sexta-feira, 4 de abril de 2014

Noé

E o Antigo Testamento se encontra com Hollywood.


Darren Aronofsky é um grande fã da passagem bíblica envolvendo Noé. Nas entrevistas de divulgação deste mais novo épico, o diretor admitiu que desde de jovem sempre cultivou uma certa admiração pelo, nas suas próprias palavras, "personagem sombrio e complicado que experimenta a verdadeira culpa do sobrevivente". Tanto interesse o levou a liderar as filmagens desta passagem do Velho Testamento, transformando três páginas da bíblia em um roteiro de duas horas e vinte de duração. Usando e abusando da licença poética, Aronofsky explora o que Hollywood tem de melhor para conceber uma visão particular, grandiosa e extremamente humana deste clássico personagem bíblico. Apostando no peso da linguagem do Antigo Testamento e na inspirada atuação de Russell Crowe, o diretor de Pi e Cisne Negro demonstra toda a sua criatividade nesta arriscada e reflexiva versão cinematográfica. 

E o risco não se deve somente ao fato de Aronofsky levar um longa inspirado em uma passagem bíblica para as telas, mas principalmente pelo fato dele apresentar a sua visão da história de Noé. Com roteiro assinado pelo próprio diretor, ao lado de Ari Handel (do subestimado Fonte da Vida), o longa amplia a passagem envolvendo o criador da arca, mostrando cuidado ao conduzir pequenos detalhes presentes no Antigo Testamento. Tentando não ser repetitivo, Aronofski opta por apresentar de forma didática a criação do mundo e a origem de Noé. Começamos então com Adão e Eva, criados a imagem e semelhança de Deus para reproduzirem a vida na Terra. Ao consumirem o fruto proibido, no entanto, eles são expulsos do Jardim do Éden, dando origem aos filhos Caim, Abel e Sete. Enquanto Caim, amaldiçoado por Deus ao matar seu irmão Abel, espalhava a ganância e a violência pelo nosso planeta, Sete e seus herdeiros optaram por uma vida longe daquela sociedade destrutiva. Os séculos se passam e somos então apresentados a Noé, neto de Matusalém (Anthony Hokpins), que assim como seus antepassados segue uma vida justa e dedicada ao Criador. Ao lado de sua esposa Naameh (Jennifer Connelly) e dos filhos Sem (Douglas Booth), Cam (Logan Lerman) e Jafé (Leo McHugh Carroll), Noé tenta viver de forma pacífica em meio a uma terra devastada pela ausência de recursos naturais. Desolado com o rumo da civilização, Deus resolver dar um ponto final para a vida na Terra. Entretanto, Ele acaba dando uma última chance para o herdeiro de Sete. Anuncia o grande diluvio e a derradeira missão de Noé: construir uma gigantesca arca para salvar os animais e a sua família. A grande arca, porém, acaba chamando a atenção do violento tirano Tubal-Caïn (Ray Winstone), um homem cruel disposto a se apossar da embarcação para fugir da devastação.


Em cima desta importante passagem bíblica, Aronofsky mostra a sua reconhecida perspicácia na construção dessa versão cinematográfica. Com gigantesca licença poética, o também roteirista opta por adicionar situações fantasiosas à trama. Ainda que algumas soluções sejam forçadas, como os gigantescos anjos de pedra presos na Terra por ajudarem Adão e Eva, o roteiro ganha uma densidade maior com a adição de alguns elementos. Com destaque para a personagem Ila (Emma Watson), uma criança órfã que é encontrada entre a vida e a morte após ter sua vila saqueada. Criada como uma filha por Noé, Ila acaba se apaixonando por Sem, mas evita alimentar esse amor pelo fato de ser estéril. Uma personagem fundamental para alguns dos principais dilemas do filme, incluindo ai a lógica expectativa de repovoamento da Terra no pós-dilúvio. Somado a isso, a trama é inteligente ao explorar uma série de elementos que não ficam tão esclarecidos dentro da Bíblia. Seguindo esta abordagem particular, Aronofski associa o Criacionismo à Teoria da Evolução, acredita que Noé teve a ajuda dos tais Anjos de pedra para construir a arca, que ele se comunicava com Deus através dos sonhos e que a pureza de sua família era conseguida através do respeito ao Criador e de uma vida auto-sustentável.


