sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Viva: A Vida é uma Festa

Visualmente primoroso, Viva surpreende ao transitar por um terreno denso e adulto

Confesso que, num primeiro momento, Viva: A Vida é Uma Festa não me chamou tanto a atenção. Por mais que o visual, como de costume nas produções Pixar, saltasse aos olhos logo na primeira prévia, tematicamente o filme parecia trazer consigo aquela sensação de "já vi isso antes". Recentemente, inclusive, a excelente animação Festa no Céu (2014) havia explorado as tradições culturais mexicanas com riqueza e criatividade, o que só ajudou a reforçar a minha primeira impressão. Felizmente, existem muitas formas de se contar uma mesma história. Apesar das inegáveis semelhanças narrativas entre as suas obras, Viva comprova a genialidade da Pixar ao abordar a nossa relação com a morte sob um prisma denso e emotivamente adulto. Por mais que o espetacular visual colorido dê uma aparência infantil à trama, a película dirigida por Lee Unkrich (Toy Story 3) e Adrian Molina ganha um sincero escopo dramático a medida avança, refletindo sobre a fama, os vínculos familiares e o valor das memórias numa obra que permanece após os créditos finais. Uma obra revigorante que encanta e emociona graças à força da sua mensagem.



Curiosamente, porém, o primeiro ato de Viva: A Vida é Uma Festa parecia corroborar as minhas impressões iniciais. Com roteiro assinado pela própria dupla de diretores, ao lado de Jason Katz e Matthew Aldrich, o longa sugere um plot muito semelhante ao proposto por Festa no Céu, a jornada de um jovem aspirante a músico que, contrariando a vocação da sua família, decide seguir os seus sonhos. A diferença é que, enquanto na animação produzida por Guillermo Del Toro o protagonista pertencia a uma família de toureiros, em Viva o personagem central, o esperto Miguel, carregava a responsabilidade de se tornar mais um sapateiro da sua prole. Não demora muito, porém, para que possamos enxergar a ousadia do selo Pixar na história. Por mais que, inicialmente, o background dramático em torno da família não seja tão bem explorado assim, aos poucos os segredos por trás da "repressão musical" vão sendo revelados, preenchendo a trama com dilemas que eu, honestamente, não esperava ver numa animação. Com um afiado poder de síntese, a maneira com que o argumento estabelece o passado do protagonista é espertíssima, Viva, como dito acima, acompanha as peripécias de Miguel, um garoto apaixonado pela música que, em pleno Dia de Los Muertos, decide contrariar as ordens de sua controladora mãe e participar de uma premiação local. Seguindo os passos do seu ídolo, o saudoso cantor Ernesto de La Cruz, o jovem decide invadir o seu luxuoso túmulo e pegar emprestado o seu violão, sem saber que no primeiro acorde ele seria conduzido ao mundo dos mortos para uma viagem que mudaria o seu modo de enxergar a vida de uma vez por todos.


Embora peque ao não se aprofundar tanto na dinâmica familiar ao longo do primeiro ato, Lee Unkrich e Adrian Molina fogem do lugar comum ao tratar os sonhos musicais de Miguel dentro de um contexto mundano e realístico. Mais do que simplesmente se distanciar dos clichês, o roteiro é astuto ao revelar as consequências impostas pela fama, reforçando os conflitos familiares ao colocar em cheque as prioridades dos personagens. Sem querer revelar muito, além de brilhantemente introduzidos ao longo da trama, os motivos por trás da rigidez materna se mostram completamente universais, daqueles pensados para o público adulto. É quando o jovem invade o mundo dos mortos, entretanto, que Viva dá o seu "salto de qualidade". Magnífica ao usar a vasta cultura mexicana em prol da sensível trama, a dupla de realizadores reconduz a jornada de Miguel para um caminho bem mais complexo ao tecer um precioso comentário sobre a maneira com que lidamos com as nossas memórias. Sem medo de soar rebuscado aos olhos do público infantil, Unkrich e Molina enchem a tela de sentimento ao mostrar o quão tênue pode a linha entre a busca do sucesso e a felicidade. Fazendo um inteligente uso das espertas 'sidequest', o argumento permite que o pequeno Miguel cresça naturalmente ao longa da história, atrelando a sua jornada aos cativantes coadjuvantes, entre eles ao solitário Hector e o estabanado cãozinho Dante. Muito mais do que uma simples concessão infantil, aliás, o mascote se revela um dos personagens mais surpreendentes da película, um alívio cômico inteligente que se torna uma espécie de guia dentro da história.


Eis que, quando a trama parecia querer repousar num terreno mais seguro, Viva: A Vida É uma Festa destrói as expectativas (e o coração) do público ao levar a história para um lugar bem mais espinhoso. Assim como no seu último grande trabalho, o clássico Toy Story 3, Lee Unkrich resolve tirar o máximo da conexão entre os personagens, dos seus conflitos mais íntimos, nos brindando com uma reviravolta digna dos melhores trabalhos da Pixar. Um contundente e reflexivo choque de realidade que, acompanhando a gradativa mudança de tom pensada a partir do segundo ato, alcança o seu ápice no emocionante clímax. Sem apelar para o sentimentalismo, o longa fascina pela sua maturidade ao arrancar não só lágrimas de tristeza, como também de alegria, realçando o 'background' familiar ao defender a sua poderosa mensagem. Uma lição singela potencializada pelo criativo uso da canção "Remember Me" e da latinidade proposta pela energética trilha de Michael Giacchino (Up: Altas Aventuras). Embora não tenha o peso de hits como 'Let It Go' e 'How Far I'll Go', dois sucessos das animações Disney, a balada escrita por Kristen Anderson-Lopez e Robert Lopez se encaixa perfeitamente ao longo da história, ganhando uma versão ora alegre, ora melancólica, ora comovente. Num destes momentos, em especial, fica difícil segurar as lágrimas.


E como se não bastasse a profundidade narrativa, Viva: A Vida é uma Festa desponta como uma das produções mais virtuosamente impactantes da história da Pixar. Com uma temática riquíssima em mãos, Lee Unkrich e Adrian Molina elevam o patamar artístico do estúdio ao traduzir a mistura de cores, costumes e figurinos do Dia de los Muertos mexicano, embalando a trama com cenários imponentes, personagens texturizados, uma reluzente fotografia noturna em tons alaranjados e uma imersiva construção de mundo. No momento em que o longa invade o universo dos mortos, aliás, a ambientação se torna cada vez mais expressiva e espetacular, uma variedade\exuberância cênica que só amplia a atmosfera de fascínio em torno da película. O que fica bem claro, por exemplo, quando nos deparamos com a festiva mansão do De La Cruz ou então a expansiva estação de trem. Dito isso, encontrando o equilíbrio perfeito entre os predicados técnicos e os narrativos, Viva comprova o triunfo da fórmula Pixar ao falar sobre fama, família e a nossa postura em vida com uma dose de maturidade capaz de fazer qualquer um se debulhar em lágrimas. 

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