Um mestre na arte da atuação digital, Andy Serkis se tornou uma peça chave na evolução da técnica de captura de movimento. Intrinsecamente ligado ao sucesso deste advento, ele foi um dos primeiros grandes nomes a defender a arte por trás da tecnologia, ao realçar a sensibilidade humana "escondida" pelos incríveis efeitos visuais. O que fica bem claro, por exemplo, no espetacular Planeta dos Macacos: A Guerra (leia a nossa crítica aqui), o memorável desfecho da trilogia prelúdio inspirada no clássico de 1968. Na pele do indomável César, um dos protagonistas mais humanos da história recente do cinema, Serkis alcançou o ápice da atuação digital, enchendo a tela de sentimento ao expor as nuances mais íntimas do desgastado líder símio. Um trabalho tão singular, tão expressivo que finalmente parece ter conquistado o aval até dos mais resistentes. Nos últimos dias, inclusive, ganhou força a corrente que pede o reconhecimento de Andy Serkis nas grandes premiações, uma defesa não só justa, como tardia. Já em Planeta dos Macacos: O Confronto (2014), o ator havia exibido um pleno domínio técnico\artístico sobre a captura de movimentos, revelando as inúmeras possibilidades e a extraordinária verossimilhança possibilitada pelo recurso. É bom frisar, entretanto, que a ascensão da atuação digital está diretamente ligada a evolução da tecnologia da animação. Graças a nomes como os de Peter Jackson, James Cameron, Robert Zemeckis e o próprio Andy Serkis, o 'motion capture' alcançou na atualidade um nível impensável há cinco, dez anos, um grau de realismo capaz de realmente modificar a forma de se enxergar\fazer cinema.
Curiosamente, no entanto, a técnica de captura de movimentos já chegou causando
um grande impacto junto ao público na épica trilogia O Senhor dos Anéis
(2001-2003). Num trabalho à frente do seu tempo, Peter Jackson revolucionou o
universo da fantasia ao criar o fantástico Smeagol, o primeiro grande
personagem digital do cinema. Dando vida a um ser com primitivas feições
humanas, o neozelandês abriu mão dos recursos práticos, entenda maquiagem, ao
criar um personagem expressivo e realístico, uma figura dúbia interpretada com
maestria pelo então desconhecido Andy Serkis. Um verdadeiro nerd da Sétima
Arte, Jackson abalou as estruturas do gênero com a sua própria desenvolvedora
de conteúdo, a WETA, uma empresa de animação que ainda hoje é referência quando
o assunto é a arte do CGI. Preocupado com detalhes como a textura,
a expressividade e o brilho no olhar, o realizador estabeleceu os paradigmas da
atuação digital num trabalho que demorou anos para ser replicado em Hollywood.
O que fica bem claro, por exemplo, quando nos deparamos com outro título
lançado na época, o genérico O Retorno da Múmia (2001). Após dirigir o virtuoso
(e divertidíssimo) A Múmia (1997), o norte-americano Stephen Sommers deu um
passo maior que a perna ao fazer um artificial uso de um personagem digital. Como
não lembrar, por exemplo, da primeira aparição do Escorpião Rei interpretado
por Dwayne "The Rock" Johnson, na época um lutador do WWF que só
emprestou as suas feições para um CGI que nasceu datado. Frequentemente listada
entre as criaturas digitais mais artificiais do cinema, o mitológico personagem
expôs o tamanho da distância entre a WETA e a concorrência, um fato que ficaria
ainda mais evidente nos anos seguintes.
