quarta-feira, 10 de outubro de 2018

22 de Julho

Um relato duro sobre a insanidade e a covardia do extremismo

Paul Greengrass é um dos cineastas mais enérgicos em atividade. Seus filmes são desconfortáveis, angustiantes e acima de tudo realísticos. Uma assinatura própria que se torna mais evidente graças ao seu apreço em recontar histórias verídicas. Com um estilo de direção “limpo” e uma crítica visão de mundo, ele é do tipo que não se deixa interferir nos seus dramas biográficos. Ao invés de escolher lados, uma opção rotineira em Hollywood, Greengrass prefere valorizar o viés documental das suas produções, rompendo com o maniqueísmo ao se preocupar em revelar o todo. Em expor o outro lado da moeda, por mais hostil que ele possa ser. Seletivo na escolha dos seus projetos, o diretor não costuma fugir da raia ao tocar em temas espinhosos dentro da nossa história recente, usando os seus longas para escancarar a face mais vil do ser humano. O que fica claro em títulos como o elogiado Domingo Sangrento (2002), um relato impiedoso sobre o massacre contra cidadãos irlandeses desarmados durante um protesto pacífico, o desolador Voo United 93 (2006), uma enervante recriação das últimas horas dos passageiros do voo que caiu em Boston durante os atentados de 11\09, e o sufocante Capitão Philips (2013), um relato visceral sobre o sequestro de um navio mercantil por piratas somalis. Nada mais previsível, portanto, que fosse Paul Greengrass o homem por trás do contundente drama 22 de Julho, uma produção original Netflix sobre o covarde atentado a um grupo indefeso de jovens noruegueses durante um acampamento de verão. Num momento em que a extrema-direita se faz ouvir ao redor do mundo com o seu discurso xenofóbico e agressivo contra as minorias, o realizador é categórico ao usar a onda de violência imposta por um indivíduo como o ponto de partida para um estudo maior sobre as raízes do atentado, refletindo sobre a face mais vazia do discurso extremista ao não se deixar intimidar por ameaças covardes. 



Dividido em três atos bem distintos, 22 de Julho é enfático ao combater o discurso de ódio, ao mostrar o antes, o durante e principalmente o depois de uma tragédia. Como de costume nas suas obras, o também roteirista Paul Greengrass é habilidoso ao ampliar o escopo da trama, ao dar voz a uma vasta gama de figuras envolvidas no atentado, usando os seus respectivos pontos de vista para que o espectador possa ter uma visão plena e inquestionável sobre os fatos. Embora o filme seja todo falado em Inglês, o que não chega a ser uma “liberdade poética” já que boa parte do povo norueguês domina esta língua, o diretor começa a acertar no momento em que decide rodar o filme em território local, usando atores locais, o que confere um indiscutível peso ao longa. Sem a intenção de contemporizar por um segundo sequer, Greengrass coloca o dedo na ferida ao logo de cara mostrar sob uma perspectiva nua e crua o atroz atentado, narrando os frios passos do terrorista Anders (Anders Danielsen Lie, assombroso) com uma perturbadora dose de realismo. Em pouco menos de meia hora, Greengrass nos coloca no olho do furacão, expondo a dor, o desespero, a vulnerabilidade e a irracionalidade dos fatos num ‘mise en scene’ seco, feroz e revoltante. Uma daquelas cada vez mais raras sequências que nos tira da “confortável” zona do espectador, nos obrigando a reagir emocionalmente diante de tamanha covardia. É difícil assistir tudo isso sem exprimir algum sentimento. Tudo soa muito verdadeiro aos olhos do público. E a intenção me parece ser justamente essa. Mais do que simplesmente lembrar do sofrimento daqueles que precocemente se foram, Greengrass parece “cobrar” uma reação nossa, expor as consequências do discurso extremista da forma mais clara, evitando encontrar justificativas banais ao tornar tudo o mais sem sentido possível. 


