Os EUA de Taylor Sheridan não é
um lugar colorido. Roteirista de mão cheia, o realizador tem se firmado como
uma das vozes mais críticas do cinema norte-americano. Seus filmes, embora
estruturalmente voltados para o grande público, não se omitem na hora de
colocar o “dedo na ferida”. Sem a intenção de contar histórias, com o perdão da
redundância, já contadas, ele ambienta os seus projetos numa América esquecida,
interiorana, um cenário frequentemente esquecido por Hollywood. Foi assim no nervoso
Sicario: Terra de Ninguém (2015), um thriller de ação sobre a presença dos cartéis
mexicanos em território ‘yankee’, no extraordinário A Qualquer Custo (2016), um
faroeste revisionista sobre dois irmãos dispostos a tudo para salvar o seu
rancho de um leilão, e no seu mais novo projeto, o devastador Terra Selvagem
(2017). Na obra mais dramática da sua enxuta, mas memorável carreira atrás das
câmeras, Sheridan (que também é ator) nos coloca num cenário desesperançoso ao narrar a jornada de
um agente inexperiente obrigada a assumir a investigação de um violento crime
em terras indígenas. Após expor o desamparo dos velhos “caubóis” no seu último
trabalho, o diretor dá um giro de 180º ao questionar agora a triste situação
dos povos indígenas em território norte-americano, buscando inspiração em fatos
ao tirar do papel um suspense maduro, denso e brutal. Uma obra silenciosa recheada
de símbolos que não foge da raia ao revelar uma incômoda realidade.
Com roteiro assinado pelo próprio
Taylor Sheridan, Terra Selvagem consolida a particular visão de mundo deste
promissor realizador. Embora narrativamente suas obras sigam um padrão bem
tradicional, ele tem mostrado contundência ao valorizar o subtexto, ao mostrar
um perceptível apreço pelo cinza. Seus filmes, na verdade, não parecem presos
aos velhos dualismos. Por trás da velha rixa entre os lobos e os cordeiros
existe uma força maior. Um agente capaz de interferir, de desafiar este ‘status
quo’. E é nesse tipo que Sheridan parece mais se interessar. Foi assim como o
amoral Alejandro (Benicio Del Toro) em Sicario, com o veterano agente Hamilton
(Jeff Bridges) em A Qualquer Custo e agora o destemido caçador Cory (Jeremy
Renner) em Terra Selvagem. Logo na fantástica montagem inicial, por exemplo,
podemos entender a função do seu novo protagonista. Na angustiante primeira
sequência vemos uma jovem, machucada, correndo desesperadamente na neve sob a
luz do luar. Na cena seguinte, já pela manhã, vemos um grupo de ruidosas
ovelhas ameaçadas por uma matilha de lobos. Quando o ataque parece iminente
surge um tiro certeiro. O lobo cai. Os outros se assustam e fogem. Só ai,
Sheridan expõe o autor do disparo, coberto por um traje branco, como se fizesse
parte do cenário. Logo percebemos que, mais uma vez, sua história não vai se prender
ao clichê do mocinho (ovelha) versus bandido (lobo). Sheridan tem algo a mais para falar e o
interlocutor, obviamente, já foi escolhido e brilhantemente apresentado.
Inspirado em fatos acontecidos
nas reservas indígenas ao redor dos EUA, Terra Selvagem narra a história de
Jane (Elizabeth Olsen), uma agente do FBI escolhida às pressas para investigar
o homicídio de uma jovem de ascendência indígena. Numa terra abandonada pelo
poder público, ela recruta o suporte de um pacato xerife, o veterano Ben (Graham
Greene), e de um introspectivo caçador, o respeitado Cory (Jeremy Renner).
Errática quanto ao rumo da investigação, Jane logo percebe que está caminhando
sobre um terreno perigoso, uma terra sem "comando" em que, até o momento, a lei do
mais forte costumava imperar. Cercada pela neve e por uma série de pistas, ela
logo percebe o crescente interesse de Cory pelo caso, o que a leva a uma
desoladora descoberta sobre a realidade que a cercava. Juntos, os dois decidem fazer
justiça “contra tudo e contra todos”, sem sequer desconfiar que o “lobo” que
estava à espreita era bem mais perigoso do que os indícios poderiam sugerir.
Embora fisgue a atenção do
público desde a já elogiada sequência de abertura, Terra Selvagem não é um
filme fácil. Como se não bastasse a pesada atmosfera, a realidade do cenário
que ambienta a trama é mostrada de maneira nua e crua, Taylor Sheridan investe
numa abordagem madura e silenciosa. Os personagens não falam mais do que o
necessário. Os diálogos são inteligentes e por vezes emocionantes.
Curiosamente, apesar da atmosfera fria que cerca o longa, o realizador se
preocupa em solidificar o fator humano, em capturar os sentimentos dos protagonistas.
Indo de encontro ao frenesi que tem tomado conta do gênero, ele é cuidadoso ao
construir os seus personagens, ao traduzir a dor, a insegurança, a raiva, a tristeza e o desamparo que permeia a história. Consciente da relevância do tema
proposto, Sheridan enche a tela de sentimento ao transitar entre o suspense e o
drama durante os excelentes dois primeiros atos, encontrando as brechas
necessárias para tirar do papel a sua incisiva crítica contra o abandono dos
sobreviventes povos indígenas em território americano. Com uma propriedade
comovente, o que, diga-se passagem, afasta qualquer tipo de questionamento
quanto a apropriação cultural, o diretor esbanja delicadeza ao reproduzir o
indefeso estado de espírito dos nativos. Amparado pela gélida e opressiva
fotografia azulada do jovem Ben Richardson, Sheridan, mesmo através do seu
interlocutor branco, oferece um urgente “ombro amigo” ao revelar a situação de
indignidade e desesperança dos nativo-americanos. A terra lhes foi tomada. O
sustento lhes foi tomado. Os filhos lhes foram tomados. Resta a solidão, a
marginalidade, a segregação, uma realidade trágica explorada sob um prisma desconcertante
ao longo da película. Sem querer contar muito, a sequência em que um desolado
pai, com uma pintura “de morte” malfeita no rosto, admite não saber reproduzir
uma tradição cultural dos seus antepassados pois “não teve quem lhe ensinasse”
é de cortar o coração e sintetiza a essência crítica da obra.
Terra Selvagem, entretanto, é
também um thriller investigativo, e faz jus aos melhores exemplares do gênero
ao construir uma trama instigante e agressiva. Com personagens brilhantemente
delineados em mãos, Taylor Sheridan é cuidadoso ao trabalhar os segredos em
torno do crime, investindo numa narrativa crescente marcada pelas brutais
sequências de ação, pelo inegável flerte com o western revisionista e pela forte
carga simbólica. É neste sentido, inclusive, que a maturidade do realizador
salta aos olhos. Assim como nos seus dois filmes anteriores, Sheridan é astuto
ao usar elementos do cenário como parte integrante da sua história. Como uma
ferramenta para que possamos entender melhor não só a trama em si, como também
os seus próprios protagonistas. Neste sentido, tal qual a errática Kate (Emily
Blunt) em Sicario, Jane surge como a ovelha da história. Uma agente
inexperiente que, sem a ajuda alheia, tinha tudo para se tornar mais uma nova
vítima neste gélido cenário. Uma atriz em constante evolução, Elizabeth Olsen
esbanja intensidade ao construir a sua complexa personagem, uma figura que, por
trás da sua inicial empáfia, esconde uma tenacidade e um senso de justiça capaz
de redefinir as motivações agente do FBI com o avançar da história. Ponto para
a discrição do realizador ao, através dela, questionar também a violência
contra a mulher, vide a sua emocionalmente desconcertante sequência final.
Se Jane é o cordeiro da equação,
o feroz Cory surge não como o lobo, mas como (obviamente) o caçador da
história. Impecável ao construir o senso de superioridade dos seus
protagonistas sem distancia-los da realidade, Sheridan o transforma num dos
tipos mais complexos da sua filmografia. Por mais que, num primeiro momento, a
associação com o amoral Alejandro soe fácil, não demora muito para percebermos
o quão distintos são os dois personagens. Com uma forte carga moral, Cory
cresce em cena justamente pela capacidade do roteiro em explorar o seu ‘background’, as suas camadas, encontrando na serenidade de Jeremy Renner os ingredientes
necessários para a construção de um protagonista humano com motivações
sólidas. Um resiliente homem traumatizado que, por trás da suas expressões geralmente frias, esconde uma ferocidade traduzida com intensidade por este talentoso ator. Nas entrelinhas, inclusive, Sheridan é criativo ao explorar o elemento\subplot
animalesco presente na trama, investindo em inspirados planos subjetivos
acompanhados de uns estranhos rugidos, como se tivesse sugerindo que, nesta “selva”
de lobos e ovelhas, um leão imperava. Além disso, o argumento é habilidoso ao
valorizar o elemento humano também nos densos personagens de apoio, reconhecendo a sua
importância ao permitir que o público crie uma sincera conexão com eles e com
os seus dramas.
Na hora de alcançar o patamar
extraordinário, entretanto, Taylor Sheridan peca pela condescendência narrativa
ao tentar tornar tudo muito claro aos olhos do público dentro do feroz último
ato. Numa transição inventiva, mas momentaneamente anti-climática, o realizador
decide investir num expositivo flashback, uma sequência longa, visceral e chocante
que parece ganhar forma basicamente para justificar as atitudes que virão a seguir. Na
verdade, embora a nervosa cena em si não prejudique o ritmo da película,
Sheridan pende para o excesso e por poucos minutos parece perder a confiança no poder de sugestão do seu próprio texto. Nada que, verdade seja dita, pese no implacável
desfecho de Terra Selvagem, uma obra contundente e silenciosa que, a partir de
uma premissa aparentemente requentada, joga uma contemplativa luz sobre a
vulnerabilidade indígena\feminina\humana numa terra “esquecida”.
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