Em tempos de tamanha polarização,
Dois Papas promove algo por si só revigorante: coloca dois homens totalmente distintos
frente a frente e os ouve. Sem julgamentos. Sem condescendência. Sem reduzir as
suas respectivas visões de mundo. Usando a realidade como um inteligente instrumento
de ficção, o longa dirigido por Fernando Meirelles causa um fascínio natural ao
tratar o diálogo como uma ponte reveladora entre duas almas separadas por um
poderoso título. Por mais que a produção original Netflix não se furte em
mergulhar nos bastidores da turbulenta transição entre os papas Bento XVI e Francisco, o
realizador brasileiro é astuto ao deixar o mais alto cargo dentro da Igreja
Católica em segundo plano. Com um olhar humano sobre os fatos e os seus
personagens, Meirelles invade a intimidade destes dois clérigos a fim de os
desvendar perante o público, de entender os seus medos, frustrações, culpas e a
realidade que os cercava. O resultado é um drama “semibiográfico” honesto e
crítico que foge do lugar comum religioso ao se encantar muito mais pela face
mundana dos bispos do que propriamente pela santidade do que eles representam.
A rigor, Dois Papas parte de uma
premissa ficcional. O íntimo encontro que guia boa parte da trama entre o então
Papa Joseph Ratzinger (Anthony Hopkins) e o arcebispo Jorge Bergoglio (Jonathan
Pryce) nunca aconteceu. Quer dizer, pelo menos da forma com que o afiado
argumento de Anthony McCarten projeta. Em 2013, na verdade, os dois realmente
se encontraram, mas, àquela altura, já com Francisco na posição de Papa. Acho improvável, aliás, que essa troca de experiências tenha tomado um rumo tão pessoal e reflexivo quanto o proposto pelo delicioso texto. Isso,
porém, em nada reduz o caráter biográfico da obra. Até porque, enquanto estudo
de personagem individual, o longa é absolutamente fidedigno. Não só isso. Ao
longo do imersivo primeiro ato, Fernando Meirelles capricha ao analisar a
Igreja Católica em sua face mais política. Com pulso narrativo, uma irônica trilha sonora e um imponente
ar pomposo, o cineasta coloca o espectador praticamente dentro do conclave que consagrou Joseph Ratzinger, revelando o atual momento da instituição religiosa num
recorte intimista, dinâmico e muito preciso. Meirelles é particularmente coeso ao situar o
público quanto ao dicotômico debate sobre o futuro da Igreja Católica. O choque
entre o conservadorismo e reformismo. O impacto dos escândalos na imagem da
congregação. A perda de fieis diante de dogmas ultrapassados. Numa solução esperta,
o realizador deixa as notícias da época falarem por si só. Com a morte de João
Paulo II, o clima de ebulição se tornou evidente. E é ele que dita o rumo de Dois
Papas.
É interessante frisar,
entretanto, que o longa em momento algum reduz os dois protagonistas a imagem
daquilo que eles representam. Ainda que, inicialmente, talvez replicando um
senso comum, Dois Papas trate Ratzinger como um símbolo ultrapassado e Bergoglio
como uma voz de esperança na transformação, Fernando Meirelles é cuidadoso ao enxergar
além da superfície. Por trás do título de santidade existe dois homens
complexos. Com falhas, virtudes, traumas, anseios e um claro respeito mútuo. Apesar do óbvio teor
especulativo proposto pelo argumento, o diretor é enfático ao ouvir os seus
personagens, ao buscar entender as suas versões, ao estreitar laços entre lados
opostos. Num profundo estudo de personagem, o longa invade a intimidade deles
com um forte teor confessional. Ali, no isolamento das residências oficiais do
Vaticano, o “passado” e o “futuro” da Igreja Católica finalmente recuperam a sua
voz. Ao contrário do título, Dois Papas não é uma obra sobre Bento XVI e
Francisco, mas sobre Joseph e Jorge. Na visão de Meirelles, escondido na
aparente resistência do arcebispo argentino vivia um homem
cansado, descrente no rumo da Igreja Católica, que ainda sentia na pele o
remorso pelos erros do seu passado. Já escondido na aparente sisudez do
arcebispo alemão existia um homem com prazeres simples, consciente dos seus
erros, envolvido em algo muito maior do que poderia administrar. Meirelles se
preocupa em realçar não só aquilo que os afastava, mas também as semelhanças
entre eles. Ambos precisavam lidar com feridas não cicatrizadas. Ambos
precisavam lidar com o tempo, com as mudanças que urgiam, com as suas
respectivas crises de fé. Ambos precisaram ceder e lidar com as consequências
disso.
Mais do que um drama compreensivo,
Dois Papas é uma obra sobre o perigoso preço a ser pago pelas concessões que
fazemos ao longo das nossas jornadas. No momento em que a veia crítica do longa
fala mais alto, Fernando Meirelles é contundente ao investigar o peso da culpa
na identidade dos seus protagonistas. Por mais que narrativamente o longa peque
pela falta de sutileza ao revisitar o passado, os demasiados flashbacks, em
especial, são costurados com mão pesada e didatismo ao arco central, o diretor
compensa ao escancarar as dolorosas consequências causadas pela inércia. Sem
nunca subestimar os motivos de Jorge e Joseph, Meirelles é assertivo ao
desconstruir os seus personagens. Ao defender a importância da mudança. Ao uni-los a partir das suas fragilidades. Ao questionar o pecado da corrupção. Neste
ponto, o realizador mostra perspicácia ao focar mais na figura do Papa
Francisco. O futuro da Igreja Católica. Sustentado pelos fatos, a película é
cuidadosa ao mergulhar de cabeça nos traumas do arcebispo argentino diante da ditadura argentina. O
contraditório, felizmente, também tem vez aqui. Meirelles usa o passado para
refletir o presente. Mais do que moldar o atual Papa, a falta de convicção de
outrora é tratada como o combustível que o move. Fazendo jus ao viés
humanista\igualitário defendido por Jorge Bergoglio, o diretor não titubeia em
sempre que possível trazer a política para o centro da trama. Longe da calmaria
do Vaticano existem problemas reais. Existe sofrimento. Existe dor. Uma chaga
longe de ser cicatrizada. Todos estão conscientes disso. A sequência em que
Meirelles, numa solução criativa, abafa o som enquanto Joseph começa a
confessar as suas falhas é sintomática. Não existe mais espaço para a omissão.
A realidade é evidente e precisa ser combatida.
Dois Papas é também uma obra
brilhantemente filmada. Impulsionado pelo primoroso trabalho da equipe de
direção de arte; a reconstrução de ambientes do Vaticano, por sinal, é de um
nível de detalhismo de cair o queixo; e pela vibrante fotografia, Fernando Meirelles transita entre o macro
e o micro com desenvoltura. Nas passagens em que decide mostrar a história
sendo escrita, o realizador investe em expressivos planos aberto\geral,
capturando a imponência daquele ambiente com enquadramentos requintados e
movimentos de câmera minuciosamente calculados. Já nos momentos intimistas, Meirelles torna tudo mais fluído ao apostar na leveza da câmera na mão e em enquadramentos mais fechados, nos tornando praticamente confidentes dos personagens. O diretor se esforça para
interferir o mínimo possível na ação dos seus comandados. O que,
obviamente, é valorizado pelos excelentes trabalhos de Jonathan Pryce e Anthony
Hopkins. Vou ser bem sincero. Pryce entrega um tipo de atuação rara. Ele
simplesmente desaparece dentro do seu personagem. Por mais que a semelhança
física entre ele e o atual Papa fosse evidente, o versátil ator britânico
mergulha nas emoções\trejeitos de Jorge Bergoglio com uma naturalidade
impressionante. Uma das grandes performances masculinas do ano. Com um material
menos farto em mãos, Anthony Hopkins por sua vez adiciona mais uma grande
interpretação à sua filmografia ao valorizar a fragilidade de Joseph Ratzinger.
Num trabalho muito físico, o veterano de 81 anos ganha espaço para especular
sobre como seria o comportamento do Papa emérito Bento XVI na sua intimidade, esbanjando
expressividade ao, à sua peculiar maneira, trazer certo carisma ao seu sisudo
personagem.
O tipo de liberdade criativa que
faz de Dois Papas uma experiência fascinante para religiosos ou não. Com diálogos
profundos, um particular senso de ironia e um debate ideológico muito atual, Fernando Meirelles ultrapassa os muros do Vaticano ao encontrar no choque de ideias entre o
“passado” e o “presente” da Igreja Católica a oportunidade perfeita para
refletir sobre culpa, repressão e o poder transformador do diálogo. Um filme tudo menos conservador.
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