domingo, 12 de outubro de 2014

Garota Exemplar

Um suspense exemplar

É, ele conseguiu novamente. Responsável pelos cultuados Seven: Os Sete Crimes Capitais (1995), O Clube da Luta (1999) e Zodíaco (2007), David Fincher mostra mais uma vez toda a sua perícia dentro do suspense em Garota Exemplar, uma debochada crítica ao jogo de aparências da sociedade norte-americana. Adaptação do sucesso literário escrito por Gillian Flynn, aqui também responsável pelo roteiro, o longa aposta num tom extremamente cínico ao dissecar as frustrações matrimoniais de um casal supostamente perfeito. Empurrado pela atuação avassaladora da "garota espetacular" vivida por Rosamund Pike, Fincher usa da tensão e, pasmem vocês, do humor, para ressaltar o lado mais falso e obscuro por trás de um casamento desgastado.

Confesso, aliás, que não é nada fácil escrever sobre Garota Exemplar. Afinal de contas, esse é um daqueles trabalhos que pode ser fatalmente arruinado por qualquer 'spoiler' envolvendo a história. Dito isso, não vá ao cinema esperando soluções mirabolantes ou surpresas improváveis. Na verdade, os fatos estão ali, sendo apresentados até com certa franqueza, conduzindo o espectador por uma envolvente caça ao tesouro na busca pelo paradeiro de Amy (Rosamund Pike). Uma mulher de histórico perfeito, esposa zelosa, profissional respeitada, que durante parte de sua vida serviu de inspiração para uma série de livros infantis escritos pelos pais. No dia do quinto aniversário de casamento, no entanto, ela simplesmente desaparece, sem deixar vestígios. Abalado pela situação, o marido Nick Dunne (Ben Affleck) logo levanta a possibilidade de sequestro, principalmente por ela ser considerada uma subcelebridade em função da série de livros "Amy Espetacular". Contando com o apoio da irmã gêmea Margo (Carrie Coon) e dos pais da esposa, Nick se torna o pivô de um caso que ganha comoção nacional, atraindo imprensa, curiosos e o apoio da população local. Este suporte irrestrito, porém, perde força quando as investigações da detetive Rhonda (Kim Dickens) levam a um caminho contrário, levantando uma série de suspeitas não só sobre o ausente marido, como também sobre o verdadeiro destino de Amy.


Narrado praticamente em duas linhas temporais, o passado e o presente desse perfeito casal é revelado gradativamente, através de uma trama realmente impecável e pouco usual. Sem prolongar o mistérios envolvendo algumas das principais surpresas, Fincher verdadeiramente impressiona pela forma como constrói o rumo dos dois, viajando pela vida de Nick e Amy através do diário da desaparecida (passado) e da investigação policial (presente). Méritos para a atraente montagem, que não deixa o ritmo da história cair em nenhum momento. Apostando em interessantes personagens secundários, como a fiel Margo, num vibrante desempenho de Carrie Coon, o divertido advogado Tanner Bolt, surpreendentemente bem interpretado por Tyler Perry, ou a obstinada detetive Rhonda, numa interpretação segura de Kim Dickens, o argumento explora com solidez as consequências desse sumiço, permitindo que a tensão, nada gratuita, cresça cena após cena rumo a um desfecho hipnotizante.


Como não posso escrever muito mais sobre a trama, tenho que aqui elogiar novamente o cinismo de David Fincher ao questionar o modo de vida teatral dos envolvidos, quase sempre com bem pontuados alívios cômicos. Entre personagens estranhamente comuns, o que só aumenta o tom sarcástico em torno da história de Amy e Nick, o realizador escolhe um caminho pouco convencional ao questionar essa necessidade dos casais em se preocupar muito mais com as aparências, do que propriamente com os sentimentos dentro do casamento. Como se não bastasse essa inusitada crítica, que se torna a cereja do bolo no sufocante clímax, o realizador reproduz com inspiração o circo criado pela mídia em torno deste desaparecimento, ressaltando com precisão o lado mais falso da sociedade norte-americana. Em meio aos precoces julgamentos de uma apresentadora sensacionalista, vivida com intensidade por Missi Pyle, e ao nítido distanciamento emocional de Nick diante das câmeras, Fincher mostra nas entrelinhas - sob o ponto de vista midiático - como o ser humano pode ser ao mesmo tempo oportunista e manipulável.


Toda essa falsidade, aliás, ganha grande destaque graças à estupenda atuação de Ben Affleck. Escolhido justamente por ser capaz de convencer através de um típico sorriso falso, o ator evolui de forma ímpar em cena, escondendo cm certa frieza os principais segredos de seu personagem. No olho deste tornado de emoções, no entanto, à medida que as nuances do carismático Nick são potencializadas pelo roteiro, Affleck não decepciona, indo do inocente ao desesperado com grande habilidade. Por mais que o desempenho dele chame a atenção, a alma deste longa chama-se Rosamund Pike. Na personagem mais complexa de sua carreira, a atriz inglesa baila com vigor por uma série de sentimentos, provocando sensações opostas ao conceber essa mulher de personalidade única. Com destaque para a sua brilhante e inexpressiva desconstrução emocional, que ressalta com um exagero proposital as consequências de um casamento "infeliz".  Sem querer revelar mais nada sobre os dois, o fato é que Affleck e Pike conduzem com perícia o rumo de seus multidimensionais personagens, traduzindo através deles todas as verdades escondidas num casamento aparentemente feliz.


Ainda que o argumento dê uma nítida acelerada no último ato, David Fincher faz de Garota Exemplar um trabalho capaz de proporcionar as mais diversas emoções no espectador. Completamente envolvente ao longo das suas 2 h e 25 min, que passam num piscar de olhos, o realizador deixa de lado as fórmulas mais tradicionais ao nos conduzir por uma multifacetada história de amor. Contando com o apoio luxuoso da escritora Gillian Flynn, impecável na transição de seu livro para as telonas, e com a reconhecida capacidade de Fincher em criar a atmosfera perfeita, alimentando uma sensação angustiante através da crescente trilha-sonora e da sombria fotografia, este suspense impressiona por não amenizar o aspecto mais surtado da obra original. Sem a pretensão de criar falsas pistas ou confundir o espectador, o diretor usa e abusa da ironia nesta ácida crítica sobre os perigos envolvendo a expectativa de se viver o tradicional "felizes para sempre".


Um comentário:

thicarvalho disse...

Sem dúvidas Kahlil, grande abs.