da "repressão musical" vão sendo revelados,
preenchendo a trama com dilemas que eu, honestamente, não esperava ver numa
animação. Com um afiado poder de síntese, a maneira com que o argumento
estabelece o passado do protagonista é espertíssima, Viva, como dito acima,
acompanha as peripécias de Miguel, um garoto apaixonado pela música que, em
pleno Dia de Los Muertos, decide contrariar as ordens de sua controladora mãe e
participar de uma premiação local. Seguindo os passos do seu ídolo, o saudoso
cantor Ernesto de La Cruz, o jovem decide invadir o seu luxuoso túmulo e pegar
emprestado o seu violão, sem saber que no primeiro acorde ele seria conduzido
ao mundo dos mortos para uma viagem que mudaria o seu modo de enxergar a vida
de uma vez por todos.
Embora peque ao não se aprofundar tanto na dinâmica familiar ao longo do
primeiro ato, Lee Unkrich e Adrian Molina fogem do lugar comum ao tratar os
sonhos musicais de Miguel dentro de um contexto mundano e realístico. Mais do
que simplesmente se distanciar dos clichês, o roteiro é astuto ao revelar as
consequências impostas pela fama, reforçando os conflitos familiares ao colocar
em cheque as prioridades dos personagens. Sem querer revelar muito, além de
brilhantemente introduzidos ao longo da trama, os motivos por trás da rigidez
materna se mostram completamente universais, daqueles pensados para o público
adulto. É quando o jovem invade o mundo dos mortos, entretanto, que Viva dá o
seu "salto de qualidade". Magnífica ao usar a vasta cultura mexicana
em prol da sensível trama, a dupla de realizadores reconduz a jornada de Miguel
para um caminho bem mais complexo ao tecer um precioso comentário sobre a
maneira com que lidamos com as nossas memórias. Sem medo de soar rebuscado aos
olhos do público infantil, Unkrich e Molina enchem a tela de sentimento ao
mostrar o quão tênue pode a linha entre a busca do sucesso e a felicidade.
Fazendo um inteligente uso das espertas 'sidequest', o argumento permite que o
pequeno Miguel cresça naturalmente ao longa da história, atrelando a sua
jornada aos cativantes coadjuvantes, entre eles ao solitário Hector e o
estabanado cãozinho Dante. Muito mais do que uma simples concessão infantil,
aliás, o mascote se revela um dos personagens mais surpreendentes da película,
um alívio cômico inteligente que se torna uma espécie de guia dentro da
história.
Eis que, quando a trama parecia querer repousar num terreno mais seguro,
Viva: A Vida É uma Festa destrói as expectativas (e o coração) do público ao
levar a história para um lugar bem mais espinhoso. Assim como no seu último
grande trabalho, o clássico Toy Story 3, Lee Unkrich resolve tirar o máximo da
conexão entre os personagens, dos seus conflitos mais íntimos, nos brindando
com uma reviravolta digna dos melhores trabalhos da Pixar. Um contundente e
reflexivo choque de realidade que, acompanhando a gradativa mudança de tom
pensada a partir do segundo ato, alcança o seu ápice no emocionante clímax. Sem
apelar para o sentimentalismo, o longa fascina pela sua maturidade ao arrancar
não só lágrimas de tristeza, como também de alegria, realçando o 'background'
familiar ao defender a sua poderosa mensagem. Uma lição singela potencializada
pelo criativo uso da canção "Remember Me" e da latinidade proposta
pela energética trilha de Michael Giacchino (Up: Altas Aventuras). Embora não tenha o peso de hits
como 'Let It Go' e 'How Far I'll Go', dois sucessos das animações Disney, a
balada escrita por Kristen Anderson-Lopez e Robert Lopez se encaixa
perfeitamente ao longo da história, ganhando uma versão ora alegre, ora
melancólica, ora comovente. Num destes momentos, em especial, fica difícil
segurar as lágrimas.
E como se não bastasse a profundidade narrativa, Viva: A Vida é uma
Festa desponta como uma das produções mais virtuosamente impactantes da
história da Pixar. Com uma temática riquíssima em mãos, Lee Unkrich e Adrian
Molina elevam o patamar artístico do estúdio ao traduzir a mistura de cores,
costumes e figurinos do Dia de los Muertos mexicano, embalando a trama com
cenários imponentes, personagens texturizados, uma reluzente fotografia noturna em tons alaranjados e uma
imersiva construção de mundo. No momento em que o longa invade o universo dos
mortos, aliás, a ambientação se torna cada vez mais expressiva e espetacular,
uma variedade\exuberância cênica que só amplia a atmosfera de fascínio em torno
da película. O que fica bem claro, por exemplo, quando nos deparamos com a
festiva mansão do De La Cruz ou então a expansiva estação de trem. Dito isso,
encontrando o equilíbrio perfeito entre os predicados técnicos e os narrativos,
Viva comprova o triunfo da fórmula Pixar ao falar sobre fama, família e a nossa
postura em vida com uma dose de maturidade capaz de fazer qualquer um se
debulhar em lágrimas.
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