A perversidade de uma
mentira
Uma espécie de ópera em formato fílmico, Marguerite é uma comédia
dramática satírica sobre uma cantora lírica que não sabia cantar. Dividido em
excessivos cinco atos, o longa dirigido por Xavier Giannoli é incisivo ao
explorar o lado mais nocivo por trás de uma mentira, dando contornos
naturalmente desconfortáveis a jornada de uma altruísta socialite iludida pelo
ambiente que a cerca. Indo além do magnífico contexto musical, aqui explorado
em sua essência mais pura, o realizador italiano flerta com o genial ao
explorar os dilemas mais mundanos em torno da protagonista, encontrando no
olhar inocente da talentosa atriz Catherine Frot a profundidade necessária para
escancarar a hipocrisia presente na nossa sociedade. Na ânsia de construir uma
trágica alegoria sobre a desilusão, no entanto, Marguerite frustra ao
desperdiçar as questões mais humanas, subaproveitando alguns dos interessantes
personagens de apoio em prol de escolhas exageradas, entre elas o perigosamente cartunesco último ato.
Inspirado na história da milionária Florence Foster Jenkins, que,
recentemente, ganhou uma cinebiografia estrelada pela laureada Meryl Streep,
Xavier Giannoli se esquiva das soluções fáceis ao narrar a trajetória da
cativante Margurite Dumont (Catherine Frot), uma ricaça simpática e altruísta
que cultivava um imensurável amor pela música. Mesmo sem qualquer aptidão para
o canto, a bem intencionada socialite fazia da sua mansão o palco para as suas
desafinadas apresentações, recebidas com cinismo e condescendência pela alta
sociedade francesa da época. Após um destes eventos beneficentes, porém,
Marguerite se torna um alvo dos interesseiros Lucien (Sylvain Dieuaide) e
Kyrill (Aubert Fenoy), uma dupla de jornalistas anarquistas que enxerga nela a
possibilidade de prosperar financeiramente. Atraída por uma crítica positiva,
ela não demora muito para se afeiçoar pelos dois inteligentes jovens, sem saber
que estaria se distanciando perigosamente da "bolha" idealizada pelo
seu marido, o errático Georges Dummont (André Marcon).
Com argumento assinado pelo próprio Xavier Gianolli, Marguerite é
inicialmente primoroso ao introduzir o ambiente corrosivo que cerca a ingênua
protagonista. Num ágil e envolvente 'mise en scene', o realizador flerta com o
humor mais acessível ao construir a inusitada primeira apresentação da
"cantora", permitindo que o espectador não só se sinta instigado pelo
exotismo desta figura, como também compreenda as intenções dos humanos
personagens de apoio. Impulsionado pela afiada montagem e pela exuberante
direção de arte, Gianolli mostra sensibilidade ao desvendar as espontâneas
reações dos convidados, estabelecendo a partir deste olhar abrangente a
complexidade do tema proposto. Entre risos discretos e olhares espantados, o
diretor faz questão de realçar, por exemplo, o misto de tristeza e admiração na
expressão do fiel mordomo Madelbos (Denis Mpunga), a compaixão indolente da
jovem soprana Hazel (Christa Théret), a euforia anárquica de Kyrill, o insight
oportunista de Lucien ou até mesmo a enraizada culpa de Georges. Desta
percepção inicial, inclusive, nascem os mais interessantes arcos do longa,
principalmente quando o roteiro resolve destrinchar os motivos por trás da
incapacidade de cada um deles em revelar a verdade para a pobre Marguerite.
Melhor ainda, aliás, é o desenvolvimento da trajetória da afetuosa
protagonista. Com sutileza e sinceridade, Xavier Gianolli é habilidoso ao
estabelecer o amor platônico de Marguerite pela música clássica, uma devoção
sincera e comovente que só amplia a sensação de desconforto em torno das suas
desafinadas apresentações. Inicialmente hilárias, os concertos da socialite
passam a perder a graça no momento em que percebemos a crença dela no seu
talento, na sua voz, uma confiança alimentada pela hipocrisia e pelos escusos
interesses. À medida que a trama avança, inclusive, o diretor italiano mostra
categoria ao substituir a comédia pelo drama, a sátira pela tragédia,
evidenciando pouco a pouco as consequências por trás destas perigosas mentiras.
Impecável ao trabalhar a paixão de Marguerite pela sua arte, Gianolli é
igualmente impecável ao investigar os dilemas mais íntimos desta fascinante
mulher. Numa crítica ao papel da mulher numa sociedade altamente conservadora,
o realizador passeia por temas como a solidão, o vazio da vida fútil e a
frustração matrimonial, questões que passam a ecoar mais alto quando ela se vê
fora da redoma super protetora do marido.
Na hora de tirar o dez, no entanto, Xavier Gianolli derrapa nas suas
próprias pretensões. Indo de encontro a sensibilidade apresentada na primeira
metade do longa, o realizador surpreende ao subaproveitar alguns dos excelentes
personagens de apoio em prol do cartunesco núcleo artístico liderado pelo
decadente Pezzini (Michel Fau), um tenor afetado contratado por Georges para
tentar impedi-la de "mostrar o seu talento" numa apresentação aberta
ao público. Além de extenso, o processo de treinamento de Marguerite, por
exemplo, se revela insosso e redundante, uma decepção se comparado com o
impagável primeiro encontro entre o mentor e a sua aluna. Pra piorar, antes
inteligentes e espirituosos, os diálogos repentinamente se tornam pálidos e
nada incisivos, o que talvez explique a evidente queda de ritmo da película.
Nenhum destes problemas, porém, incomoda tanto quanto a construção do
operístico clímax. Na ânsia de dar um contorno alegórico a jornada de
Marguerite, Gianolli se rende a um desfecho exagerado, conveniente e apressado,
um arremate pitoresco que se sustenta basicamente no talento da dupla Catherine
Frot e André Marcon.
Recheado de sequências intimistas, incrementadas pelos preciosos
enquadramentos e pela soturna fotografia de Glynn Speeckaert, Marguerite vai do
humor ao desconforto ao descortinar a trajetória de uma cantora manipulada pelo
meio em que vivia. Ainda que, assim como a sua protagonista, o longa dê as suas
generosas desafinadas, Xavier Giannoli esbanja humanidade ao procurar entender
os motivos por trás das "mentiras sinceras" que guiam a jornada desta
figura pura apaixonada pela música clássica.
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