A base de vodca, drama se escora com competência na contundente crítica ao governo russo
Vencedor do Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro, Leviatã encontra o
seu verdadeiro destaque ao nos apresentar uma critica, conduzida por um próprio russo, ao modo de
governar do atual presidente Vladmir Putin. Apostando
numa trama extremamente universal, um drama familiar iniciado a partir
de uma decisão arbitrária do Estado, o longa dirigido por Andrey Zviaguintsev (O Retorno) busca numa
Rússia provinciana, ainda marcada pelo passado soviético, um cenário
promissor para esta interessante critica. As boas intenções do engajado argumento, no entanto, esbarram na ambição do realizador e de
sua contemplativa abordagem, que ganha corpo através de uma narrativa lenta, difícil e em muitos momentos pretensiosa. Uma opção que pode até não
influenciar a mensagem final de Zviaguintsev, mas que reduz o eco deste gritante e necessário relato sobre a opressão política na Rússia.
Trazendo consigo a curiosa chancela do Ministério da Cultura da Rússia, que surge nos créditos iniciais como um dos incentivadores desta produção, Leviatã não se arrisca a fazer uma crítica nominal ao governo de Vladmir Putin. Ainda que em alguns momentos os roteiristas Oleg Negin e Andrey Zviaguintsev apontem o dedo com maior contundência para outros governantes soviéticos, incluindo uma impagável cena envolvendo um jogo de tiro ao alvo com retratos de Gorbachev e Lenin, o questionamento à figura de Putin ganha realmente voz nas entrelinhas. Optando por nos apresentar esta crítica em escala reduzida, usando como pano de fundo uma pequena cidade do litoral ártico, Zviaguintsev nos lembra do alcance do atual presidente de uma forma bem mais inspirada, o destacando num quadro no alto da sala do nefasto prefeito Vadim (Roman Madianov). À sombra de Putin, o argumento narra as desventuras de Kolia (Alexeï Serebriakov), um humilde trabalhador que é obrigado a vender a casa de sua família para a construção de uma obra da prefeitura. Revoltado não só com a situação, mas também com os valores oferecidos, o homem recorre à ajuda de seu amigo Dmitri (Vladimir Vdovitchenkov), um advogado de Moscou que parece ter reunido uma série de "podres" contra Vadim. Acreditando que esta carta na manga seria suficiente para reverter a situação, os dois resolvem contra-atacar, iniciando uma reação em cadeia que irá colocar em prova a fibra moral da família de Kolia.
Exaltando o abuso de poder, a corrupção e a passividade popular dentro do território russo, o roteiro é competente ao destacar a burocracia em torno da defesa desta família. Dando ênfase aos mandos e desmandos do governo durante o envolvente primeiro ato, Zviaguintsev evidencia o "modus operandi" estatal, ressaltando a falta de voz de um cidadão indignado perante o frio e prolixo discurso do poder. Utilizando a casa como um sinônimo de segurança, à medida que a situação de Kolia vai se complicando o drama familiar passa a vigorar dentro da trama, deixando a interessante crítica politica em segundo plano. Em meio aos litros de vodca ingeridos e a contemplação do belo litoral, potencializado pela fotografia de Mikhail Krichman, o argumento segue um caminho intimista ao mostrar o impacto deste despejo na vida pessoal de Kolia, se aprofundando nas consequências em torno da relação com a esposa, o filho e os amigos. Na verdade, ninguém parece escapar do crivo altamente crítico do realizador russo. Ao desenvolver o aspecto mais dramático, no entanto, a trama nitidamente passa a perder ritmo. Entre discussões acaloradas, soluções forçadas e poucos momentos mais inspirados, como na original e explosiva sequência da festa, o longa só não se torna enfadonho graças as competentes atuações do intenso Alexeï Serebriakov, brilhante como o abrupto Kolia, de Elena Lyadova, resignada como a complexa esposa Elena, e das bem aplicadas doses de humor negro. Com destaque para a cena em que um inocente menino se torna o improvável porta voz de um dos pontos chaves dentro da história.
Quando tudo parecia caminhar para um desfecho mais previsível, eis que nos deparamos com o surpreendente clímax, onde a ambição e o brilhantismo de Andrey Zviaguintsev eclodem em cena. Voltando ao tom contestador do primeiro ato, o roteiro é mais contundente ao colocar o dedo na ferida, questionando a idoneidade dos amigos de Kolia e - principalmente - a forma deturpada como a religião é utilizada no controle da massa russa. Evidenciando a força do clero junto ao estado, um arcebispo Cristão-Ortodoxo é a voz por trás do ótimo algoz vivido por Roman Madyanov, o realizador é brilhante ao utilizar as interpretações da Bíblia como um código de conduta para os envolvidos nesta trama. Fazendo dos livros de Jó uma espécie de inspiração, no Antigo Testamento foi ele quem suportou as desventuras de sua vida acreditando nos benefícios da palavra de Deus, Zviaguintsev opta por construir um clímax mais pretensioso, ora sugestivo, ora contundente. Uma crítica excessivamente poética, mas ainda assim incisiva, fazendo de Leviatã um relato pessimista sobre um homem que recusou o seu papel de Jó perante um Estado que se acha Deus.
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