segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Cinemaniac Indica (O Amante da Rainha)

Inspirado nos trágicos relatos da monarca dinamarquesa Caroline Mathilde, O Amante da Rainha instiga ao acompanhar os bastidores do agitado reinado do instável Cristiano VII. Conduzido com elegância pelo diretor Nikolaj Arcel, do aguardado A Torre Negra (2017), o longa não se contenta em desvendar os detalhes mais íntimos por trás de um perigoso triângulo amoroso, indo além das expectativas ao nos oferecer um precioso relato histórico envolvendo a ascensão do Iluminismo e o conturbado momento político da Dinamarca durante a segunda metade do século XVI. Na verdade, ao absorver tantos temas de maneira tão precisa, Arcel adiciona substância a este poderoso drama, dando ao talentoso elenco a possibilidade brilhar numa película marcada pela rigidez narrativa e pelo comedimento emocional.


Mesmo montado na tradicional estrutura linear, o argumento assinado por Rasmus Heisterberg e Nikolaj Arcel é habilidoso ao costurar história e romance através de contextualizados diálogos, inspiradas referências literárias (Shakespeare, Rousseau, Voltaire) e sensíveis metáforas visuais. Fazendo um inteligente uso dos dualismos em torno do ideal iluminista (luz x escuridão, religião x razão, liberdade x opressão), O Amante da Rainha acompanha a jornada da jovem Carolina (Alicia Vikander), uma nobre inglesa prometida em casamento ao rei da Dinamarca Cristiano VII (Mikkel Boe Følsgaard). Após anos de expectativa, a bela mulher vê o seu sonho virar um pesadelo ao conhecer o desequilibrado marido, um regente mimado e mentalmente instável que vivia sob as rédeas da sua superprotetora. Amargurada e solitária, Carolina vê a sua rotina mudar com a chegada do médico Johan Sturensee (Mads Milkensen), um homem com idéias liberais que parecer ser o único a domar o temperamento do monarca. Inicialmente preocupada com a  sua influência sobre o marido, ela logo percebe as boas intenções dele e resolve se unir aos dois na tentativa de livrar a Dinamarca da pobreza e do conservadorismo. Não demora muito, porém, para Carolina e Johan iniciarem um perigoso romance, uma relação proibida que poderia colocar em risco a transformação social idealizada pelo trio. 


Com uma complexa história real em mãos, Nikolaj Arcel é cuidadoso ao desvendar os segredos em torno deste arriscado triângulo amoroso. Sem nunca perder o ritmo, o dinamarquês investe um considerável tempo no desenvolvimento do trio de protagonistas, se aprofundando nas nuances emocionais, nos ideais e nos seus dilemas mais íntimos. Guiado pelo envolvente roteiro, Arcel constrói três personagens sólidos e multidimensionais, encontrando neles os ingredientes necessários para a realização de um drama denso e absolutamente humano. Inicialmente, é inegável que o marcante rei Cristiano VII rouba a cena. Num misto de infantilidade e instabilidade, o magnético Mikkel Boe Følsgaard nos apresenta a um regente afetado e esquizofrênico, um tipo capaz de cativar e indignar com extrema naturalidade. Na verdade, por trás da inconsequência e da imponente presença do monarca, existe um homem frágil e manipulável, um personagem rico capaz de tomar atitudes ora libertinas, ora insanas, ora altruístas. 


Melhor ainda, no entanto, é a introdução do romance entre Carolina e Sturensee. Sutil e comedida, a relação entre os dois não só "apimenta" a trama ao longo do segundo ato, como também abre espaço para as discussões ideológicas, permitindo que o público acompanhe a ascensão do iluminismo, as mudanças sociais e a reação dos conservadores diante da iminente transformação da Dinamarca. Sem apelar para o didatismo, Nikolaj Arcel consegue reproduzir com propriedade o contexto histórico da época, ampliando a atmosfera de tensão ao realçar o crescente clima de conspiração em torno do combalido reinado. O resultado é um último ato revoltante e poderoso, um desfecho condizente com a proposta idealista defendida pelos personagens. 


Por falar neles, no mesmo nível de Mikkel Boe Følsgaard, o vigoroso Mads Mikelsen enche a tela de carisma com o indomável Johan. Com uma forte presença cênica, o ator cria um protagonista firme e inabalável, um homem capaz de conquistar o amor da rainha e a confiança do rei. A relação real entre os dois, aliás, é um dos pontos altos da trama, principalmente quando o médico se vê seduzido pelo poder. Já Alicia Vikander mostra a sua reconhecida intensidade ao interpretar a austera Carolina. Indo da esperançosa a desiludida com expressividade, a atriz sueca cria uma figura prática e decidida, uma mulher solitária que decidiu se impor diante da solidão e da sua triste condição matrimonial. Num cenário onde as paredes parecem ter olhos e ouvidos, Vikander e Milkensen vivem um romance discreto e reprimido, uma história de amor madura que se distancia por completo das fórmulas mais adocicadas. 


Por fim, fazendo um excelente uso da intimista fotografia de Rasmus Videbæk (Desajustados) e da luxuosa direção de arte, Nikolaj Arcel explora com rara elegância os requintados cenários, criando um aura imersiva que só potencializa os conflitos do trio de protagonistas. Por diversas vezes, inclusive, a luz (ou a ausência dela) é utilizada como instrumento para algumas contrastantes e inspiradas metáforas visuais. Sem querer revelar muito, a revigorante cena final é de uma sensibilidade ímpar, um sopro de esperança totalmente coerente com a mensagem final defendida pelo longa. Desta forma, ainda que subaproveite alguns promissores personagens, incluindo a errática matriarca real interpretada por Trine Dyrholm e o leal iluminista vivido por Cyron Melville, O Amante da Rainha impressiona tanto como um precioso relato histórico, quanto como um doloroso romance dramático. Uma película completa e atual que, mesmo em escala reduzida, fala sobre grandes temas, entre eles o inabalável poder de uma ideia. 

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