Responsável pelo extraordinário As Aventuras de Pi (2010), o cultuado Ang Lee se arriscou nos blockbusters no início dos anos 2000 no
esquecido Hulk (2003). Na ânsia de resgatar a imponência do herói dos
quadrinhos, o virtuoso realizador utilizou a tecnologia da época para criar o
raivoso alter-ego do cientista Bruce Banner. Com o talentoso Eric Bana por trás
da captura de movimento, Lee tentou, mas o seu borrachudo Hulk mais parecia um
personagem de videogame. Cores, textura, expressão, tudo soava artificial e bem
aquém do Smeagol de Peter Jackson. Na época, porém, o personagem se tornou
sinônimo de avanço tecnológico, principalmente quando comparado com o clássico
Hulk maquiado vivido pelo monstruoso Lou Ferrigno. No ano seguinte, no primeiro
trabalho revolucionário após o Senhor dos Anéis, o tecnológico Robert Zemeckis
trouxe o 'motion capture' para o universo da animação no belo O Expresso Polar
(2004). Após brilhar em filmes como Uma Cilada para Roger Rabbit e Forrest
Gump, o pupilo de Spielberg deu um novo sentido para a tecnologia ao adicionar
contornos humanos à figuras propositalmente cartunescas. Embora limitado pelo
(ainda) pesado CGI e pela artificialidade das expressões, o longa estrelado por
Tom Hanks abriu uma nova porta para os atores digitais e se tornou um dos
pilares para o aperfeiçoamento da tecnologia. No ano seguinte, porém, Peter
Jackson mostrou que seguia um passo a frente da “concorrência” no divertido
King Kong (2005). Novamente ao lado do seu parceiro Andy Serkis, o neozelandês
ampliou o nível de realismo ao tornar o macacão rei completamente verossímil
aos olhos do público. Preocupado em reproduzir a movimentação animalesca do
protagonista, o diretor elevou o patamar da atuação digital ao aprimorar a
expressividade da criatura, ao refinar a movimentação dos olhos e do rosto,
dando ao dedicado Serkis a possibilidade de externar a sua incrível capacidade
em replicar a mobilidade dos primatas.
Talvez o primeiro realizador a fazer um refinado uso da atuação digital
pós-Peter Jackson, Gore Verbinski trocou a maquiagem pelo CGI ao criar o
ameaçador Dave Jones (foto acima) em Piratas do Caribe: O Baú da Morte (2006). Com um
magnífico visual e uma expressividade rara, o pirata de rosto tentacular se
tornou o grande antagonista da franquia, muito em função da extraordinária
performance de Bill Nighy. No ano seguinte, num dos trabalhos mais audaciosos
do segmento, Robert Zemeckis voltou a abraçar a captura de movimentos no épico
A Lenda de Bewoulf (2007). Disposto a explorar a vasta gama de alternativas
possibilitadas pelo advento da atuação digital, ele elevou o nível da
brincadeira ao trabalhar com elementos hoje muito utilizados no universo da
animação, entre eles o rejuvenescimento\envelhecimento de atores e a
transformação física. Novamente limitado pela inexpressividade dos personagens
animados, Zemeckis fez o atarracado Ray Winstone se transformar num herói forte
e esguio, adicionou generosas curvas à bela Angelina Jolie e deu alguns anos a
mais para o talentoso Anthony Hopkins.
O resultado, embora hoje soe datado, na época do lançamento representou um avanço experimentalista, mostrando que a captura de movimentos poderia ser também utilizada na criação de realísticos tipos humanoides. Nos anos seguintes, inclusive, os blockbusters Exterminador do Futuro: A Salvação (2009) e Tron: O Legado (2010) utilizaram técnica semelhante ao rejuvenescer, respectivamente, os astros Arnold Schwarzenneger e Jeff Bridges. No primeiro caso, o diretor McG utilizou um molde do corpo do ator para recriar a sua desnuda primeira aparição na franquia, um visual "borrachudo", artificial, mas inegavelmente nostálgico. Já no segundo, Joseph Kosinski foi audacioso ao criar uma continuação que girava em torno da atuação digital. Com o próprio Bridges por trás da captura de movimentos, ele fez o possível para esconder as limitações na expressão do personagem, mas, apesar da nítida evolução tecnológica, em algumas das sequências mais densas era possível perceber a artificialidade na movimentação dos lábios e na frieza do olhar. Ainda assim, Tron: O Legado representou um considerável avanço dentro da atuação digital e mostrou que a tecnologia já fazia parte da realidade do cinema.
A Revolução de James Cameron
O resultado, embora hoje soe datado, na época do lançamento representou um avanço experimentalista, mostrando que a captura de movimentos poderia ser também utilizada na criação de realísticos tipos humanoides. Nos anos seguintes, inclusive, os blockbusters Exterminador do Futuro: A Salvação (2009) e Tron: O Legado (2010) utilizaram técnica semelhante ao rejuvenescer, respectivamente, os astros Arnold Schwarzenneger e Jeff Bridges. No primeiro caso, o diretor McG utilizou um molde do corpo do ator para recriar a sua desnuda primeira aparição na franquia, um visual "borrachudo", artificial, mas inegavelmente nostálgico. Já no segundo, Joseph Kosinski foi audacioso ao criar uma continuação que girava em torno da atuação digital. Com o próprio Bridges por trás da captura de movimentos, ele fez o possível para esconder as limitações na expressão do personagem, mas, apesar da nítida evolução tecnológica, em algumas das sequências mais densas era possível perceber a artificialidade na movimentação dos lábios e na frieza do olhar. Ainda assim, Tron: O Legado representou um considerável avanço dentro da atuação digital e mostrou que a tecnologia já fazia parte da realidade do cinema.
