quinta-feira, 10 de maio de 2018

Em Pedaços

As sequelas de um atentado

Num momento em que os movimentos de ultradireita deixam as sombras ao redor do mundo, Em Pedaços surge como um relato urgente e incisivo sobre a banalização da violência contra estrangeiros em território europeu. Sob a questionadora batuta do diretor alemão Fatih Akin, o longa coloca o dedo na ferida ao refletir sobre as sequelas de um atentado terrorista num contexto íntimo e extremamente humano. Dividido em três atos bem distintos, a envolvente película é inteligente ao expor a crescente onda neonazista em solo alemão, se distanciando do viés maniqueísta ao trata-los como pessoas ordinárias. Sem aquele peso ultrapassado\vilanesco com que o tema costuma ser tratado em Hollywood. Esqueça, portanto, as suásticas, as bandeiras e o viés soturno. O tema, aqui, é escancarado sob o olhar despedaçado de uma resiliente mulher à procura de motivos para seguir vivendo após ter a sua família ceifada de maneira irracional e injustificável. O resultado é uma obra crescente e explosiva, um relato nu e cru sobre o impacto da perda na rotina de uma inocente. 


Com roteiro assinado pelo próprio Fatih Akin, Em Pedaços é habilidoso ao transitar por gêneros tão contrastantes de maneira coesa e bem amarrada. Consciente da necessidade em se estabelecer o fator humano, o realizador é sucinto ao desenvolver o estreito vínculo entre Katja (Diane Kruger) e Nuri (Numan Acar), um casal moderno que, após um período de grande turbulência, se estabeleceu com o nascimento do seu filho, o cativante Rocco. Em poucas cenas, Akin realça a dinâmica entre os três, preparando o terreno para o dramático primeiro ato. Neste terço inicial, o uso dos flashbacks funciona como um poderoso elemento narrativo, reforçando para o público a lacuna que tomou conta da rotina de Katja a partir do atentado terrorista. Impulsionado pela intensa performance da versátil Diane Kruger, à flor da pele seja como uma transtornada esposa em luto, seja como uma mulher sem motivações para viver, seja como uma viúva raivosa, o diretor é inteligente ao atrelar o processo de investigação aos conflitos pessoais da própria protagonista, evitando se distanciar dela ao tratar a dor de uma inocente como a força motora da sua crítica obra. Um elemento potencializado pela soturna (e inicialmente azulada) fotografia de Rainer Klausmann (Head On), discreta ao criar um frio\desconfortável clima de imersão. Neste primeiro momento, é interessante ver o esmero do diretor ao traduzir o despedaçar desta mulher sob um prisma desconfortavelmente intimista, investindo em silenciosos e contundentes planos fechados. O seu foco está em Katja, nas suas feições, nos seus gestos de desespero. Os coadjuvantes são quase irrelevantes. Vide a (literalmente) dilacerante sequência da banheira, uma cena forte e bem construída que serve como uma reveladora ponte para o tenso segundo ato.


Com pleno domínio sobre o tom da sua obra, Fatih Akin injeta ritmo ao longa ao colocar o luto em segundo plano, substituindo o drama pelo suspense de tribunal numa mudança de rumo enérgica e contextualizadora. Num ‘mise en scene’ ágil e muito bem montado, o realizador eleva o nível da trama ao encontrar aqui as brechas necessárias para tecer um reflexivo comentário sobre as motivações por trás dos atentados. Com diálogos fortes e um dinâmico pulso narrativo, o diretor é criativo ao acompanhar a nebulosa luta por justiça de Katja, ampliando o escopo da película ao dar um rosto assustadoramente comum ao “vilão”. Embora o foco nunca esteja nas motivações dos autores dos atentados, as justificativas são tão óbvias quanto banais, o argumento é cuidadoso ao escancarar a crescente onda neonazista em solo alemão. Ao mostrar como movimentos extremistas, à luz da democracia, estão entrando no “jogo político” legitimamente com o voto do povo. Com o vigor dos melhores filmes do gênero, Akin é contundente ao valorizar o poder dos diálogos, ao tornar o amoral “duelo” entre acusação e defesa extremamente atraente os olhos do público. Fazendo um expressivo uso dos primeiros planos e dos planos conjuntos, o realizador, aqui, cria um cenário bem mais impessoal, uma atmosfera nebulosa incrementada pela saturada iluminação esbranquiçada e pelas vigorosas performances. No centro do quadro durante a maior parte deste segundo ato, mesmo quando a câmera de Akin se volta para os demais personagens, Diane Kruger flerta com o visceral ao traduzir o estado de espírito da sua magnética personagem durante o nervoso julgamento, indo da frieza a instabilidade extrema com ferocidade e emoção.


No momento em que decide fazer uma nova mudança de rumo, entretanto, Em Pedaços patina perante as elevadas pretensões de Faith Akin. Diante dos novos (e bem desenvolvidos) fatos, o argumento passa a flertar com elementos do thriller de vingança, mas, desta vez, sem o pulso narrativo dos dois atos anteriores. Na ânsia de estabelecer as (claras) motivações de Katja após uma curta passagem de tempo, o roteiro derrapa ao fazer uso de elementos mais convenientes, bem típicos dos blockbusters, sugerindo um rumo que, felizmente, é refutado dentro do corajoso clímax. Antes pontuais, os flashbacks, por exemplo, ganham uma função um tanto melodramática. O silêncio da protagonista ganha um ar pretensioso. Na verdade, a impressão que fica é que, mesmo após os dois excelentes primeiros atos, o diretor peca pelo preciosismo ao tentar embasar as novas motivações de uma errática (porém tranquila) Katja. Uma opção supérflua que, embora não estrague a experiência, ajuda a explicar os motivos por trás da evidente queda de ritmo do terço final. Menos mal que, na hora H, Akin recoloca a trama nos trilhos ao tirar do papel um desfecho enfático e questionador, mostrando o círculo vicioso desencadeado num ataque deste porte sob um ponto de vista trágico e reflexivo.


Indicado ao Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro, Em Pedaços ganha relevância ao expor os verdadeiros perigos por trás da crescente onda xenofóbica em solo Europeu. Ao encontrar um bem-vindo meio termo entre a ficção e a realidade, Fatih Akin mostra maturidade ao transitar entre o micro e o macro numa obra multifacetada, encontrando na poderosa performance de Diane Kruger, eleita a Melhor Atriz no Festival de Cannes 2017, a intensidade necessária para valorizar o elemento humano em meio a um tema tão urgente e abrangente.

Nenhum comentário: