Sujo, brutal e degradante, Meu Ódio Será a sua Herança redefiniu o gênero Western ao colocar em cheque algumas das fórmulas que Hollywood ajudou a popularizar. Esqueça os caubóis idealistas, os gestos altruístas e os vilarejos inocentes. Sob a virtuosa batuta de Sam Peckinpah, o longa recria o "velho oeste" de maneira bem mais hostil e amoral, um cenário ameaçador composto por personagens multidimensionais e conflitos em sua essência individualistas
Na trama, com tudo planejado para um derradeiro assalto a um poderoso banco norte-americano, o grupo liderado pelo envelhecido Pike (William Holden) é pego de surpresa ao se deparar com um bem armado bando de caçadores de recompensas. Acuados e em menor número, os foras da lei se veem obrigados a cruzar a fronteira e encontrar refugio num pequeno vilarejo mexicano. Ao lado do fiel escudeiro Dutch (Ernest Borgnine), do veterano Skyes (Edmond O'Brien) e do intenso Angel (Jaime Sánchez), Pike caba "recrutado" pelo nefasto general Mapache (Emilio Fernandez), o líder de um destacamento armado que oprimia os moradores da região em troca de recursos e mulheres. Do outro lado da fronteira, no entanto, os caçadores liderados por Deke Thorton (Robert Ryan) ainda estavam no rastro dos bandidos, iniciando assim um jogo de gato e rato capaz de sujar de sangue as arenosas terras mexicanas.
Narrativamente ousado, Meu Ódio Será a sua Herança não poupa o espectador ao escancarar a violência deste período. Indo além das brutais sequências de ação, o argumento assinado pelo próprio Sam Peckinpah, ao lado de Walon Green, volta a sua afiada mira para protagonistas e coadjuvantes, evidenciando a degradação de um ambiente formado por bandidos decadentes, por empresários gananciosos, por líderes manipuláveis e por cidadãos coniventes. Em suma, uma sociedade corrompida devastada pelo fantasmas do progresso. Ao levar a trama para o caótico cenário mexicano, aliás, o diretor esbanja categoria ao mostrar desta deterioração moral sob um prisma mais nocivo e visceral. As mulheres, por exemplo, são pintadas como criaturas traidoras e interesseiras, personagens capazes de tudo para se aproximar do poder. Os homens, por outro lado, são covardes e em sua maioria estúpidos, um dispensável instrumento de manobra nas mãos dos seus líderes. Já as crianças se transformam num poderoso elemento narrativo nas mãos de Peckinpah. Por diversas vezes, inclusive, o diretor volta a sua câmera para os rostos infantis, criando um contraste quase sempre brilhante ao inseri-los em sequências brutais e sanguinárias.
Assim como os coadjuvantes, aliás, os protagonistas também são bem aproveitados ao longo da trama. À exceção do caricato Mapache, um tipo asqueroso e unidimensional, Sam Peckinpah abre espaço para personagens multifacetados, figuras guiadas por um código de ética dúbio e ultrapassado. Indo de encontro ao arquétipo do herói popularizado Western, o argumento investe em personagens inicialmente agressivos e individualistas, tipos capazes de inciar uma troca de tiros sem pensar nas vítimas e\ou nos inocentes. Aos poucos, no entanto, a humanidade do grupo liderado pelo contido Pike vai sendo revelada, principalmente quando percebemos a hostilidade do ambiente que os cercam. Neste sentido, aliás, é interessante ver como este corrosivo cenário ecoa nas atitudes dos decadentes foras da lei, permitindo que o público se afeiçoe ao grupo de criminosos ao perceber o seu incomodo\cansaço diante desta nociva realidade. Méritos que, logicamente, precisam ser divididos com a dupla William Holden e Ernest Borgnine, impecável ao traduzir as nuances dos seus respectivos personagens. Além disso, a relação entre Deke e Pike se revela um dos pontos altos da trama, desvendando um pouco mais da intimidade destas duas importantes figuras.
Impulsionado por este poderoso argumento, Sam Peckinpah brilha ao reproduzir este cenário sujo e devastador. Na contramão dos principais títulos do gênero, o realizador se concentra nas pessoas, nas envelhecidas construções, fazendo um excelente uso do primoroso trabalho da equipe de direção de arte. Com ambientes tão detalhistas em mãos, o diretor ousa ao apostar em ambiciosas sequências de ação, marcadas pela violência estilizada, por virtuosos movimentos de câmera e pela preciosa montagem. Já na brutal cena de abertura, Peckinpah mostra o seu cartão de visitas ao construir um ambiente naturalmente ameaçador, permitindo que o espectador tome ciência do que estar por vir ao longo da película. Num trabalho à frente do seu tempo, o realizador é cuidadoso ao arquitetar as cenas, ao posicionar os personagens, ampliando a atmosfera de tensão em torno de cenas como a do roubo ao trem. Nenhuma delas, no entanto, está à altura do violento clímax, um desfecho devastados e fiel à proposta defendida pelo argumento.
Inspirando nomes como os dos cultuados Quentin Tarantino e Martin Scorsese, Meu Ódio Será a sua Herança se revela um relato visceral sobre uma realidade que Hollywood custou a desvendar. Um filme incisivo e nada idealista.
2 comentários:
Além dos adjetivos que você cita no primeiro parágrafo, eu diria também que o filme é sensacional.
Sam Peckinpah foi um maluco que enfrentou os estúdios para colocar nas telas sua violência estilizada e com certeza pensou a frente de seu tempo.
Abraço
Bela definição Hugo. Definitivamente, ele revolucionou as engrenagens do gênero. Acho que filmes como esse, independente do gosto, não podem cair no esquecimento. Abs e valeu pela visita.
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