Com o seu reconhecido cinismo, o cultuado Stanley Kubrick levanta uma
poderosa bandeira contra a guerra no primoroso Glória Feita de Sangue. Antes de
brilhar com os clássicos Spartacus, 2001: Uma Odisseia no Espaço e Nascido para
Matar, o realizador norte-americano realça as incoerências por trás de um
conflito bélico ao escancarar os contrastes entre os soldados e os seus superiores.
Com Kirk Douglas numa das atuações mais marcantes de sua laureada carreira,
Kubrick subverte os longas do gênero ao reduzir a escala do confronto em prol
de uma premissa revoltante, contextualizada e absolutamente crítica.
Apesar dos enxutos noventa minutos de película, Glória Feita de Sangue
(que título bem traduzido!) é profundo ao revelar qual é o peso de uma vida nas
mãos dos vaidosos e inescrupulosos comandantes de guerra. Inspirado no livro
'Paths of Glory', do escritor Humphrey Cobb, o argumento assinado por Stanley
Kubrick, Calder Willingham e Jim Thompson retorna a Primeira Guerra Mundial
para acompanhar as desventuras do coronel Dax (Douglas), um oficial respeitoso
que liderava o front francês com afinco e bravura. No ápice do confronto, no
entanto, este militar é escolhido para liderar uma missão quase suicida contra
um destacamento alemão, uma incursão idealizada pelo egocêntrico General Mireau
(Adolphe Menjou). Com o insucesso deste confronto, o oficial resolve
transformar este episódio num exemplo para toda a tropa e indicia três soldados
à pena de morte por covardia no campo de batalha. Indignado com a situação, Dax
resolve assumir as rédeas desta batalha judicial, expondo a revoltante
realidade por trás deste episódio.
Inicialmente, Glória feita de Sangue parece seguir um rumo mais
tradicional dentro do gênero. Ainda que os contrastes entre a guerra encarada
no campo e a batalha disputada nos suntuosos quartéis generais sejam
evidenciados com maior originalidade, Kubrick expõe a desoladora realidade dos
soldados de maneira crua e visceral, investindo num primeiro ato mais sujo e
convencional. À medida que o filme deixa as trincheiras e invade o tribunal, no
entanto, o longa ganha em intensidade e contexto. Ao reduzir a escala do
confronto, Kubrick mostra a sua reconhecida genialidade ao não só escancarar o
inescrupuloso jogo de poder liderado pelos generais, como também ao valorizar o
peso de uma morte, a dor da injustiça, criando uma linha narrativa mais íntima,
profunda e absolutamente crítica.
Símbolo máximo de bravura, o coronel Dax surge em cena para representar
o ideal militar, um personagem talhado para expor a vaidade, a hipocrisia e os
reais interesses por trás dos conflitos de grande porte. Do alto da sua acidez,
Kubrick nos brinda com diálogos absolutamente cínicos, encontrando na rigidez
moral do protagonista a tenacidade necessária para construir sequências
poderosas e naturalmente revoltantes. Não se engane, porém, com o aparente
amargor da película. Quando tudo parecia caminhar para um desfecho desolador, o
aclamado diretor surpreende ao investir numa cena final doce e sensível, um arremate
que corta o coração ao mostrar que por trás dos números existem homens e que
eles são bem mais dignos do que àqueles que os comandam.
Se narrativamente o filme é impecável, esteticamente Stanley Kubrick já
dava indícios do seu virtuosismo estético. Mesmo num projeto pequeno, o diretor
constrói uma sequência de guerra absolutamente memorável, colocando a sua câmera
no "olho do furacão" ao acompanhar a fatídica incursão dos militares
franceses. Num movimento de câmera lateral, o popular ‘traveling’, Kubrick cria
uma cena memorável, impulsionada pelos incômodos efeitos sonoros e pela
vigorosa atuação de Kirk Douglas. Melhor ainda, aliás, são as cenas nas
trincheiras. Na melhor delas, o realizador investe num fantástico plano
sequência, acompanhando o bizarro contato do General Mireau com os combalidos
soldados franceses. Já nas cenas nos casarões dos oficiais, Kubrick faz questão
de ressaltar a grandiosidade, o conforto e o distanciamento da realidade em que
eles deveriam estar inseridos, criando uma série de contrastes potencializados
pela incrível fotografia em preto e branco de Georg Krause. Sem querer revelar
muito, a maneira como a dupla captura a luz natural na sequência da confissão é
magnífica, um exemplo do apuro estético desta película.
Contando também com um talentoso elenco de apoio, capitaneado por
Adolphe Menjou, George Macready e Wayne Morris, Glória Feita de Sangue é uma
pérola antibélica que não merece ser esquecida. Apesar do contexto histórico,
Stanley Kubrick apresenta uma obra à frente do seu tempo, um relato crítico que
se mostra ainda hoje relevante e atual.
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