Jim Jarmusch cria curiosa fábula vampiresca para questionar a nossa conduta dentro da sociedade
Em meio a banalização dos filmes envolvendo os personagens vampirescos, sobrou para o cultuado diretor Jim Jarmusch (Flores Partidas, Dead Man) a surpreendente missão de tentar novamente dar "sangue novo" às obras do gênero. Fugindo completamente de uma estética comercial, Amantes Eternos aposta num tom sombrio e no interessante clima nostálgico para tecer uma ácida crítica ao comportamento humano, principalmente com relação ao empobrecimento cultural dentro da nossa sociedade. Ainda que apresentem um visual moderno, aqui - felizmente - os vampiros voltam a se comportar como as tais "criaturas da noite", não tendo qualquer ligação com a triste nova "roupagem" que os personagens ganharam nos últimos anos.
E antes de escrever sobre a trama propriamente dita, vale destacar a construção dos dois personagens principais do longa, os vampiros apaixonados Adam (Tom Hiddleston) e Eve (Tilda Swinton). Mesmo sem apostar propriamente no terror, os protagonistas criados por Jarmusch são extremamente dignos de toda a mitologia envolvendo os vampiros no cinema. Em hipótese alguma andam no escuro, se alimentam - quando possível - do mais puro sangue e evitam entrar em casas sem convites. Os dois, inclusive, lamentam o fato de não viverem mais no século XV, onde facilmente poderiam atacar suas vítimas sem deixar vestígios. Apesar disso, os dois são gentis e cultos, buscando sempre uma mínima interação com os humanos. Com as brilhantes atuações de Hiddleston e Swinton, os personagens carregam a nostalgia e o ar "blasé" que só duas criaturas imortais poderiam ter. Afinal, após séculos de existência e de convivência com grandes realizadores, nada parece tão surpreendente para os dois. Fato que, aliás, é acertadamente destacado por Jarmusch, que demonstra inspiração ao questionar o comportamento humano e a alienação cultural.
Apesar deste interessante questionamento a cerca do nosso modo de vida, cheio de referências à cultura pop, o grande problema de Amantes Eternos é a abordagem "naturalista" envolvendo a rotina do casal. Na verdade, Adam tem todo o perfil dos mais excêntricos astros do rock. Vive recluso compondo suas músicas instrumentais, colecionando instrumentos históricos e escutando melancolicamente seus clássicos em vinil. Alimentando a paixão pela música, Adam é um ranzinza quando o assunto é a fama, impedindo que suas composições cheguem ao mainstream. Na visão de Adam, os seres-humanos não estariam à altura de seu trabalho. Um personagem questionador, que classifica os humanos com "zumbis" - numa nítida metáfora à autodestruição - e demonstra certa tendência suicida. Já Eve encara com mais ânimo a sua existência, e ao longo dos séculos dedicou a sua paixão à literatura. Ao lado de seu mentor Marlowe (John Hurt), ela acompanhou a vida de grandes escritores, utilizando a sua imortalidade para ganhar conhecimento. Apesar de algumas diferenças básicas, o casal demonstra um grande pessimismo em relação aos humanos e ao mundo que esta nova geração construiu. Conduzindo com destreza essa contextualizada fábula vampiresca, Jarmusch nos apresenta uma interessante crítica social, que além de destacar as questões culturais, ressalta - com interessante bom humor - a escassez nos recursos naturais, uma fraca evolução tecnológica e a péssima qualidade de vida atual.
Narrada de forma realmente lenta por Jarmusch, que também assina o roteiro, a trama opta por enfatizar o estilo de vida do casal de vampiros. Enquanto Adam leva uma vida reclusa em Detroit, Eve passa o seu tempo em Tânger, no Marrocos, ao lado de seu mentor Marlowe. O estilo de vida pessimista de Adam, porém, acaba preocupando Eve, que volta aos EUA para confortar o seu grande amor. Finalmente juntos, a dupla tem a sua rotina alterada com a chegada de Ava (Mia Wasikowska), a mimada e fútil irmã de Eve. Em cima desse argumento aparentemente básico, o longa acaba optando por se apoiar muito mais nessas discussões filosóficas, do que no desenvolvimento da trama. Ainda que as certeiras referências chamem a atenção, e que a entrada da personagem Ava contribua para a melhora do ritmo, o roteiro é vagarosamente desenvolvido. Ou seja, quem está esperando uma narrativa óbvia, um filme pipoca, pode se decepcionar. Por outro lado, a fotografia sombria, os cenários detalhadamente bem construídos e o ótimo trabalho de Jarmusch na condução do elenco conseguem amenizar essa possível veia "anticomercial" do longa.
Por falar na direção, vale destacar o grande trabalho da dupla Tilda Swinton e Tom Hiddleston. Conseguindo reproduzir o latente clima de sedução destes mitológicos personagens, as duas interpretações só aumentam a percepção de nobreza que sempre envolveu o universo vampiresco. Enquanto Swinton parece uma personagem mais viva, mais vibrante, Hiddleston está brilhantemente melancólico. A química entre os dois é ótima, e eles parecem se completar em cena. Além da dupla, o outro grande destaque do longa fica pela jovem Mia Wasikowska. Apesar do pouco tempo em cena, Mia dá uma roupagem mais atual para os vampiros, injetando mais energia e ritmo ao longa. Explorando muito bem os reflexivos diálogos, os três nos brindam com interpretações dignas das grandes obras do gênero. Além deles, o longa conta ainda com boas atuações de John Hurt, Anton Yelchin e Jeffrey Wrigth.
Apesar da ácida crítica e da interessante abordagem vampiresca, Amantes Eternos é acima de tudo uma obra romântica, o que fica muito bem caracterizado durante a autoexplicativa cena final. Aqui, porém, essa concepção de romance é muito mais vinculada a abordagem literária, do que à linguagem cinematográfica. Ao optar por se preocupar com o cotidiano do casal e valorizar as suas experiências, Jim Jarmusch escolhe um ousado caminho para questionar a nossa realidade. Uma opção que o grande público pode não aceitar muito bem, principalmente, por não dialogar tanto com o considerado cinema pipoca.
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