domingo, 6 de maio de 2018

Terra Selvagem

Só existe um leão na selva

Os EUA de Taylor Sheridan não é um lugar colorido. Roteirista de mão cheia, o realizador tem se firmado como uma das vozes mais críticas do cinema norte-americano. Seus filmes, embora estruturalmente voltados para o grande público, não se omitem na hora de colocar o “dedo na ferida”. Sem a intenção de contar histórias, com o perdão da redundância, já contadas, ele ambienta os seus projetos numa América esquecida, interiorana, um cenário frequentemente esquecido por Hollywood. Foi assim no nervoso Sicario: Terra de Ninguém (2015), um thriller de ação sobre a presença dos cartéis mexicanos em território ‘yankee’, no extraordinário A Qualquer Custo (2016), um faroeste revisionista sobre dois irmãos dispostos a tudo para salvar o seu rancho de um leilão, e no seu mais novo projeto, o devastador Terra Selvagem (2017). Na obra mais dramática da sua enxuta, mas memorável carreira atrás das câmeras, Sheridan (que também é ator) nos coloca num cenário desesperançoso ao narrar a jornada de um agente inexperiente obrigada a assumir a investigação de um violento crime em terras indígenas. Após expor o desamparo dos velhos “caubóis” no seu último trabalho, o diretor dá um giro de 180º ao questionar agora a triste situação dos povos indígenas em território norte-americano, buscando inspiração em fatos ao tirar do papel um suspense maduro, denso e brutal. Uma obra silenciosa recheada de símbolos que não foge da raia ao revelar uma incômoda realidade. 



Com roteiro assinado pelo próprio Taylor Sheridan, Terra Selvagem consolida a particular visão de mundo deste promissor realizador. Embora narrativamente suas obras sigam um padrão bem tradicional, ele tem mostrado contundência ao valorizar o subtexto, ao mostrar um perceptível apreço pelo cinza. Seus filmes, na verdade, não parecem presos aos velhos dualismos. Por trás da velha rixa entre os lobos e os cordeiros existe uma força maior. Um agente capaz de interferir, de desafiar este ‘status quo’. E é nesse tipo que Sheridan parece mais se interessar. Foi assim como o amoral Alejandro (Benicio Del Toro) em Sicario, com o veterano agente Hamilton (Jeff Bridges) em A Qualquer Custo e agora o destemido caçador Cory (Jeremy Renner) em Terra Selvagem. Logo na fantástica montagem inicial, por exemplo, podemos entender a função do seu novo protagonista. Na angustiante primeira sequência vemos uma jovem, machucada, correndo desesperadamente na neve sob a luz do luar. Na cena seguinte, já pela manhã, vemos um grupo de ruidosas ovelhas ameaçadas por uma matilha de lobos. Quando o ataque parece iminente surge um tiro certeiro. O lobo cai. Os outros se assustam e fogem. Só ai, Sheridan expõe o autor do disparo, coberto por um traje branco, como se fizesse parte do cenário. Logo percebemos que, mais uma vez, sua história não vai se prender ao clichê do mocinho (ovelha) versus bandido (lobo). Sheridan tem algo a mais para falar e o interlocutor, obviamente, já foi escolhido e brilhantemente apresentado.


Inspirado em fatos acontecidos nas reservas indígenas ao redor dos EUA, Terra Selvagem narra a história de Jane (Elizabeth Olsen), uma agente do FBI escolhida às pressas para investigar o homicídio de uma jovem de ascendência indígena. Numa terra abandonada pelo poder público, ela recruta o suporte de um pacato xerife, o veterano Ben (Graham Greene), e de um introspectivo caçador, o respeitado Cory (Jeremy Renner). Errática quanto ao rumo da investigação, Jane logo percebe que está caminhando sobre um terreno perigoso, uma terra sem "comando" em que, até o momento, a lei do mais forte costumava imperar. Cercada pela neve e por uma série de pistas, ela logo percebe o crescente interesse de Cory pelo caso, o que a leva a uma desoladora descoberta sobre a realidade que a cercava. Juntos, os dois decidem fazer justiça “contra tudo e contra todos”, sem sequer desconfiar que o “lobo” que estava à espreita era bem mais perigoso do que os indícios poderiam sugerir.


