Quando o assunto é a análise de
um grande blockbuster, o ‘hype’ pode ser taxado como um grande vilão para aqueles
que querem manifestar uma opinião sincera sobre determinado lançamento. Tal
qual um doping, a expectativa gera um sentimento de euforia involuntário, o que
pode ora derrubar o seu senso crítico quando o resultado é muito positivo, ora aguçar
o seu faro para as falhas quando o material decepciona. Nos últimos anos, inclusive,
o que eu tenho visto são filmes perdendo “prestígio” junto a mídia
especializada nas primeiras semanas pós-lançamento. Após o ‘hype’ inicial, a
aclamação logo dá espaço aos questionamentos. Aos poucos os problemas começam a
ser realçados, justamente quando a adrenalina da estreia parece baixar. No olho
do furacão das grandes produções, o Universo Cinematográfico da Marvel tem
atraído as atenções neste sentido nas últimas décadas. Para os detratores, a crítica
tem sido condescendente com o nível das produções da companhia. Basta entrarmos
numa sessão de comentários de um site de Cultura Pop para percebemos que a
maioria das opiniões negativas está ligada ao potencial de esquecimento das
obras do MCU. Ao impacto do fator ‘hype’ na equação Marvel. E confesso que este
não é um argumento inválido. Eu mesmo já me peguei revendo alguns (poucos, é
verdade) títulos da Marvel posteriormente e o resultado não foi o mesmo. Por
isso decidi fazer algo novo. Optei por fugir do ‘hype’. Esperar o clima de
euforia cair, a histeria coletiva em torno de tal projeto perder a força e só então
o assistir. Com a consciência “tranquila” neste sentido, posso dizer que
Pantera Negra é - indiscutivelmente - o filme mais importante da Marvel
Studios. Após ficar atrás da concorrência quando o assunto foi a representatividade
feminina no gênero, ponto para a DC e o empolgante Mulher-Maravilha, a empresa
correu atrás do prejuízo com agilidade, fincando os dois pés na realidade ao
entregar o super-herói negro que o cinema precisava. Sob a refinada batuta do
talentoso Ryan Coogler, o longa exalta a nobreza da cultura negra com rara
energia, respeitando o doloroso passado de uma raça numa obra que não se omite
ao explorar o contexto histórico. E isso, obviamente, sem abrir mão do fator
entretenimento que, por trás das sólidas discussões morais em torno da trama, guia
a ação exaltando com propriedade as raízes afro.
Com roteiro assinado pelo próprio
Ryan Coogler, ao lado de Joe Robert Cole, Pantera Negra faz um primoroso uso da
sua trama palaciana ao reconhecer\resgatar a nobreza de uma cultura corrompida
pela crueldade dos colonizadores. Wakanda surge então como uma representação da
África pura, inconquistável, uma região rica, fértil, com tradições fortes,
sustentada pela sua matéria prima, o vibranium, e pela inteligência do seu
povo. Um vislumbre que, guardada as devidas proporções ficcionais, reflete
sobre qual o seria o destino da região sem a interferência do homem branco. Uma
sacada de mestre que não só exalta a representatividade étnica proposta pelo
longa, como também leva ao principal debate ético da trama: a inércia dos
monarcas locais diante da “destruição” dos povos vizinhos. Com base nesta
delicada questão, Coogler é habilidoso ao, num primeiro momento, situar o
público quanto a posição do príncipe T’Challa (Chadwick Boseman) após os eventos mostrados em Capitão América: Guerra
Civil (2017) e a sua errática situação enquanto futuro rei. Sem tempo a perder,
o argumento enche a tela de ritmo ao introduzir a vasta (e fascinante) gama de
personagens ligados a Wakanda, estabelecendo a divisão de tribos, as suas
respectivas funções dentro deste cenário e os velados interesses por trás da
posse do Pantera Negra. Por mais que o MCU seja mestre na arte de trabalhar com
inúmeros protagonistas simultaneamente, o que Coogler faz aqui é algo digno de
aplausos. Em pouco mais de duas horas de projeção, o realizador é astuto ao torna-los
únicos para o público. Ao valorizar a importância e o que de cada um deles tem
a oferecer para a trama. Seja a fidelidade ‘badass’ da Dora Milaje Okoe (Danai
Gurira), a impetuosidade imatura da cientista Shuri (Letitia Wright), a imponência arcaica do rebelde líder M’Baku (Winston
Duke), a ferocidade passional da “ex” Nakia (Lupyta Nyong’o) e a cumplicidade
do intenso W’Kabi (Daniel Kaluuya). Desde Guardiões da Galáxia (2013), na
verdade, uma produção da Marvel não explorava tão bem a dinâmica entre os
personagens, o que explica a fluidez com que a história avança.
