Apesar do chamariz em torno dos efeitos visuais, Ron Howard brilha ao valorizar o fator humano por trás de Moby Dick
Antes de qualquer coisa, precisamos lembrar que No Coração do Mar não se trata de mais um remake do clássico Moby Dick. Inspirado no livro homônimo de Nathaniel Philbrick, o longa dirigido por Ron Howard (Rush - No Limite da Emoção) se distancia dos mitos ficcionais e das muitas interpretações concebidas pelo escritor Herman Melville ao revelar os acontecimentos em torno do popular naufrágio do navio baleeiro Essex. Desta forma, esqueça os profundos relatos de Ismael e o obsessivo duelo entre o Capitão Ahab e a fera marítima. Ainda que alguns destes elementos marquem presença na película sob um viés mais realístico, este drama com toques de aventura cumpre as expectativas ao narrar com absoluta maturidade a jornada de sobrevivência de um intrépido grupo de marinheiros. Embora os primorosos efeitos digitais tornem a presença da gigantesca baleia branca impactante aos olhos do público, Howard realmente brilha ao valorizar o fator humano por trás desta tragédia, nos brindando com uma história ágil, envolvente e acima de tudo bem contada.
Narrado a partir do ponto de vista de um dos sobreviventes, o argumento assinado por Charles Leavitt, Rick Jaffa e Amanda Silver é cuidadoso ao seguir uma abordagem narrativa semelhante a de Moby Dick. Enquanto no livro de Nathaniel Philbrick os fatos são contados a partir de relatos do passado e da sua enorme pesquisa, em No Coração do Mar os roteiristas adotam uma licença poética ao revelar as desventuras da tripulação do Essex a partir do ficcional encontro entre o escritor Herman Melville (Ben Whishaw) e o velho sobrevivente Thomas Nickerson (Brendan Gleeson). Disposto a fazer do naufrágio do navio baleeiro o pano de fundo para o seu mais novo romance, o autor reúne todas as suas economias e resolve partir ao encontro do recluso e ainda traumatizado marujo. Inicialmente relutante, Nickerson se vê obrigado a aceitar o dinheiro, contando alguns dos mais enraizados segredos por trás deste episódio. É ai que voltamos ao ano de 1919, quando o jovem Thomas (Tom Holland) embarca no Essex vivendo a expectativa da sua grande viagem marítima. Lá ele conhece o primeiro oficial Owen Chase (Chris Hemsworth), um destemido marinheiro que, após ter a sua promoção negada por um dos seus chefes, é obrigado a se submeter as ordens do inexperiente capitão George Pollard (Benjamin Walker). Oriundo de uma linhagem de capitães baleeiros, o arrogante comandante logo entra em rota de colisão com Chase, iniciando uma rivalidade que os colocaria diante do seu maior pesadelo: uma destruidora baleia branca.
Equilibrando aventura e drama com enorme categoria, Ron Howard não se deixa levar pelos realísticos efeitos visuais ao investigar os bastidores desta devastadora experiência. Como se não bastassem as incríveis sequências marítimas, potencializadas pela opressividade visual da baleia e pelo impecável 3-D, o experiente realizador adota um ritmo próprio ao acompanhar a rotina da tripulação do Essex. Através de cortes rápidos e da fluída montagem, Howard se preocupa em valorizar os detalhes, procurando a todo momento não só a expressão dos protagonista, mas também os pormenores no 'modus operandi' dos marinheiros. Um ponto de vista inquieto que se revela extremamente funcional, incrementando as diversas e bem resolvidas subtramas. Ainda assim, por mais que o argumento faça questão de manter a maior parte dos coerentes personagens sob os holofotes, No Coração do Mar se concentra logicamente na rivalidade entre Owens e Pollard. Guiada pela obsessão, pela arrogância e pela bravura, a crescente relação dos dois polariza as atenções sem maiores problemas, dialogando de maneira sagaz com alguns dos elementos que consagraram a persona do ficcional capitão Ahab. Enquanto o questionado Benjamin Walker surpreende ao capturar a empáfia de Pollard, alimentando esta postura nobre mesmo nos piores momentos, Chris Hemsworth se distancia do icônico Thor ao construir um tipo que vai se fragilizando ao longo da película. Embora num primeiro momento o carismático ator exiba a confiança do herói Marvel, aos poucos Hemsworth mostra uma faceta mais complexa, traduzindo com segurança a vulnerabilidade de Owens diante da morte iminente. Isso sem falar da sua impressionante entrega física, já que ele perdeu quase 20 kg para interpretar a versão mais esquálida do seu personagem.
Tirando proveito do talento do jovem Tom Holland e do experiente Brendan Gleeson, Ron Howard narra as desventuras da tripulação ora sob o inocente ponto de vista do adolescente, ora sob o traumatizado relato do velho marujo, descrevendo com categoria a degradação física e emocional dos protagonistas. Responsável por nos introduzir a parte mais aventureira da trama, Holland se garante ao tornar crível o misto do entusiasmo e amedrontamento do jovem Thomas. Exibindo uma excelente química com Chris Hemsworth, o expressivo ator esbanja humanidade ao protagonizar alguns dos melhores momentos do longa. No mais impactante deles, o ator vai da euforia ao pesar ao presenciar a morte de uma gigantesca baleia, numa sequência emblemática e engajada. Uma poderosa mensagem contra a pesca predatória deste gigantesco mamífero aquático. Com um pouco menos de espaço para brilhar, Brendan Gleeson mostra a sua reconhecida intensidade ao construir a versão velha e amargurada de Thomas. Numa performance contida, o veterano ator revela nas suas feições os fantasmas desta tragédia, tornando a sua fria narração uma espécie dolorosa de confissão. Dividindo a tela com o competente Ben Whishaw e com persuasiva Michelle Fairley, num papel importante para a conclusão deste arco, Gleeson torna crível a dor do seu personagem, fazendo a imagem parecer algo supérfluo durante o relato mais delicado da película. Com um pouco menos de sorte, Cillian Murphy também marca uma indispensável presença na trama. Ainda que o seu personagem tenha um desenvolvimento aquém do esperado, o que se mostra um dos maiores pecados do argumento, o talentoso ator cativa ao viver um ex-alcoólatra amigo de infância de Owens.
Se distanciando do tom naturalista ao reproduzir as mazelas enfrentadas pelos marinheiros durante o período à deriva, o que torna a experiência menos aflitiva em relação a blockbusters do gênero como Náufrago e As Aventuras de Pi, No Coração do Mar envolve ao destacar os dilemas morais por trás desta incrível história de sobrevivência. Embalado pela iluminada fotografia de Anthony Dod Mantle e pelo minucioso trabalho da equipe de direção de arte, Ron Howard vai além da batalha entre homem e baleia ao encontrar tempo para propor uma urgente e preciosa reflexão em torno da arrogante postura do ser humano diante do meio ambiente. Afinal de contas, o tempo passa, as fontes de energia (e de poder) mudam, mas os relatos divulgados nos principais telejornais confirmam que a nossa sociedade, assim como fez a tripulação do Essex, segue desafiando perigosamente a força da natureza.
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