Mantendo todo aquele clima mais pesado do Antigo Testamento, marcado por mortes, sacrifícios e por um mundo bem mais cruel, a trama aposta no lado humano dos fortes personagens. Somos então apresentados a uma versão mais intimista desta passagem, que se aprofunda nos anseios e dúvidas de Noé e sua família. Na verdade, o personagem título é apresentado como um homem devoto ao Criador, de fé sólida, que não questionaria um pedido dos Céus. No entanto, as decisões do personagem passam a confundi-lo, a sua fé ganha ares de obsessão e os questionamentos só aumentam. Um crescente desempenho de Russell Crowe, que carrega todo o peso das duras decisões de Noé em sua expressão. Através desses dilemas o longa se torna ainda mais interessante, principalmente por seguir acompanhando as consequências destas atitudes já dentro da arca. Opção que acaba culminando em um clímax repleto de questões morais e reflexões sobre o mistério da fé. Tudo isso embalado por uma linguagem extremamente direta, que consegue ser reflexiva sem ser excessivamente vaga ou alegórica.


Por falar no tom alegórico, Aronofski trabalha com primor todo o aspecto técnico do longa. Embasado pela expressiva fotografia de Matthew Libatique (Ruby Sparks: A Namorada Perfeita), o diretor consegue criar cenas dignas dos grandes épicos. Todo o grande diluvio é empolgante e assustador, assim como boa parte da estética dos sonhos. Como não podia deixar de ser, aliás, a criação do grande Jardim do Éden e a presença dos animais - completamente digitais - é fascinante. No entanto, o grande momento visual do longa fica pela cena em que Noé se depara com a devastadora "sociedade" que ele tanto lutou para escapar. Uma cena visceral, repleta de gritos e violência, que causa um grande frio na espinha do espectador. Pra ser bem sincero, visualmente, até os Anjos de pedra funcionam a contento. Na verdade, eles são o grande dedo hollywoodiano no "Gênesis" bíblico, criados para dar um tom mais aventureiro a trama. O 3-D convertido, porém, diminui bastante o impacto conseguido pelo cenário criado por Aronofsky.


Como se não bastasse todo o aspecto visual, Darren Aronofsky mostra também grande cuidado na condução do seu competente elenco. Se Russell Crowe demonstra em cena a grandiosidade de seu personagem, Ray Winstone é o antagonista à altura do épico. Também adicionado pelo diretor, o seu Tubal-Caïn é um homem vil, cruel, que não admite o fato de sucumbir à Deus. Uma figura tentadora, persuasiva, que se aproveita da fragilidade para conseguir o que busca. E o seu principal alvo é o vulnerável Cam, surpreendentemente conduzido por Logan Lerman. Interpretando o filho do meio de Noé, Lerman constrói um Cam crível e passional, que não admite ir para arca sem o seu par. Lerman, aliás, é seguido de perto pelas ótimas Jennifer Connely e Emma Watson, e pelo experiente Anthony Hopkins. Enquanto Connely tem uma participação mais contida, como a devota esposa de Noé, Watson brilha mais na pele da jovem Ila. Uma personagem de aparência desnecessária, mas de impecável evolução em cena, participando diretamente do tenso clímax. Já o Matusalém vivido por Hopkins é um coadjuvante de luxo, daqueles que sempre rouba a cena quando está nela. O destaque negativo acaba ficando pelo pouco expressivo Douglas Booth, que destoa do restante do elenco.


Repleto de soluções arriscadas e criativas, Noé é um daqueles filmes que dividem público e crítica. Demonstrando grande reverência a grandiosidade deste homem, Darren Aronofski não se contenta ao levar para as telas uma versão datada desta passagem bíblica. Colocando o seu ponto de vista em cena, o diretor e roteirista concebe uma obra repleta de simbolismos e novas abordagens, conseguindo criar um épico Hollywoodiano que se distância do entretenimento convencional. Um trabalho forte, de difícil digestão, que se esforça para respeitar a questão religiosa por traz da emblemática figura de Noé.

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