quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Crítica | Obsessão (Greta)

Não fale com estranhos...

Quem disse que uma mesma história não pode ser contada várias vezes? No papel, Obsessão pode até se revelar o tipo de produção que nasce uma sensação de já vi isso antes. Bastam alguns poucos minutos de projeção, entretanto, para percebermos que estamos diante de uma obra com algo a acrescentar. Conduzido com elegância pelo talentoso diretor Neil Jordan (Entrevista com Vampiro), o longa se apropria de um ‘plot’ requentado com sofisticação, conseguindo angustiar sem sacrificar a beleza estética num thriller com uma forte veia clássica. Um jogo de gato e rato instigante que, graças a assinatura perspicaz do cineasta, combinada com as soberbas performances de Isabelle Huppert e Chloe Grace Moretz, compensa a previsibilidade narrativa com estilo, tensão e refinamento. 


Uma jovem (Moretz) acha uma bolsa no trem e resolve devolve-la a sua dona (Huppert). Deste gesto de bondade, porém, nasce uma relação sustentada por sentimentos distorcidos, que logo culmina numa espiral de medo, insanidade e violência. Quantas vezes nós já vimos esta premissa antes? Inúmeras! O que deveria ser o “calcanhar de Aquiles” de Greta (no original), no entanto, se torna uma das suas principais virtudes graças ao requinte impresso por Neil Jordan em tela. Você já pode ter visto este ‘plot’ em algum outro filme, mas não desta forma. Reconhecido pela sua assinatura refinada, o cineasta captura o senso de modernidade cosmopolita pensado pelo roteiro de Ray Wright ao tornar tudo o mais vistoso possível. As personagens são elegantes. Os figurinos são charmosos. Os cenários refletem o luxo particular de Manhattam. A texturizada fotografia em tons amadeirados de Seamus McGarvey só ajuda a tornar tudo o mais vistoso possível. Jordan se preocupa em construir um ambiente imersivo e em extrair dele o crescente clima de tensão. O vazio que cerca as protagonistas reflete também a vulnerabilidade delas. Ninguém parece preocupado demais com as investidas de uma aparentemente inofensiva senhora. Nova Iorque tem problemas maiores para lidar.


Um sentimento de desamparo que, graças ao senso de realidade de Neil Jordan, só potencializa o clima de angústia em torno da condição da protagonista. Embora vez ou outra o argumento se sustente em conveniências narrativas, a polícia de Nova Iorque é bem mais relapsa do que costuma ser aqui, o realizador é cuidadoso ao explorar com propriedade a figura do ‘stalker’. Uma ameaça bem mais comum e perigosa, como fica claro no longa, do que costuma parecer. A aparente previsibilidade assumida pelo roteiro dialoga com a rotina de qualquer indivíduo. Frances, a jovem perseguida, se torna presa fácil aos olhos de uma mulher com interesses um tanto quanto sinistros. Com sutileza e dinamismo, Jordan é habilidoso invadir a psique da antagonista. Existe algo escondido no comportamento dela. E o argumento é habilidoso ao se aprofundar nisso. Algo que, diga-se de passagem, só ajuda a enervar o público. Com pleno domínio sobre a narrativa, o realizador aperta os botões certos na hora certa. Quando o filme começava a soar dramático demais o suspense “grita” de maneira repentina. Quando a ameaça começava a dar sinais de inofensividade o longa não se furta em expor a sua face mais sinistra. Quando as respostas pareciam já mais claras Jordan não titubeia em redimensionar toda a trama. O diretor, em especial, é particularmente criativo ao resgatar elementos do suspense clássico. A trilha sonora que “fala alto” num momento de tensão. A câmera que praticamente enclausura o rosto das suas atrizes numa situação de revelação. A atmosfera sombria que repentinamente toma conta dos cenários. Tudo conspira a favor da história, da construção do clima, da escalada do suspense.


Nenhum dos predicados citados acima, porém, são maiores do que as impactantes presenças de Isabelle Huppert e Chloe Moretz. Reconhecida por dar vida a mulheres fortes e ferinas, a experiente atriz francesa dá um verdadeiro show na pele de Greta. A sua antagonista é persuasiva, cativante e ao mesmo tempo sinistra e ameaçadora. Por mais que os méritos de Neil Jordan na construção da ação sejam nítidos, Huppert consegue criar uma figura com uma presença genuinamente assustadora. O que, de certa forma, contrasta com a inocência de Moretz. Magnética como de costume, a atriz desfila os seus caras e bocas na construção de uma jovem mulher tomada pela tristeza e posteriormente pelo medo. A sua Frances custa a farejar o perigo, mas quando o faz reage sempre da melhor forma possível. Um senso de consequência\realidade capturado com intensidade por Moretz. Algo, verdade seja dita, potencializado pelos estilosos enquadramentos fechados de Jordan e pela sensibilidade do diretor em extrair o máximo da iluminação das cenas. O mesmo, aliás, podemos dizer da igualmente talentosa Maika Monroe. Mais do que representar um contraponto a figura ingênua de Frances, a atriz traz um bem-vindo senso de urbanidade ao texto, se tornando a representante do espectador dentro da obra. Num todo, aliás, é legal ver a sagacidade de Jordan em trazer o público para o centro da história, em permitir que façamos parte dela, o que torna a experiência ainda mais tensa e divertida.


Bebendo da fonte do mestre Alfred Hitchcock, do ‘hagsploitation’ e (claro!) do magnífico Misery (1990), Obsessão é facilmente um dos filmes mais subestimados de 2019. Uma produção elegante, com requintes de crueldade, capaz de revigorar uma premissa saturada com autenticidade e um charme próprio. Não fale com estranhos...

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