quarta-feira, 25 de julho de 2018

Pantera Negra

Nobreza, tradição e representatividade

Quando o assunto é a análise de um grande blockbuster, o ‘hype’ pode ser taxado como um grande vilão para aqueles que querem manifestar uma opinião sincera sobre determinado lançamento. Tal qual um doping, a expectativa gera um sentimento de euforia involuntário, o que pode ora derrubar o seu senso crítico quando o resultado é muito positivo, ora aguçar o seu faro para as falhas quando o material decepciona. Nos últimos anos, inclusive, o que eu tenho visto são filmes perdendo “prestígio” junto a mídia especializada nas primeiras semanas pós-lançamento. Após o ‘hype’ inicial, a aclamação logo dá espaço aos questionamentos. Aos poucos os problemas começam a ser realçados, justamente quando a adrenalina da estreia parece baixar. No olho do furacão das grandes produções, o Universo Cinematográfico da Marvel tem atraído as atenções neste sentido nas últimas décadas. Para os detratores, a crítica tem sido condescendente com o nível das produções da companhia. Basta entrarmos numa sessão de comentários de um site de Cultura Pop para percebemos que a maioria das opiniões negativas está ligada ao potencial de esquecimento das obras do MCU. Ao impacto do fator ‘hype’ na equação Marvel. E confesso que este não é um argumento inválido. Eu mesmo já me peguei revendo alguns (poucos, é verdade) títulos da Marvel posteriormente e o resultado não foi o mesmo. Por isso decidi fazer algo novo. Optei por fugir do ‘hype’. Esperar o clima de euforia cair, a histeria coletiva em torno de tal projeto perder a força e só então o assistir. Com a consciência “tranquila” neste sentido, posso dizer que Pantera Negra é - indiscutivelmente - o filme mais importante da Marvel Studios. Após ficar atrás da concorrência quando o assunto foi a representatividade feminina no gênero, ponto para a DC e o empolgante Mulher-Maravilha, a empresa correu atrás do prejuízo com agilidade, fincando os dois pés na realidade ao entregar o super-herói negro que o cinema precisava. Sob a refinada batuta do talentoso Ryan Coogler, o longa exalta a nobreza da cultura negra com rara energia, respeitando o doloroso passado de uma raça numa obra que não se omite ao explorar o contexto histórico. E isso, obviamente, sem abrir mão do fator entretenimento que, por trás das sólidas discussões morais em torno da trama, guia a ação exaltando com propriedade as raízes afro. 



Com roteiro assinado pelo próprio Ryan Coogler, ao lado de Joe Robert Cole, Pantera Negra faz um primoroso uso da sua trama palaciana ao reconhecer\resgatar a nobreza de uma cultura corrompida pela crueldade dos colonizadores. Wakanda surge então como uma representação da África pura, inconquistável, uma região rica, fértil, com tradições fortes, sustentada pela sua matéria prima, o vibranium, e pela inteligência do seu povo. Um vislumbre que, guardada as devidas proporções ficcionais, reflete sobre qual o seria o destino da região sem a interferência do homem branco. Uma sacada de mestre que não só exalta a representatividade étnica proposta pelo longa, como também leva ao principal debate ético da trama: a inércia dos monarcas locais diante da “destruição” dos povos vizinhos. Com base nesta delicada questão, Coogler é habilidoso ao, num primeiro momento, situar o público quanto a posição do príncipe T’Challa (Chadwick Boseman) após os eventos mostrados em Capitão América: Guerra Civil (2017) e a sua errática situação enquanto futuro rei. Sem tempo a perder, o argumento enche a tela de ritmo ao introduzir a vasta (e fascinante) gama de personagens ligados a Wakanda, estabelecendo a divisão de tribos, as suas respectivas funções dentro deste cenário e os velados interesses por trás da posse do Pantera Negra. Por mais que o MCU seja mestre na arte de trabalhar com inúmeros protagonistas simultaneamente, o que Coogler faz aqui é algo digno de aplausos. Em pouco mais de duas horas de projeção, o realizador é astuto ao torna-los únicos para o público. Ao valorizar a importância e o que de cada um deles tem a oferecer para a trama. Seja a fidelidade ‘badass’ da Dora Milaje Okoe (Danai Gurira), a impetuosidade imatura da cientista Shuri (Letitia Wright), a imponência arcaica do rebelde líder M’Baku (Winston Duke), a ferocidade passional da “ex” Nakia (Lupyta Nyong’o) e a cumplicidade do intenso W’Kabi (Daniel Kaluuya). Desde Guardiões da Galáxia (2013), na verdade, uma produção da Marvel não explorava tão bem a dinâmica entre os personagens, o que explica a fluidez com que a história avança.