A Revolução de James Cameron
Responsável por criar talvez o primeiro grande personagem digital do
cinema, o fluído exterminador T-1000 vivido por Robert Patrick, o genial James
Cameron abalou as estruturas de Hollywood ao tirar do papel o épico Avatar
(2009). Assim como Peter Jackson fez lá atrás no final da década de 1990, o "pai"
do clássico Titanic (1997) desenvolveu a sua própria tecnologia para criar o
mágico e gigantesco mundo de Pandora. Revolucionário, Cameron ajudou a conceber
um mecanismo de câmeras especial para rodar o filme em 3-D, aperfeiçoando a sua
própria tecnologia ao criar um blockbuster épico e imersivo. Em parceria com a
WETA, ele também não poupou investimentos na utilização (e no aprimoramento) da
técnica de captura de movimentos. Mais do que simplesmente criar avatares,
Cameron ampliou a escala do gênero ao nos brindar com um filme dono de uma
mitologia própria, uma história com personagens tridimensionais e
brilhantemente concebidos. Com Zoe Saldana e Sam Worthington entre os
protagonistas, o realizador se preocupou com elementos bem particulares da
atuação digital, entre eles a texturização, a expressividade facial e a energia
do olhar, dando aos seus comandados a máxima possibilidade de criação. A
perfeita sinergia entre a fantasia e o realismo. Ainda em 2009, Robert Zemeckis
voltou a utilizar o ‘motion capture’ na animação natalina Os Fantasmas de
Scrooge. Com Jim Carrey e Gary Oldman entre os protagonistas, o longa caprichou
na expressividade, na textura dos personagens, mas, apesar da nítida evolução,
o visual cartunesco e a artificialidade motora reduziram o impacto do longa. Na verdade, Zemeckis preparou o terreno para títulos como O Bom Gigante Amigo (2017), que, sob a batuta do "Às" Steven Spielberg deu ao talentoso ator Mark Rylance a possibilidade de encarnar um gigante carismático, expressivo e naturalmente humano.
Hulk (2003), O Incrível Hulk (2008), Os Vingadores (2012), Vingadores: Era de Ultron (2014) e Thor: Ragnarok (2017) |
Nos anos seguintes, quem se tornou referência na construção de mundos
fantásticos foi a Marvel Studios. Comprovando a evolução do 'motion capture', o
inventivo Joss Whedon finalmente resolveu os problemas em torno do mostrengo
Hulk em Os Vingadores (2012). Com o talentoso Mark Rufallo por trás do gigante
verde, o personagem finalmente ganhou personalidade própria, um visual tangível
e expressivo que foi sofisticadamente atualizado nos filmes seguintes. A
diferença é nítida. Um trabalho estiloso que voltou a ser utilizado com
maestria em Vingadores: A Era de Ultron (2014). Indo além da versão raivosa de
Bruce Banner, Whedon equilibrou o melhor do CGI e da captura de movimento ao
criar o design do insano Ultron. Num trabalho magnífico, ele conseguiu dar um
olhar humano para um robô megalomaníaco e egocêntrico, um feito potencializado
pela estupenda performance de James Spader. E a Marvel não parou por ai. Nos
seus dois últimos trabalhos, os excelentes Homem-Formiga e Capitão América:
Guerra Civil, o estúdio utilizou o CGI\captura de movimentos para rejuvenescer
os astros Michael Douglas e Robert Downey Jr. Um trabalho, verdade seja dita,
quase artesanal.
Atores recriados digitalmente |
Sob a batuta da Lola VLX, um estúdio de animação especializado
em "efeitos cosméticos", os animadores utilizaram imagens dos atores
em filmes da década de 1980 como modelo, corrigindo os efeitos do tempo numa
espécie de "lifting digital". Um processo minucioso, recheado de
sutilezas, que, indiscutivelmente, espantou o público tamanho realismo e
verossimilhança. O mesmo, aliás, aconteceu no recente Star Wars: Rogue One
(2016). Como o filme é um prelúdio do clássico Episódio IV, a Disney tirou o
seu "coelho da cartola" resgatar dois importantes personagens do
filme original. Com o apoio luxuoso da Industrial Light e Magic, a equipe não
só ressuscitou o legendário Peter Cushing, responsável por dar vida ao nefasto
Governador Tarkin, como também rejuvenesceu a saudosa Carrie Fisher, permitindo
que uma jovem Princesa Leia fizesse uma arrepiante aparição na sequência final.