Após o impactante primeiro ato, entretanto, Paul Greengrass resolve transitar por um terreno ligeiramente inédito na sua filmografia. Por mais que o elemento dramático sempre seja muito forte nas suas obras, em 22 de Julho ele decide se dedicar exclusivamente ao gênero a partir do segundo ato, se distanciando do seu adrenalizado jeito de contar histórias ao investigar as sequelas do atentado na nova rotina dos sobreviventes. Embora siga narrando os fatos sob múltiplas perspectivas, o realizador é habilidoso ao se aprofundar no cerne da questão, criando um inesperado paralelo entre uma das vítimas, o ferido física e emocionalmente Viljar (Jonas Strand Gravli, intenso), e o seu encarcerado algoz. Apesar de separados na maior parte da trama, Greengrass é astuto ao usar o vazio como uma espécie de elo entre os seus respectivos arcos narrativos. Ao se concentrar na “jornada” dos dois, o realizador escancara tanto o sofrimento do jovem sobrevivente na luta para retomar a sua rotina após o trauma, quanto a frieza do terrorista numa errática tentativa de mostrar que o seu crime tinha algum sentido. Por mais que os dois personagens sejam completamente distintos, Greengrass é cuidadoso ao aproxima-los, ao esmiuçar os seus sentimentos mais íntimos, indo além das explicações óbvias ao através deles refletir sobre a origem do discurso de ódio. 


Numa abordagem genuinamente humana, pelo lado de Viljar vemos um jovem pacífico quebrado por dentro, um tipo fragilizado pelo ataque dividido entre a esperança e a raiva, entre a resiliência e o desânimo. Em um ou dois momentos, Greengrass faz questão de mostrar a face mais agressiva do abalado protagonista, evidenciando o perigoso impacto da violência na identidade de um indivíduo até então pacato e gentil. Já pelo lado de Anders nos deparamos com um homem frio, aparentemente calculista, mas que, à medida que a investigação do seu advogado avança, se torna cada vez mais frágil, oco e incompreensível. Sem a intenção de julgá-lo, Greengrass é corajoso ao investigar o seu passado, a disfuncionalidade da sua família, o vazio dos seus preconceituosos ideais. Embora nenhuma das mazelas exibidas justifique e\ou o isente dos seus atos, é interessante ver o esmero do diretor em tratá-lo como uma criatura digna de pena, o produto da manipulação de um perigoso nicho da sociedade. Com isso, Greengrass não só se insurge contra a politização do atentado defendida pelo autor, mas principalmente contra a falta de sentido do seu discurso extremista. O que ajuda a expor a face mais insana do terrorista. Uma visão pessoal sobre esta infame figura.


No momento em que o argumento se distancia das figuras centrais, entretanto, 22 de Julho se torna mais lento do que deveria. Figuras como os pais de Viljar, a afetuosa Lara (Seda Witt) e o consternado primeiro ministro são subaproveitado pelo roteiro, esvaziando o impacto, em especial, do processo de investigação do caso e da discussão quanto a eventual negligência do governo norueguês. Além disso, a impressão que fica é que Paul Greengrass perde algumas oportunidades em ampliar ainda mais o escopo da trama, em especial quando o assunto é a figura do advogado interpretado pelo comedido Jon Øigarden. Um dos personagens mais complexos do longa, ele ganha um arco sólido e revelador, principalmente quando o assunto é a desconfortável relação com o seu cliente. Enquanto se concentra neste vínculo, Greengrass é enfático ao defender o direito de justiça, se opondo contra o desejo de vingança ao valorizar a profissão do advogado, ao estabelecer a diferença entre a opinião pessoal do defensor público e a sua postura profissional. Ao longo da trama, porém, o realizador deixa a passar a oportunidade de questionar também o extremismo do cidadão comum, daquele capaz de ameaçar sem medir as consequências. Na verdade, por mais que a posição de vulnerabilidade do advogado fique clara, a crítica em si fica muito nas entrelinhas, o que reduz o seu peso. Em alguns momentos, o roteiro parece se repetir demais em torno da abalada figura de Viljar, o que explica as exageradas duas horas e vinte de projeção. É bom frisar, entretanto, que 22 de Julho nunca se torna um filme cansativo, muito em função da capacidade de Greengrass em realçar a realidade dos fatos. Vide a sóbria sequência do julgamento, onde, com movimentos de câmera suave, enquadramentos simples e uma montagem retilínea, ele torna tudo o mais sincero e emotivo para o espectador ao capturar o misto de expressões dos seus personagens.


Num momento em que discursos xenofóbicos\preconceituosos tomam conta das nossas redes sociais, 22 de Julho surge como um grito de alerta chocante, um relato desconcertante sobre o quão nocivo e violento pode ser o “eco” dos discursos de ódio. Impecável ao valorizar os contrastes em torno desta trágica história real, Paul Greengrass é categórico ao mostrar o impacto da irracionalidade na rotina da considerada pacata sociedade norueguesa, se insurgindo contra esta onda extremista ao realçar o vazio por trás deste rastro de violência e intolerância. Um relato triste, pesado, mas indiscutivelmente necessário. 

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