Paul Greengrass é um dos cineastas
mais enérgicos em atividade. Seus filmes são desconfortáveis, angustiantes e
acima de tudo realísticos. Uma assinatura própria que se torna mais evidente
graças ao seu apreço em recontar histórias verídicas. Com um estilo de direção “limpo”
e uma crítica visão de mundo, ele é do tipo que não se deixa interferir nos
seus dramas biográficos. Ao invés de escolher lados, uma opção rotineira em
Hollywood, Greengrass prefere valorizar o viés documental das suas produções, rompendo
com o maniqueísmo ao se preocupar em revelar o todo. Em expor o outro lado da
moeda, por mais hostil que ele possa ser. Seletivo na escolha dos seus
projetos, o diretor não costuma fugir da raia ao tocar em temas espinhosos dentro
da nossa história recente, usando os seus longas para escancarar a face mais vil do ser humano. O que fica claro em títulos como o elogiado Domingo Sangrento (2002),
um relato impiedoso sobre o massacre contra cidadãos irlandeses desarmados
durante um protesto pacífico, o desolador Voo United 93 (2006), uma enervante recriação
das últimas horas dos passageiros do voo que caiu em Boston durante os
atentados de 11\09, e o sufocante Capitão Philips (2013), um relato visceral sobre
o sequestro de um navio mercantil por piratas somalis. Nada mais previsível, portanto,
que fosse Paul Greengrass o homem por trás do contundente drama 22 de Julho, uma
produção original Netflix sobre o covarde atentado a um grupo indefeso de
jovens noruegueses durante um acampamento de verão. Num momento em que a
extrema-direita se faz ouvir ao redor do mundo com o seu discurso xenofóbico e
agressivo contra as minorias, o realizador é categórico ao usar a onda de
violência imposta por um indivíduo como o ponto de partida para um estudo maior
sobre as raízes do atentado, refletindo sobre a face mais vazia do
discurso extremista ao não se deixar intimidar por ameaças covardes.
Dividido em três atos bem
distintos, 22 de Julho é enfático ao combater o discurso de ódio, ao mostrar o
antes, o durante e principalmente o depois de uma tragédia. Como de costume nas
suas obras, o também roteirista Paul Greengrass é habilidoso ao ampliar o
escopo da trama, ao dar voz a uma vasta gama de figuras envolvidas no atentado,
usando os seus respectivos pontos de vista para que o espectador possa ter uma
visão plena e inquestionável sobre os fatos. Embora o filme seja todo falado
em Inglês, o que não chega a ser uma “liberdade poética” já que boa parte do
povo norueguês domina esta língua, o diretor começa a acertar no momento em que
decide rodar o filme em território local, usando atores locais, o que confere
um indiscutível peso ao longa. Sem a intenção de contemporizar por um segundo
sequer, Greengrass coloca o dedo na ferida ao logo de cara mostrar sob uma
perspectiva nua e crua o atroz atentado, narrando os frios passos do terrorista
Anders (Anders Danielsen Lie, assombroso) com uma perturbadora dose de
realismo. Em pouco menos de meia hora, Greengrass nos coloca no olho do
furacão, expondo a dor, o desespero, a vulnerabilidade e a irracionalidade dos
fatos num ‘mise en scene’ seco, feroz e revoltante. Uma daquelas cada vez mais
raras sequências que nos tira da “confortável” zona do espectador, nos
obrigando a reagir emocionalmente diante de tamanha covardia. É difícil assistir
tudo isso sem exprimir algum sentimento. Tudo soa muito verdadeiro aos olhos do
público. E a intenção me parece ser justamente essa. Mais do que simplesmente lembrar
do sofrimento daqueles que precocemente se foram, Greengrass parece “cobrar”
uma reação nossa, expor as consequências do discurso extremista da forma
mais clara, evitando encontrar justificativas banais ao tornar tudo o mais sem
sentido possível.
Após o impactante primeiro ato,
entretanto, Paul Greengrass resolve transitar por um terreno ligeiramente
inédito na sua filmografia. Por mais que o elemento dramático sempre seja muito
forte nas suas obras, em 22 de Julho ele decide se dedicar exclusivamente ao
gênero a partir do segundo ato, se distanciando do seu adrenalizado jeito de
contar histórias ao investigar as sequelas do atentado na nova rotina dos
sobreviventes. Embora siga narrando os fatos sob múltiplas perspectivas, o
realizador é habilidoso ao se aprofundar no cerne da questão, criando um
inesperado paralelo entre uma das vítimas, o ferido física e emocionalmente
Viljar (Jonas Strand Gravli, intenso), e o seu encarcerado algoz. Apesar de
separados na maior parte da trama, Greengrass é astuto ao usar o vazio como uma
espécie de elo entre os seus respectivos arcos narrativos. Ao se concentrar na “jornada”
dos dois, o realizador escancara tanto o sofrimento do jovem sobrevivente na luta
para retomar a sua rotina após o trauma, quanto a frieza do terrorista numa
errática tentativa de mostrar que o seu crime tinha algum sentido. Por mais que
os dois personagens sejam completamente distintos, Greengrass é cuidadoso ao
aproxima-los, ao esmiuçar os seus sentimentos mais íntimos, indo além das
explicações óbvias ao através deles refletir sobre a origem do discurso de
ódio.
Numa abordagem genuinamente humana, pelo lado de Viljar vemos um jovem pacífico
quebrado por dentro, um tipo fragilizado pelo ataque dividido entre a esperança
e a raiva, entre a resiliência e o desânimo. Em um ou dois momentos, Greengrass
faz questão de mostrar a face mais agressiva do abalado protagonista, evidenciando
o perigoso impacto da violência na identidade de um indivíduo até então pacato
e gentil. Já pelo lado de Anders nos deparamos com um homem frio, aparentemente
calculista, mas que, à medida que a investigação do seu advogado avança, se
torna cada vez mais frágil, oco e incompreensível. Sem a intenção de julgá-lo,
Greengrass é corajoso ao investigar o seu passado, a disfuncionalidade da sua
família, o vazio dos seus preconceituosos ideais. Embora nenhuma das mazelas exibidas
justifique e\ou o isente dos seus atos, é interessante ver o esmero do diretor
em tratá-lo como uma criatura digna de pena, o produto da manipulação de um
perigoso nicho da sociedade. Com isso, Greengrass não só se insurge contra a politização do atentado defendida pelo
autor, mas principalmente contra a falta de sentido do seu discurso extremista. O que ajuda a expor a face mais insana do terrorista. Uma visão pessoal sobre esta infame figura.
No momento em que o argumento se
distancia das figuras centrais, entretanto, 22 de Julho se torna mais lento do
que deveria. Figuras como os pais de Viljar, a afetuosa Lara (Seda Witt) e o
consternado primeiro ministro são subaproveitado pelo roteiro, esvaziando o
impacto, em especial, do processo de investigação do caso e da discussão quanto
a eventual negligência do governo norueguês. Além disso, a impressão que fica é
que Paul Greengrass perde algumas oportunidades em ampliar ainda mais o escopo
da trama, em especial quando o assunto é a figura do advogado interpretado pelo comedido Jon
Øigarden. Um dos personagens mais complexos do longa, ele ganha um arco sólido
e revelador, principalmente quando o assunto é a desconfortável relação com
o seu cliente. Enquanto se concentra neste vínculo, Greengrass é enfático ao
defender o direito de justiça, se opondo contra o desejo de vingança ao
valorizar a profissão do advogado, ao estabelecer a diferença entre a opinião
pessoal do defensor público e a sua postura profissional. Ao longo da trama,
porém, o realizador deixa a passar a oportunidade de questionar também o
extremismo do cidadão comum, daquele capaz de ameaçar sem medir as
consequências. Na verdade, por mais que a posição de vulnerabilidade do advogado
fique clara, a crítica em si fica muito nas entrelinhas, o que reduz o seu
peso. Em alguns momentos, o roteiro parece se repetir demais em
torno da abalada figura de Viljar, o que explica as exageradas duas
horas e vinte de projeção. É bom frisar, entretanto, que 22 de Julho nunca se
torna um filme cansativo, muito em função da capacidade de Greengrass em
realçar a realidade dos fatos. Vide a sóbria sequência do julgamento, onde, com
movimentos de câmera suave, enquadramentos simples e uma montagem retilínea, ele torna tudo o mais sincero e emotivo para o espectador ao capturar o misto de expressões dos seus personagens.
Num momento em que discursos
xenofóbicos\preconceituosos tomam conta das nossas redes sociais, 22 de Julho
surge como um grito de alerta chocante, um relato desconcertante sobre o quão
nocivo e violento pode ser o “eco” dos discursos de ódio. Impecável ao
valorizar os contrastes em torno desta trágica história real, Paul Greengrass é
categórico ao mostrar o impacto da irracionalidade na rotina da considerada
pacata sociedade norueguesa, se insurgindo contra esta onda extremista ao realçar
o vazio por trás deste rastro de violência e intolerância. Um relato triste, pesado, mas indiscutivelmente necessário.
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