quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Fútil e Inútil

Inteligente e bem humorada, cinebiografia pinta um retrato satisfatoriamente completo sobre o homem por trás da revista National Lampoon

Nascida à sombra da popular Mad, a revista National Lampoon revolucionou a comédia norte-americana com o seu humor imaturo, seu exótico teor crítico e o seu inocente apelo sexual. Lançada no auge dos anos 70, a bem sucedida publicação logo tomou conta de outras mídias, chegando ao rádio, a TV e ao cinema ao revelar nomes como Chevy Chase, John Belushi, Bill Murray, Harold Hamis, Ivan Reitman, John Hughes entre outros. Em outras palavras, graças ao humor debochado da National Lampoon, sucessos como Clube dos Cafajestes, Férias Frustradas, Os Caça Fantasmas e séries de humor como o aclamado Saturday Night Live saíram do papel, uma prova da influência desta criativa revista. Um audacioso projeto que nasceu da despretensiosa mente de Douglas "Doug" Kenney, uma figura particular que tem a sua historia de vida descortinada no competente Fútil e Inútil. Brincado com as expectativas do público, o longa dirigido por David Wain (Mais um Verão Americano) é narrativamente esperto ao subverter a tradicional estrutura das das cinebiografias, fazendo jus ao senso de humor do escritor/editor ao pintar um retrato completo e energético sobre um homem que transformou o seu descompromisso num grande negócio. E isso sem sacrificar o teor dramático, que, apesar do descuido do roteiro em alguns momentos, encontra voz na sólida performance do talentoso Will Forte. 


Recheado de criativas soluções narrativas, com direito a constante quebra da quarta parede, a presença de um narrador personagem e uma irreverente estrutura não linear, a mais nova produção original Netflix acerta ao se concentrar na figura de Doug e na sua dedicação a National Lampoon. Embora o argumento assinado por Michael Showalter e pelo próprio David Wain abra generosas brechas para introduzir os feitos da revista, mostrando os astros que passaram por lá, o impacto das mais marcantes edições e a influência da publicação em outras mídias, o longa é astuto ao valorizar a figura do biografado, seguindo os seus passos ao mostrar como um jovem de Ohio chegou a Harvard e de lá, contrariando as elevadas expectativas, resolveu fundar uma revista de humor. Com um enorme poder de síntese, Wain reforça o frenesi setentista ao estabelecer a repentina ascensão da National Lampoon, valorizando, num primeiro momento, a singela relação entre Doug e o seu parceiro de empreitada, o calmo e rico Henry. Impulsionado pela ágil montagem, o diretor consegue não só se debruçar sobre essa sincera amizade, como também expor o inusitado 'modus operandi' da equipe de redatores, flertando constantemente com o humor ao tentar entender a persona do biografado. Ao expor tanto a sua criatividade, dedicação e visionarismo, quanto a sua irresponsabilidade, as suas angústias e a sua face mais falha. 


Sem nunca julgá-lo, o roteiro é igualmente habilidoso ao se distanciar do viés condescendente. Os "desvios" de comportamento de Doug, entre eles a infidelidade e o vício em drogas, são tratados dentro de um contexto extremamente humano e descomplicado, o que diz muito sobre a personalidade do biografado. Nas entrelinhas, inclusive, o longa não foge da raia ao se aprofundar nos conflitos mais íntimos do protagonista. Indo além das explicações óbvias, o processo de deterioração emocional de Doug é desenvolvido com satisfatória propriedade, principalmente quando o assunto é a sua complicada relação com o sucesso e com a expectativa imposta pela sua rígida família. Por mais que o foco esteja no humor, Will Forte mostra intensidade ao traduzir o desconforto de Doug, ao revelar o seu esforço para se "livrar" do rótulo de fracassado, esbanjando ironia ao transitar habilmente entre o drama e a comédia. Menos exigido que o seu parceiro de cena, Domhnall Gleeson empresta o seu reconhecido carisma ao viver o posudo Henry, investindo numa performance comedida ao capturar o misto de zelo e liderança do jovem. No momento em que o longa parecia apontar para um caminho mais maduro, porém, David Wain precipita as coisas ao investir num apressado último ato. Na verdade, a impressão que fica é que o diretor oferece o bastante para que possamos enxergar os problemas de Doug, mas não senti-los, tornando o desfecho um tanto quanto abrupto. 


Por outro lado, Fútil e Inútil causa um inegável fascínio acompanhar os bastidores deste grupo de comédia na transição para Hollywood. Embalado pelas seguras atuações do elenco de apoio, capitaneado pelos competentes Thomas Lenon, Joel McHale, Emmy Rossum, Natasha Lyone e Martin Mull, David Wain eleva o nível do longa ao reproduzir não só a frenética rotina deles, como também algumas das cenas dos filmes mais famosos, fazendo jus ao contexto setentista ao valorizar as cores, os penteados e os figurinos da época. Num todo, aliás, a equipe de direção de arte faz um cuidadoso trabalho ao imprimir a peculiaridade do grupo nos habitáveis cenários, vide a disfuncional redação, usando fotos clássicas, textos e as capas mais populares como um interessante elemento cenográfico. 


Recheado de inventivas soluções narrativas, a maneira com que os dilemas pessoais de Doug ganham forma na sequência do campo de golfe, em especial, sintetiza o esforço da película em fugir do lugar-comum, Fútil e Inútil brinca com os clichês do universo dos documentários/cinebiografias ao dar voz ao homem que ajudou a redefinir a comédia norte-americana nos anos setenta e oitenta. Uma obra inteligente e descolada que, mesmo nos seus momentos menos inspirados, se mostra à altura do legado e da prudente incorreção da National Lampoon. 

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