Embora fisgue a atenção do público desde a já elogiada sequência de abertura, Terra Selvagem não é um filme fácil. Como se não bastasse a pesada atmosfera, a realidade do cenário que ambienta a trama é mostrada de maneira nua e crua, Taylor Sheridan investe numa abordagem madura e silenciosa. Os personagens não falam mais do que o necessário. Os diálogos são inteligentes e por vezes emocionantes. Curiosamente, apesar da atmosfera fria que cerca o longa, o realizador se preocupa em solidificar o fator humano, em capturar os sentimentos dos protagonistas. Indo de encontro ao frenesi que tem tomado conta do gênero, ele é cuidadoso ao construir os seus personagens, ao traduzir a dor, a insegurança, a raiva, a tristeza e o desamparo que permeia a história. Consciente da relevância do tema proposto, Sheridan enche a tela de sentimento ao transitar entre o suspense e o drama durante os excelentes dois primeiros atos, encontrando as brechas necessárias para tirar do papel a sua incisiva crítica contra o abandono dos sobreviventes povos indígenas em território americano. Com uma propriedade comovente, o que, diga-se passagem, afasta qualquer tipo de questionamento quanto a apropriação cultural, o diretor esbanja delicadeza ao reproduzir o indefeso estado de espírito dos nativos. Amparado pela gélida e opressiva fotografia azulada do jovem Ben Richardson, Sheridan, mesmo através do seu interlocutor branco, oferece um urgente “ombro amigo” ao revelar a situação de indignidade e desesperança dos nativo-americanos. A terra lhes foi tomada. O sustento lhes foi tomado. Os filhos lhes foram tomados. Resta a solidão, a marginalidade, a segregação, uma realidade trágica explorada sob um prisma desconcertante ao longo da película. Sem querer contar muito, a sequência em que um desolado pai, com uma pintura “de morte” malfeita no rosto, admite não saber reproduzir uma tradição cultural dos seus antepassados pois “não teve quem lhe ensinasse” é de cortar o coração e sintetiza a essência crítica da obra.


Terra Selvagem, entretanto, é também um thriller investigativo, e faz jus aos melhores exemplares do gênero ao construir uma trama instigante e agressiva. Com personagens brilhantemente delineados em mãos, Taylor Sheridan é cuidadoso ao trabalhar os segredos em torno do crime, investindo numa narrativa crescente marcada pelas brutais sequências de ação, pelo inegável flerte com o western revisionista e pela forte carga simbólica. É neste sentido, inclusive, que a maturidade do realizador salta aos olhos. Assim como nos seus dois filmes anteriores, Sheridan é astuto ao usar elementos do cenário como parte integrante da sua história. Como uma ferramenta para que possamos entender melhor não só a trama em si, como também os seus próprios protagonistas. Neste sentido, tal qual a errática Kate (Emily Blunt) em Sicario, Jane surge como a ovelha da história. Uma agente inexperiente que, sem a ajuda alheia, tinha tudo para se tornar mais uma nova vítima neste gélido cenário. Uma atriz em constante evolução, Elizabeth Olsen esbanja intensidade ao construir a sua complexa personagem, uma figura que, por trás da sua inicial empáfia, esconde uma tenacidade e um senso de justiça capaz de redefinir as motivações agente do FBI com o avançar da história. Ponto para a discrição do realizador ao, através dela, questionar também a violência contra a mulher, vide a sua emocionalmente desconcertante sequência final. 


Se Jane é o cordeiro da equação, o feroz Cory surge não como o lobo, mas como (obviamente) o caçador da história. Impecável ao construir o senso de superioridade dos seus protagonistas sem distancia-los da realidade, Sheridan o transforma num dos tipos mais complexos da sua filmografia. Por mais que, num primeiro momento, a associação com o amoral Alejandro soe fácil, não demora muito para percebermos o quão distintos são os dois personagens. Com uma forte carga moral, Cory cresce em cena justamente pela capacidade do roteiro em explorar o seu ‘background’, as suas camadas, encontrando na serenidade de Jeremy Renner os ingredientes necessários para a construção de um protagonista humano com motivações sólidas. Um resiliente homem traumatizado que, por trás da suas expressões geralmente frias, esconde uma ferocidade traduzida com intensidade por este talentoso ator. Nas entrelinhas, inclusive, Sheridan é criativo ao explorar o elemento\subplot animalesco presente na trama, investindo em inspirados planos subjetivos acompanhados de uns estranhos rugidos, como se tivesse sugerindo que, nesta “selva” de lobos e ovelhas, um leão imperava. Além disso, o argumento é habilidoso ao valorizar o elemento humano também nos densos personagens de apoio, reconhecendo a sua importância ao permitir que o público crie uma sincera conexão com eles e com os seus dramas.


Na hora de alcançar o patamar extraordinário, entretanto, Taylor Sheridan peca pela condescendência narrativa ao tentar tornar tudo muito claro aos olhos do público dentro do feroz último ato. Numa transição inventiva, mas momentaneamente anti-climática, o realizador decide investir num expositivo flashback, uma sequência longa, visceral e chocante que parece ganhar forma basicamente para justificar as atitudes que virão a seguir. Na verdade, embora a nervosa cena em si não prejudique o ritmo da película, Sheridan pende para o excesso e por poucos minutos parece perder a confiança no poder de sugestão do seu próprio texto. Nada que, verdade seja dita, pese no implacável desfecho de Terra Selvagem, uma obra contundente e silenciosa que, a partir de uma premissa aparentemente requentada, joga uma contemplativa luz sobre a vulnerabilidade indígena\feminina\humana numa terra “esquecida”.

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