As sequelas de um atentado
Num momento em que os movimentos de ultradireita deixam as sombras ao redor do mundo, Em Pedaços surge como um relato urgente e incisivo sobre a banalização da violência contra estrangeiros em território europeu. Sob a questionadora batuta do diretor alemão Fatih Akin, o longa coloca o dedo na ferida ao refletir sobre as sequelas de um atentado terrorista num contexto íntimo e extremamente humano. Dividido em três atos bem distintos, a envolvente película é inteligente ao expor a crescente onda neonazista em solo alemão, se distanciando do viés maniqueísta ao trata-los como pessoas ordinárias. Sem aquele peso ultrapassado\vilanesco com que o tema costuma ser tratado em Hollywood. Esqueça, portanto, as suásticas, as bandeiras e o viés soturno. O tema, aqui, é escancarado sob o olhar despedaçado de uma resiliente mulher à procura de motivos para seguir vivendo após ter a sua família ceifada de maneira irracional e injustificável. O resultado é uma obra crescente e explosiva, um relato nu e cru sobre o impacto da perda na rotina de uma inocente.
Com roteiro assinado pelo próprio
Fatih Akin, Em Pedaços é habilidoso ao transitar por gêneros tão contrastantes
de maneira coesa e bem amarrada. Consciente da necessidade em se estabelecer o
fator humano, o realizador é sucinto ao desenvolver o estreito vínculo entre
Katja (Diane Kruger) e Nuri (Numan Acar), um casal moderno que, após um período
de grande turbulência, se estabeleceu com o nascimento do seu filho, o
cativante Rocco. Em poucas cenas, Akin realça a dinâmica entre os três,
preparando o terreno para o dramático primeiro ato. Neste terço inicial, o uso
dos flashbacks funciona como um poderoso elemento narrativo, reforçando para o
público a lacuna que tomou conta da rotina de Katja a partir do atentado
terrorista. Impulsionado pela intensa performance da versátil Diane Kruger, à
flor da pele seja como uma transtornada esposa em luto, seja como uma mulher
sem motivações para viver, seja como uma viúva raivosa, o diretor é inteligente
ao atrelar o processo de investigação aos conflitos pessoais da própria
protagonista, evitando se distanciar dela ao tratar a dor de uma inocente como
a força motora da sua crítica obra. Um elemento potencializado pela soturna (e inicialmente
azulada) fotografia de Rainer Klausmann (Head On), discreta ao criar um frio\desconfortável
clima de imersão. Neste primeiro momento, é interessante ver o esmero do
diretor ao traduzir o despedaçar desta mulher sob um prisma desconfortavelmente
intimista, investindo em silenciosos e contundentes planos fechados. O seu foco
está em Katja, nas suas feições, nos seus gestos de desespero. Os coadjuvantes
são quase irrelevantes. Vide a (literalmente) dilacerante sequência da
banheira, uma cena forte e bem construída que serve como uma reveladora ponte
para o tenso segundo ato.
Com pleno domínio sobre o tom da sua
obra, Fatih Akin injeta ritmo ao longa ao colocar o luto em segundo plano,
substituindo o drama pelo suspense de tribunal numa mudança de rumo enérgica e
contextualizadora. Num ‘mise en scene’ ágil e muito bem montado, o realizador
eleva o nível da trama ao encontrar aqui as brechas necessárias para tecer um
reflexivo comentário sobre as motivações por trás dos atentados. Com diálogos
fortes e um dinâmico pulso narrativo, o diretor é criativo ao acompanhar a nebulosa
luta por justiça de Katja, ampliando o escopo da película ao dar um rosto assustadoramente
comum ao “vilão”. Embora o foco nunca esteja nas motivações dos autores dos
atentados, as justificativas são tão óbvias quanto banais, o argumento é
cuidadoso ao escancarar a crescente onda neonazista em solo alemão. Ao mostrar
como movimentos extremistas, à luz da democracia, estão entrando no “jogo
político” legitimamente com o voto do povo. Com o vigor dos melhores filmes do
gênero, Akin é contundente ao valorizar o poder dos diálogos, ao tornar o
amoral “duelo” entre acusação e defesa extremamente atraente os olhos do
público. Fazendo um expressivo uso dos primeiros planos e dos planos conjuntos,
o realizador, aqui, cria um cenário bem mais impessoal, uma atmosfera nebulosa
incrementada pela saturada iluminação esbranquiçada e pelas vigorosas
performances. No centro do quadro durante a maior parte deste segundo ato, mesmo
quando a câmera de Akin se volta para os demais personagens, Diane Kruger
flerta com o visceral ao traduzir o estado de espírito da sua magnética personagem
durante o nervoso julgamento, indo da frieza a instabilidade extrema com ferocidade
e emoção.
No momento em que decide fazer
uma nova mudança de rumo, entretanto, Em Pedaços patina perante as elevadas pretensões
de Faith Akin. Diante dos novos (e bem desenvolvidos) fatos, o argumento passa
a flertar com elementos do thriller de vingança, mas, desta vez, sem o pulso
narrativo dos dois atos anteriores. Na ânsia de estabelecer as (claras) motivações
de Katja após uma curta passagem de tempo, o roteiro derrapa ao fazer uso de
elementos mais convenientes, bem típicos dos blockbusters, sugerindo um rumo
que, felizmente, é refutado dentro do corajoso clímax. Antes pontuais, os
flashbacks, por exemplo, ganham uma função um tanto melodramática. O silêncio
da protagonista ganha um ar pretensioso. Na verdade, a impressão que fica é
que, mesmo após os dois excelentes primeiros atos, o diretor peca pelo
preciosismo ao tentar embasar as novas motivações de uma errática (porém tranquila)
Katja. Uma opção supérflua que, embora não estrague a experiência, ajuda a
explicar os motivos por trás da evidente queda de ritmo do terço final. Menos
mal que, na hora H, Akin recoloca a trama nos trilhos ao tirar do papel um
desfecho enfático e questionador, mostrando o círculo vicioso desencadeado num ataque deste porte sob um ponto de vista trágico e reflexivo.
Indicado ao Globo de
Ouro de Melhor Filme Estrangeiro, Em Pedaços ganha relevância ao expor os
verdadeiros perigos por trás da crescente onda xenofóbica em solo Europeu. Ao
encontrar um bem-vindo meio termo entre a ficção e a realidade, Fatih Akin
mostra maturidade ao transitar entre o micro e o macro numa obra multifacetada,
encontrando na poderosa performance de Diane Kruger, eleita a Melhor Atriz no
Festival de Cannes 2017, a intensidade necessária para valorizar o elemento
humano em meio a um tema tão urgente e abrangente.
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