Impecável ao trabalhar com elementos típicos das tramas palacianas, entre eles o crescente jogo de poder entre os líderes, as conspirações, os traumas passados e as eventuais traições, Ryan Coogler eleva o nível da película no momento em que decide valorizar o contexto histórico. Consciente da importância sociocultural da sua obra, o realizador norte-americano é corajoso ao trazer a realidade para o centro da trama, um fato até então inédito dentro do MCU. Indo além da questão da representatividade em si, Coogler é incisivo ao debater o papel do negro dentro de uma sociedade globalizada, ao refletir sobre a apatia coletiva quanto a desigualdade, o abandono, a falta de oportunidades e a violência racial ao redor do mundo. Muita mais do que um simples vilão, o feroz Erik Killmonger (Michael B. Jordan) surge assim como um agente catalisador da crítica. Um filho “perdido” deste reino próspero, o antagonista se revela o produto da inércia histórica de Wakanda (entenda Primeiro Mundo) quanto ao destino dos seus semelhantes. Na verdade, o argumento é particularmente cuidadoso ao realçar tanto a vulnerabilidade de T’Chala diante deste contexto, quanto o corrompido senso de justiça de Killmonger após anos esquecido, criando uma rixa íntima sustentada por complexos dilemas morais e um robusto ‘background’ familiar. Se por um lado o vilão tem razão em questionar o protecionismo (pretensamente egoísta, segundo ele) de Wakanda diante da miséria ao redor do mundo, por outro lado o herói tem razão em defender que a “abertura” do seu país poderia trazer mais problemas do que soluções. As motivações de ambas as partes são justas. Apesar disso, é interessante ver o esmero de Coogler em escancarar também as diferenças entre os dois. Como se não bastasse o nítido distanciamento comportamental, a polidez de T’Challa contrasta com o comportamento ‘gangsta’ do ocidental Erik, o realizador é inteligente ao gradativamente entender a personalidade do raivoso vilão, ao imprimir nele as sequelas de uma vida sofrida, marcada por traumas e desilusões, se distanciando dos “nós contra eles” ao mostrar o quão tênue pode ser a linha entre a justiça e a vingança, entre o salvador e o tirano. O resultado é um arco central denso, recheado de questões genuinamente urbanas, que faz de Pantera Negra um dos poucos filmes da Marvel Studios a não depender das suas empolgantes sequências de ação.


Como um dos mais genuínos representantes do MCU, entretanto, é óbvio que Pantera Negra cumpre a sua missão quando o assunto é o fator entretenimento. Por mais que o gritante CGI fique aquém em relação às principais produções do estúdio, se mostrando mais evidente que o ideal em muitas cenas, Ryan Coogler faz um virtuoso trabalho na concepção da rica Wakanda. Com raízes africanas, o colorido cenário está entre os pontos altos da película, uma mistura do ‘hi-tech’ com o tribal potencializada pelo inventivo design de produção, pelos habitáveis set e pelos fantásticos figurinos. Uma construção de mundo fascinante valorizada pela saturada fotografia reluzente de Rachel Morrison (Mudbound), que, com extremo bom gosto, ajuda a criar uma identidade visual única para o personagem. Um predicado que, indiscutivelmente, se reflete nas impactantes sequências de ação. Por mais que o embate final não seja dos mais memoráveis, justamente quando o filme opta por aumentar a escala da ação, Coogler, repetindo o seu ótimo trabalho em Creed: Nascido para Lutar, compensa ao caprichar nos singulares embates físicos. Com um invejável pulso narrativo, o realizador extrai o máximo do seu versátil elenco, exaltando a fisicalidade deles em sequências ágeis, imersivas e brilhantemente coreografadas. A cena do cassino clandestino, por si só, está entre as melhores nestes dez anos de MCU, um ‘mise en scene’ insano marcado pela ação simultânea e pelas magníficas performances de Danai Gurira e Lupita Nyong’o. 


Além disso, Ryan Coogler é habilidoso ao tirar o máximo proveito da tecnologia de Wakanda, reforçando o senso de ineditismo da película ao investir em gadgets descolados, em armas poderosas e em criativos efeitos visuais. O que, diga-se de passagem, me lembra da radiante atuação da promissora Letitia Wright, que, com uma energia moleca e um convincente entusiasmo, se torna a grande ladra de cenas da película. Por falar no elenco, enquanto Chadwick Boseman repete o seu intenso trabalho na composição do introspectivo T’Challa, vide o seu esmero na criação do sotaque e na construção do seu imponente personagem, Michael B. Jordan se coloca de vez entre os grandes astros da sua geração ao tirar do papel o agressivo Killmonger. Num dos melhores vilões recentes da MCU, o eclético ator extrai o máximo do texto de Coogler, criando um antagonista multifacetado. Um tipo capaz de provocar um misto de sensações com carisma e sentimento. Me arrisco a dizer, inclusive, que, na transição para o último ato, Coogler peca ao se concentrar exageradamente na face mais vilanesca do personagem, subaproveitando algumas emoções reprimidas dele e a própria carga dramática de Jordan. Em contrapartida, o diretor surpreende ao fazer um inspirado uso da dupla Martin Freeman e Andy Serkis, realçando (outra vez) o esmero da Marvel em mover a sua engrenagem ao torna-los peças chaves do roteiro. O ardiloso vilão Ullises Klau, aliás, merece uma menção especial, principalmente por protagonizar alguns dos momentos mais divertidos da película.


No embalo da arrepiante trilha sonora de Ludwig Göransson (Fruitvale Station), que, no ritmo dos riffs do talento rapper Kendrick Lamar, transita entre o afro, o rap e o hip-hop com maestria, Pantera Negra faz jus as expectativas ao se revelar uma obra recheada de estilo do primeiro ao último minuto de projeção. Sem medo de imprimir a sua reconhecível visão de realidade num universo tão bem consolidado quanto o MCU, Ryan Coogler reflete sobre o passado e o presente da raça negra com desenvoltura, conseguindo sair em defesa do poder da igualdade em um mundo globalizado enquanto reverencia a majestosa, inestimável e frequentemente esquecida cultura africana. Finalmente temos super-herói negro capaz de sair das sombras, capaz de “brigar” em condições igualitárias com qualquer outro gigante do gênero. O triunfo nas bilheterias não me deixa mentir.

Um comentário:

JOTAT10 disse...

Finalmente apareceu na HQ da MARVEL um herói NEGRO, fiquei contente, não tive a chance de assistir ainda, mas pelas críticas de quem entende do verdadeiro MOVIE é um filme muito bom e que terá uma sequência de outros. Vamos aguardar e vou assistir agora que saiu dos cinemas e vem pra tela pequena, digo a TV PAGA.