quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Cinemaniac Indica (Força Maior)

Tecnicamente impecável, Força Maior faz de uma assustadora avalanche o metafórico estopim para uma desconfortável lavagem de roupa suja familiar. Conduzido com enorme maturidade pelo sueco Ruben Östlund, este afiado longa passeia pelas nuances do casal de protagonistas ao escancarar o jogo de aparências por trás de um casamento prestes a ruir. Através de discussões intimistas e inegavelmente universais, o drama promove uma inteligente reflexão ao investigar as expectativas em torno do arquétipo da família perfeita. Flertando ora com o suspense psicológico, ora com o drama comportamental, Östlund transforma um luxuoso resort nos alpes franceses num cenário naturalmente tenso, potencializando os embates morais acerca das instintivas atitudes de um zeloso pai de família. Ainda que o ritmo lento possa incomodar os mais desavisados, a narrativa crescente e original logo se revela instigante, nos atraindo ao questionar a nossa reação perante este complexo cenário.



Desde a incomoda primeira sequência, quando percebemos a frieza dos protagonistas ao posarem para uma simples foto em família, Ruben Östlund é sagaz ao revelar que estamos diante de uma família em crise. Mesmo sem mostrar os problemas que levaram a esta situação, sabiamente mantido nas entrelinhas, o diretor sueco tece uma ácida crítica aos padrões relacionais ao analisar as consequências de um traumático episódio nas férias de Tomas (vivido com brilhantismo por Johannes Kuhnke) e Ebba (interpretada pela intensa Lisa Loven Kongsli). Cultivando o rótulo de família feliz, o casal vê esta situação mudar quando, após uma inesperada avalanche, Tomas "abandona" a sua mulher e os filhos e corre em direção a um lugar seguro. Ainda atordoado com o susto, ele percebe a insatisfação de sua esposa, que se mostra inconformada com a reação acovardada do marido. Tentando conviver com este turbilhão de emoções, Tomas e Ebba resolvem inicialmente curtir os últimos dias de férias, sem saber que os ecos deste episódio logo viriam à tona para acender o barril de pólvoras que havia se tornado o seu casamento.


Responsável também pelo roteiro, Ruben Östlund é franco ao explorar as nuances dos personagens em torno deste embate moral. Ainda que Tomas e Ebba cultivem uma aparência fria e distante, pouco a pouco eles vão se despindo do rótulo de casal modelo, evidenciando a insegurança, a desconfiança e a frustração a partir das suas respectivas atitudes. Desta forma, enquanto ela definitivamente parte para o ataque, encontrando na postura covarde do marido o motivo para extravasar toda a sua revolta, ele demonstra uma inesperada apatia, assumindo a "culpa" por ter se mantido fiel ao seu instinto de sobrevivência. Distanciamento que se traduz em takes criativos, como nos desconfortáveis encontros durante o escovar dos dentes. Chama a atenção, aliás, a maneira com que o diretor conduz a desconstrução emocional de Tomas, culminando numa explosão de sentimentos sincera e repentina. Através da inspirada abordagem intimista, o realizador sueco praticamente nos convida a participar desta claustrofóbica discussão, fazendo da "fuga" de Tomas o ponto de partida para uma envolvente análise sobre as expectativas em torno dos relacionamentos atuais. Ao longo da trama, Östlund coloca em cheque o jogo de aparências por trás do casal de protagonistas, expondo as feridas convenientemente evitadas em prol da ilusão do casamento feliz. Para isso, de maneira perspicaz, o argumento se volta para a sinceridade dos filhos do casal, que em cenas pontuais comprovam que estas crises eram mais comuns do que pareciam. Os jovens Vincent Wettergren e Clara Wettergren, inclusive, tem uma participação comovente dentro do clímax, numa sequência acalentadora que contrasta com o sinistro cenário gélido.


Curiosamente, apesar da atmosfera sombria atribuída a bela paisagem nebulosa, a avalanche não surge aqui como uma antagonista, mas como uma espécie de agente do caos, a responsável pela mudança no 'status quo' desta família. Explorada com maestria por Östlund, a montanha se torna uma espécie onipresente de personagem, pontuando as discussões em takes geralmente isolados e quase sempre banais, mas que acrescentam tensão a película. Com destaque para a verossímil sequência do desmoronamento, de longe um dos assustadores pontos altos da película. Força Maior, no entanto, assume o seu viés mais crítico ao discutir o atual papel de um pai família. Sem fugir das polêmicas, Ruben Östlund decide intervir na avaliação moral de Tomas, questionando não só o ponto de vista patriarcal\protetor\heroico idealizado por Ebba, mas também a nossa conduta diante desta delicada situação. O resultado é um último ato de aparência condescendente, mas que foge do lugar comum ao preparar o terreno para uma sequência final reflexiva e absolutamente humana. Uma visão compreensiva sobre o nosso instinto de sobrevivência que, ao igualar os protagonistas, acaba ressaltando o quão hipócrita pode ser um julgamento deste porte. 

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