Numa solução engenhosa (veja aqui), os animadores primeiro utilizaram os atores Ingvild
Deila e Guy Henry como modelos e capturaram os movimentos deles em cena. Em
seguida, o rosto dos protagonistas foi "reconstruído" em 3-D num processo
à parte, sendo inserido digitalmente na pós-edição. O resultado foi incrível,
um feito que, independente dos perceptíveis problemas quanto a expressividade,
levantou uma série de promissoras discussões acerca do futuro da atuação no Cinema.
É inegável, porém, que a consolidação da atuação digital propriamente dita, no momento, está diretamente ligada a marcante trilogia Planeta dos Macacos. Realçando a evolução deste advento na última década, PdM: A Origem (2011) causou um enorme frisson junto ao público ao desenvolver primatas digitalizados absurdamente realísticos aos olhos do público. Indo de encontro ao viés estritamente animalesco de King Kong, o diretor Rupert Wyatt se preocupou em traduzir a crescente antropomorfização dos personagens, principalmente do evoluído macaco César, respeitando a essência de cada uma das espécies sem esquecer de adicionar personalidade aos animais. Com Andy Serkis como o líder da revolução símia, o realizador conseguiu realçar o estupendo trabalho da equipe de animadores ao capturar a expressividade dos macacos, as múltiplas feições, o olhar mais humano e o seu gestual método de comunicação. Embora em alguns (poucos) momentos César soe ligeiramente artificial, um deslize brilhantemente corrigido nos filmes seguintes, o início da trilogia prelúdio estabeleceu um patamar ainda hoje inalcançável. O que ficou bem claro nos dois filmes seguintes, os fantásticos PdM: O Confronto (2014) e PdM: A Guerra (2017). Dando a Serkis (e ao magnífico elenco de apoio) o máximo de liberdade possível, Matt Reeves e os animadores conseguiram tornar as expressões de César assustadoramente humanas e realísticas.
Apesar do CGI, é possível enxergar a presença de Serkis em cena, a sua intensidade, o seu olhar profundo, um forte grau de intimismo nunca antes visto dentro do gênero. Em entrevista ao site Omelete, Andy Serkis confirmou esta impressão ao revelar que o 'motion capture' passou a capturar também as emoções dos personagens. "Se trata de uma performance completa, a parte física, as expressões, áudio, a voz, tudo. É somente outra tecnologia que capta a atuação na sua totalidade." resumiu o astro. Em entrevista a youtuber Lully, do canal Lully de Verdade, Serkis foi além ao deixar claro que não existem diferenças entre a atuação "tradicional" e o modelo digital. "Não existe diferença porque não há razão, atuar é atuar. Levou um grande tempo para as pessoas perceberem isso. Não existe diferença entre usar um figurino, a maquiagem e ir para um set diante de uma câmera, ou estar vestindo uma roupa de captura de movimento, com o capacete e pontos no seu rosto. Você está interpretando um personagem, o construindo através da pesquisa, entendendo a sua emoção, o aspecto psicológico do papel, a sua história. É exatamente o mesmo processo. (...) A diferença está no método, entre ser maquiado antes da atuação (via recursos práticos) ou depois da atuação (via recursos digitais).", completou o ator.
Um entusiasta da tecnologia, Andy Serkis falou também sobre a evolução da captura, ressaltando o minucioso processo de desenvolvimento do seu César. "Logo no começo de Planeta dos Macacos: A Origem, nós podíamos utilizar essa tecnologia fora do estúdio. Mas o primeiro filme é bem doméstico, ou se passava no laboratório, ou na casa que César nasceu, ou no santuário dos macacos... Já nesses filmes (os dois últimos) nós filmamos nas montanhas, com neve, chuva, em condições bem adversas, então a tecnologia se tornou muito mais robusta. E também na pós-produção, a renderização dos personagens nesse filme alcançou um novo nível quanto à textura da pele, os olhos, a pelagem e como a neve cai na pelagem.", concluiu o ator ao site Omelete. Um processo de refinamento que fica bem claro ao longo da franquia (veja na imagem acima) e só realça o incrível trabalho de Andy Serkis, um realizador que, ao abrir mão da sua vaidade enquanto ator, criou alguns dos personagens mais populares do universo da fantasia nas últimas duas décadas.
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