Reconhecido como o "pai" dos blockbusters de verão, Steven Spielberg se consagrou com os seus populares filmes pipocas. Tubarão (1975), Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1977), Os Caçadores da Arca Perdida (1981), E.T - O Extraterrestre (1982), Jurassic Park (1993) e Prenda-Me se For Capaz (2002) foram apenas alguns dos estrondosos sucessos de publico do realizador. Por outro lado, Spielberg também reservou um grande espaço da sua carreira para os títulos mais sóbrios, principalmente com os seus aclamados dramas de guerra. Obras como O Império do Sol (1987), A Lista de Schindler (1993), O Resgate do Soldado Ryan (1998) e o recente Lincoln (2012) só trouxeram mais prêmios para o currículo do diretor, quase sempre brilhante ao enxergar o fator humano por trás de conflitos históricos. Dito isso, indo da universalidade dos seus trabalhos mais familiares, a contextualização dos seus longas mais "realísticos", Steven Spielberg impressiona ao mostrar em Ponte de Espiões a essência do seu cinema. De volta a sua melhor forma, o realizador norte-americano esbanja categoria ao construir um relato completo, humanista e espirituoso envolvendo o auge da Guerra Fria.
Flertando ora com os filmes de tribunal, ora com o drama de guerra, ora com o suspense de espionagem, o argumento assinado por Matt Charman, ao lado dos irmãos Ethan e Joel Cohen, é magnífico ao abordar tantos temas de maneira tão intensa e compromissada. Didático na medida certa, a película em nenhum momento subestima a inteligência do espectador, pintando um cenário amplo e nada unidimensional ao reproduzir o impacto deste conflito na realidade dos americanos, alemães e soviéticos. Nas entrelinhas, inclusive, Spielberg se volta para temas como a paranoia americana envolvendo a ameaça nuclear, a destruição da Alemanha Oriental no pós-guerra, a construção do opressor Muro de Berlim e obviamente o velado "jogo de xadrez" entre as Agências de Inteligência dos EUA e da URSS, criando sequências que só acrescentam peso histórico ao longa. Desta forma, inspirado numa fantástica história real, Ponte de Espiões narra a obstinada luta de James Donovan (Tom Hanks), um advogado escolhido para defender em solo norte-americano o espião russo Rudolf Abel (Mark Rylance). Ciente dos perigos em torno deste julgamento, este integro homem resolve oferecer ao seu cliente uma defesa justa, criando um curioso vínculo com o acusado. Mesmo sabendo que o destino de Abel já estava praticamente traçado, o seu esforço acaba chamando a atenção dos soviéticos, o colocando no centro de uma arriscada troca de espiões durante a Guerra Fria.
Apesar da premissa naturalmente tensa e da preocupação com o contexto histórico, Steven Spielberg surpreende pela forma dinâmica com que desenvolve o envolvente argumento. Através de uma montagem esperta e do afiado senso de humor dos irmãos Cohen, Ponte de Espiões constrói a complexa jornada de James Donovan com absoluta desenvoltura, ressaltando bem mais o fator humano, do que propriamente o conflito ideológico. Explorando com extrema inspiração o jogo de aparências por trás do julgamento de Abel, deixado em segundo plano de maneira criativa, o roteiro é igualmente impecável ao introduzir a afável relação entre réu e advogado. Em seu quarto trabalho com o diretor, Tom Hanks brilha ao construir um personagem naturalmente integro. Numa rara e contida atuação, o astro de O Resgate de Soldado Ryan reflete a partir das suas expressões o senso humanitário do protagonista, criando um tipo heroico bom de lábia e confiante. Um homem de aparência inocente, daqueles que no fim do dia só deseja dormir o "sono dos justos", mas que não pensa duas vezes ao mandar um agente da CIA "ir se f...". Grande parte da força de Ponte de Espiões, no entanto, reside no humano e misterioso espião interpretado com maestria por Mark Rylance. Distante do tom caricatural da franquia 007, o gélido Rudolf Abel ganha uma aparência comum, do tipo que poderia se camuflar na multidão sem qualquer dificuldade. Em uma relação marcada pelo respeito mútuo e pela espirituosidade, Hanks e Rylance guiam o poderoso roteiro com enorme energia, se tornando o estopim para a intensa metade final.
Embarcando propriamente no thriller de espionagem a partir do segundo ato, Steven Spielberg adiciona mais ritmo a película ao narrar a jornada deste homem comum em um cenário completamente hostil. Por mais que a tensão já acompanhe o protagonista ao longo do primeiro ato, quando o longa é categórico ao mostrar a reação adversa dos americanos à idealista postura de Donovan, o suspense cresce à medida que o advogado se torna o elemento chave numa troca entre duas nações em guerra. Amparado pela fantástica direção de arte e pela contundente fotografia de Janusz Kaminski (O Resgate do Soldado Ryan), Spielberg nos faz crer que Donovan está realmente em perigo, principalmente quando ele entra em solo estrangeiro. Como se não bastasse a incomoda sensação de vigilância em torno do advogado, as cinzentas sequências na Alemanha Oriental são opressoras, potencializadas pelo impecável trabalho na reconstituição deste cenário frio e desolador. No ápice do longa, a câmera de Spielberg parece passear ao redor da construção de parte do Muro de Berlim, reproduzindo sob um ponto de vista realístico\assombroso o drama do alemães repentinamente separados por uma construção. O visual expressivo, inclusive, ameniza até mesmo alguns dos deslizes do longa, como a breve valorização do 'american way of life' e o menor espaço dado ao desenvolvimento dos prisioneiros Frederic Pryor (Will Rogers) e Francis Gary Powers (Austin Stowell).
Sóbrio, inteligente e absolutamente sagaz, Ponte de Espiões nos brinda com um retrato revelador sobre os bastidores de uma incrível história real. No seu mais completo trabalho desde o elegante Munique (2008), Steven Spielberg encontra na versatilidade de Tom Hanks e no excelente argumento os predicados necessários para narrar os magníficos feitos de um cidadão comum diante de duas potências bélicas. Tratando a Guerra Fria com extrema maturidade, o realizador dialoga ora com o suspense, ora com o drama, ora como humor ao promover uma mensagem humanitária contida e absolutamente bem-vinda. E isso sem esquecer de escancarar o jogo político e a paranoia americana por trás deste velado conflito, numa atmosfera digna das mais icônicas produções dos filmes de espionagem.
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