Impecável ao trabalhar com
elementos típicos das tramas palacianas, entre eles o crescente jogo de poder
entre os líderes, as conspirações, os traumas passados e as eventuais traições,
Ryan Coogler eleva o nível da película no momento em que decide valorizar o
contexto histórico. Consciente da importância sociocultural da sua obra, o
realizador norte-americano é corajoso ao trazer a realidade para o centro da
trama, um fato até então inédito dentro do MCU. Indo além da questão da
representatividade em si, Coogler é incisivo ao debater o papel do negro dentro
de uma sociedade globalizada, ao refletir sobre a apatia coletiva quanto a
desigualdade, o abandono, a falta de oportunidades e a violência racial ao
redor do mundo. Muita mais do que um simples vilão, o feroz Erik Killmonger
(Michael B. Jordan) surge assim como um agente catalisador da crítica. Um filho
“perdido” deste reino próspero, o antagonista se revela o produto da inércia
histórica de Wakanda (entenda Primeiro Mundo) quanto ao destino dos seus
semelhantes. Na verdade, o argumento é particularmente cuidadoso ao realçar tanto
a vulnerabilidade de T’Chala diante deste contexto, quanto o corrompido senso
de justiça de Killmonger após anos esquecido, criando uma rixa íntima sustentada
por complexos dilemas morais e um robusto ‘background’ familiar. Se por um lado
o vilão tem razão em questionar o protecionismo (pretensamente egoísta, segundo
ele) de Wakanda diante da miséria ao redor do mundo, por outro lado o herói tem
razão em defender que a “abertura” do seu país poderia trazer mais problemas do
que soluções. As motivações de ambas as partes são justas. Apesar disso, é
interessante ver o esmero de Coogler em escancarar também as diferenças entre
os dois. Como se não bastasse o nítido distanciamento comportamental, a polidez
de T’Challa contrasta com o comportamento ‘gangsta’ do ocidental Erik, o
realizador é inteligente ao gradativamente entender a personalidade do raivoso
vilão, ao imprimir nele as sequelas de uma vida sofrida, marcada por traumas e
desilusões, se distanciando dos “nós contra eles” ao mostrar o quão tênue pode
ser a linha entre a justiça e a vingança, entre o salvador e o tirano. O
resultado é um arco central denso, recheado de questões genuinamente urbanas, que
faz de Pantera Negra um dos poucos filmes da Marvel Studios a não depender das
suas empolgantes sequências de ação.
