Aclamado por seu trabalho no drama Clube de Compras Dallas, Jean-Marc Valée (A Jovem Rainha Vitória) mostra novamente em Livre toda a sua capacidade em adaptar historias reais. Narrando a edificante jornada de redescoberta de uma mulher que perdeu o rumo de sua própria vida, o realizador canadense encontra em Reese Witherspoon toda a energia e a entrega física necessária para escapar dos clichês envolvendo o "sexo frágil". Explorando com habilidade a marcante feminilidade e beleza da atriz, que se torna uma impecável ferramenta para evidenciar os muitos altos e baixos da vida desta personagem, Valée faz da indicada ao Oscar a grande força motora deste longa. Ainda assim, apesar da complexa personagem segurar - literalmente - o filme nas costas, a "mochila" de Reese Witherspoon fica mais leve graças a esperta montagem, a belíssima fotografia e a capacidade deste realizador em tirar o máximo dos seus comandados.
Novamente competente ao abordar os dramas da natureza humana, Jean-Marc Valée encontra na sutileza uma arma poderosa para contar esta envolvente história real. Se em O Clube de Compras Dallas o diretor canadense optou por uma narrativa mais visceral, destacando com contundência as desventuras em torno de dois portadores de HIV, em Livre essa jornada é construída através de contornos mais suaves e sóbrios, condizentes a personalidade forte e determinada desta incrível personagem. Inspirado no livro "Livre - A Jornada de Uma Mulher em Busca do Recomeço", o roteiro assinado por Nick Hornby (Alta Fidelidade), no entanto, deixa claro que a conduta de Cheryl Strayed (Witherspoon) nem sempre foi esta. Após uma dolorosa perda familiar, esta independente mulher se entregou a um caminho de autodestruição, se rendendo as drogas, a promiscuidade e a completa ausência de rumo. Percebendo que estava muito perto do fundo do poço, Cheryl resolve colocar um ponto final nesta rotina e inicia uma longa caminhada da costa dos Estados Unidos até o México. Apesar da completa falta de experiência, dos riscos envolvendo a sua segurança e da vontade de desistir no primeiro quilometro, Cheryl passa a enxergar nesta aventura solitária uma forma de repensar a sua vida e expulsar alguns dos fantasmas que ainda pairam em sua mente.
Se apoiando numa edição recortada, que foge do lugar comum ao equilibrar o passado e o presente desta jovem, Jean-Marc Valée contrasta com inspiração as muitas fases da vida de Cheryl. Apesar da trama seguir uma narrativa linear, acompanhando a jornada desta mulher ao longo dos 4.200 km da trilha do PCT, a montagem faz com que os espertos e desconectados flashbacks funcionem como as memórias do passado de Cheryl. Através de fluidas e breves sequências, pouco a pouco vamos conhecendo as motivações por trás dessa corajosa aventureira, incluindo a sua infância conturbada, a relação com a carinhosa Bobbi (Laura Dern), os problemas com as drogas e, principalmente, os traumas desta fase mais danosa de sua vida. Sempre inventivo ao construir esta busca por um novo rumo, o diretor canadense é perspicaz ao explorar não só as memórias afetivas e conflitivas de Cheryl, mas também algumas interessantes metáforas, com destaque para uma das cenas iniciais em que, tal como um bebê, ela luta para se erguer e dar os primeiros passos com a pesada mochila nas costas. Além disso, os perigos em torno do percurso são apresentados de maneira crível pelo roteiro, sempre dialogando com o passado de Cheryl, abrindo assim significativas brechas para que possamos compreender o quão pesado foi esse período autodestrutivo da personagem.
O grande acerto do argumento, no entanto, fica pelo inteligente paralelo criado entre as vidas de Cheryl e Bobbi. Através deste recorte não linear de memórias, Valée é sutil ao desenvolver as personalidades de filha e mãe, contrastando a resignação comportamental de Bobbi, com a independência e a necessidade de crescer de Cheryl. Potencializado pelo fantástico desempenho da também indicada ao Oscar Laura Dern, inspiradora ao construir uma mulher extremamente humana, esta relação se torna a alma do roteiro e um dos pontos altos dentro deste drama. Aqui, aliás, as mulheres como um todo ganham o seu devido destaque. Apesar da trama se passar num cenário tipicamente masculino, enquanto os homens que surgem no caminho de Cheryl são pintados com certo desdém, ou como mera distração, ou como um símbolo de perigo, as aguerridas mulheres evidenciam o lado "girl power" desta história. Mesmo sem se render a vertente mais exagerada do discurso feministas, nas entrelinhas Jean-Marc Valée faz desta figura vaidosa, que se preocupa com a aparência e o cheiro ao longo desta desgastante trilha, um símbolo da mulher independente. Aquela que erra, que acerta, que surpreende ao levar um pacote de camisinhas na mochila, mas que não se arrepende de suas decisões, como a própria personagem evidencia na simples e objetiva sequência final.
Contando ainda com uma competente trilha sonora, que compõe com categoria algumas das cenas, Livre acaba se tornando um verdadeiro símbolo de uma batalha vencida. Afinal de contas, enquanto a própria Cheryl Strayed encontrou nos mais de 4 mil quilômetros desta trilha um caminho para o recomeço de sua vida, Reese Witherspoon deixou a aparência em segundo plano ao se entregar de maneira única para dar dignidade e vigor a esta inspiradora história real. Por mais que em alguns pequenos momentos o longa se renda aos clichês dos 'road-movies', o canadense Jean-Marc Valée faz deste drama um relato comovente, verossímil e extremamente profundo sobre uma mulher que, de forma selvagem, escolheu (tal como um bom "trilheiro") se livrar do "verdadeiro" peso de suas costas ao longo de uma física e exaustiva jornada pela costa dos EUA.
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