Como um dos mais genuínos
representantes do MCU, entretanto, é óbvio que Pantera Negra cumpre a sua
missão quando o assunto é o fator entretenimento. Por mais que o gritante CGI
fique aquém em relação às principais produções do estúdio, se mostrando mais
evidente que o ideal em muitas cenas, Ryan Coogler faz um virtuoso trabalho na concepção
da rica Wakanda. Com raízes africanas, o colorido cenário está entre os pontos
altos da película, uma mistura do ‘hi-tech’ com o tribal potencializada pelo
inventivo design de produção, pelos habitáveis set e pelos fantásticos
figurinos. Uma construção de mundo fascinante valorizada pela saturada
fotografia reluzente de Rachel Morrison (Mudbound), que, com extremo bom gosto,
ajuda a criar uma identidade visual única para o personagem. Um predicado que,
indiscutivelmente, se reflete nas impactantes sequências de ação. Por mais que
o embate final não seja dos mais memoráveis, justamente quando o filme opta por
aumentar a escala da ação, Coogler, repetindo o seu ótimo trabalho em Creed:
Nascido para Lutar, compensa ao caprichar nos singulares embates físicos. Com
um invejável pulso narrativo, o realizador extrai o máximo do seu versátil
elenco, exaltando a fisicalidade deles em sequências ágeis, imersivas e
brilhantemente coreografadas. A cena do cassino clandestino, por si só, está
entre as melhores nestes dez anos de MCU, um ‘mise en scene’ insano marcado
pela ação simultânea e pelas magníficas performances de Danai Gurira e Lupita Nyong’o.
Além disso, Ryan Coogler é habilidoso ao tirar o máximo proveito da tecnologia de
Wakanda, reforçando o senso de ineditismo da película ao investir em gadgets
descolados, em armas poderosas e em criativos efeitos visuais. O que, diga-se
de passagem, me lembra da radiante atuação da promissora Letitia Wright, que,
com uma energia moleca e um convincente entusiasmo, se torna a grande ladra de
cenas da película. Por falar no elenco, enquanto Chadwick Boseman repete o seu
intenso trabalho na composição do introspectivo T’Challa, vide o seu esmero na
criação do sotaque e na construção do seu imponente personagem, Michael B.
Jordan se coloca de vez entre os grandes astros da sua geração ao tirar do
papel o agressivo Killmonger. Num dos melhores vilões recentes da MCU, o
eclético ator extrai o máximo do texto de Coogler, criando um antagonista multifacetado.
Um tipo capaz de provocar um misto de sensações com carisma e sentimento. Me arrisco
a dizer, inclusive, que, na transição para o último ato, Coogler peca ao se
concentrar exageradamente na face mais vilanesca do personagem, subaproveitando
algumas emoções reprimidas dele e a própria carga dramática de Jordan. Em
contrapartida, o diretor surpreende ao fazer um inspirado uso da dupla Martin
Freeman e Andy Serkis, realçando (outra vez) o esmero da Marvel em mover a sua
engrenagem ao torna-los peças chaves do roteiro. O ardiloso vilão Ullises Klau,
aliás, merece uma menção especial, principalmente por protagonizar alguns dos
momentos mais divertidos da película.
No embalo da arrepiante trilha
sonora de Ludwig Göransson (Fruitvale Station), que, no ritmo dos riffs do
talento rapper Kendrick Lamar, transita entre o afro, o rap e o hip-hop com
maestria, Pantera Negra faz jus as expectativas ao se revelar uma obra recheada
de estilo do primeiro ao último minuto de projeção. Sem medo de imprimir a sua reconhecível
visão de realidade num universo tão bem consolidado quanto o MCU, Ryan Coogler reflete
sobre o passado e o presente da raça negra com desenvoltura, conseguindo sair
em defesa do poder da igualdade em um mundo globalizado enquanto reverencia a majestosa,
inestimável e frequentemente esquecida cultura africana. Finalmente temos
super-herói negro capaz de sair das sombras, capaz de “brigar” em condições
igualitárias com qualquer outro gigante do gênero. O triunfo nas bilheterias
não me deixa mentir.
Um comentário:
Finalmente apareceu na HQ da MARVEL um herói NEGRO, fiquei contente, não tive a chance de assistir ainda, mas pelas críticas de quem entende do verdadeiro MOVIE é um filme muito bom e que terá uma sequência de outros. Vamos aguardar e vou assistir agora que saiu dos cinemas e vem pra tela pequena, digo a TV PAGA.
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