Com o precioso Creed (2015), a
franquia Rocky Balboa ganhou uma inesperada reoxigenada num ‘spin-off’ com
muito a acrescentar a hexalogia original. Ficou claro que o universo criado por
Sylvester Stallone ao longo de quatro décadas ainda tinha lenha para queimar,
culminando num filme denso, empolgante e acima de tudo com inúmeras razões para
existir. Em especial pela maneira com que o derivado introduziu o complexo Adonis
Creed. Embora ainda (e naturalmente) dependente da inesgotável figura de Rocky,
o errático pugilista interpretado com intensidade por Michael B. Jordan nos
deixou com a certeza que esta popular marca estaria em ótimas mãos num futuro
bem próximo. A expectativa, portanto, era saber o quão grande seria esta
passagem de bastão na tão aguardada continuação. Se teríamos finalmente um
longa realmente protagonizado pelo filho do saudoso Apollo, ou se mais uma vez
a continuação seguiria atrelada ao universo Rocky Balboa. Neste sentido, Creed
II se revela uma sequência um tanto quando frustrante. Sob a competente batuta
de Steven Caple Jr, substituindo o virtuoso (e atarefado) Ryan Coogler, o longa
até tenta criar um arco dramático familiar à altura do padrão da saga, mas peca
(e muito) ao renegar alguns dos elementos tão bem estabelecidos no filme
anterior. O resultado é um desenvolvimento de personagem frouxo e redundante
que, verdade seja dita, só não enfraquece o impacto da película graças ao
‘background’ Rocky Balboa e ao efeito causado por algumas velhas rivalidades mal
resolvidas.
Sejamos bem sinceros, o coração
da franquia Rocky Balboa nunca esteve somente nas sequências de luta, nem tão
pouco na figura do protagonista ”vira-lata”. Tudo sempre girou em torno da
relação entre os humanos\complexos personagens e na força do elo que os unia.
Mesmo nos pontos mais baixos da saga, como no questionável Rocky V (1990), a
série nunca foi sobre vencer ou perder, sobre vitoriosos ou derrotados. Mas
sobre os resilientes, aqueles que persistem, que resistem, que sempre se
levantam diante das adversidades da vida. Tendo este modelo como base, Creed II
decepciona ao subaproveitar tudo o que de melhor o seu antecessor tinha a
oferecer. O que fica bem claro, por exemplo, quando analisamos a personagem de
Bianca (Tessa Thompson) e a sua inexplicável metamorfose comportamental. Em
Creed ela surgiu como a resposta perfeita para a submissa Adrian (Taila Shyre)
do clássico Rocky (1973). Enquanto a futura Srª Balboa era uma mulher sem voz,
introspectiva, vítima dos abusos do seu irmão beberrão (Burt Young) e das
imposições de uma sociedade machista, a jovem musicista era independente,
indomável, incapaz de se submeter a algo que não fizesse parte dos seus planos.
Uma atualização perfeita! Muito mais do que um mero interesse amoroso, Bianca,
fazendo jus ao legado da franquia, tinha os seus próprios conflitos, uma
urgência em conquistar algo antes que a sua audição desaparecesse de vez. Em
Creed II o que vemos, porém, é uma sombra desta personagem. Como se não
bastasse o brega clima de romance inicial, ela surge aqui como uma espécie de
cúmplice da inconsequência de Adonis. Por mais que o elo entre os dois seja
cristalino, a co-protagonista perde força diante da preguiça do roteiro e dos
inúmeros clichês maternos. A cantora antes disposta a correr atrás do que é seu
dá lugar a uma mulher apática, compreensiva ao extremo, capaz de engolir a sua frustração
para “deixar as feridas do seu parceiro cicatrizarem”. Bianca não reage mais,
Bianca aceita passivamente as decisões do seu futuro marido, Bianca
simplesmente não tem vez aqui.
Um processo de descaracterização
que, indiscutivelmente, prejudica o arco de Adonis. Embora Michael B. Jordan
esbanje mais uma vez intensidade ao capturar o misto de confiança, medo e
fragilidade do (ainda) impulsivo pugilista, as curvas dramáticas do seu
personagem praticamente não avançam nesta sequência. Ele continua errático
demais, imaturo demais, preso demais a imagem do seu pai. Um personagem que não
parece aprender nada com as experiências vividas. Para piorar, ao longo da
primeira metade do longa, Steven Caple Jr se prende excessivamente ao fatídico
e memorável Rocky IV (1985), reciclando fórmulas e soluções sem qualquer tipo
de pudor. A sensação de já vi isso antes (e melhor!) é inevitável. Ainda que o
filme seja sobre um lutador em busca de um legado próprio, Creed II não
consegue em momento algum caminhar com as suas próprias pernas no que diz
respeito a jornada de Adonis, se mantendo mais uma vez muito dependente do
passado da franquia e da inesgotável figura de Rocky Balboa. A diferença é que
aqui, ao contrário do longa anterior, o septuagenário pugilista tem bem menos
tempo de tela (e importância narrativa), o que ajuda a explicar as constantes
quedas de ritmo durante as inchadas duas horas e dez de projeção. Por mais que,
na transição para o terço final, Adonis passe a lidar com nuances mais particulares,
principalmente quando o assunto é o impacto da paternidade nas suas decisões, o
argumento não consegue explorar o tema com a devida profundidade, abreviando as
coisas ao logo se concentrar na esperada grande luta e no árduo processo de
treinamento até ela. Algo que, volto a
frisar, seria perfeitamente corrigível se a continuação tivesse apostado mais
uma vez na complexa dinâmica entre Adonis e Bianca.
Não se preocupe, porém, com o
resultado final do longa. Mesmo diante da sensação de potencial dramático
inexplorado, Creed II compensa no momento em que passado e presente começam a verdadeiramente
caminhar de mãos dadas. Como se não bastasse a cansada presença de Rocky
Balboa, mais solitário do que nunca, a continuação é habilidosa ao resgatar o
impiedoso Ivan Drago (Dolph Lundgreen) e ao dar a ele um arco bem mais
interessante do que as prévias pareciam sugerir. Indo além das feridas que o
embate entre Apollo e o gigante soviético causaram em Adonis, o argumento
acerta em humanizar o clássico antagonista, permitindo que o público compreenda
com clareza as suas motivações. Sempre que estão em cena, Ivan e o seu
reprimido filho Viktor (Florian Munteanu) revigoram a trama, comprovando a
capacidade da franquia em buscar lá atrás os ingredientes necessários para se
renovar. Sem a intenção de se explicar demais, Steven Caple Jr. faz um
brilhante uso dos símbolos da saga (o calção bandeira em tons de cinzas é
incrível) ao dialogar com o lado mais nostálgico do público, aquecendo as
engrenagens ao explorar o impacto desta repentina reaparição na rotina de Rocky
e Adonis. Sem querer revelar muito, a tensa sequência em que o Garanhão
Italiano e o Ivan Drago se encontram pela primeira vez é de uma eletricidade
inigualável, ponto para as intensas performances de Stallone e Lundgreen, o que
só comprova o quão melhor aproveitada esta relação poderia ter sido. Somado a
isso, Viktor está longe de ser o genérico antagonista rival da vez. Mesmo com
pouco tempo de tela, o silencioso desafiante imprime em seu olhar um comovente
senso de humanidade, como se estivesse comprando uma briga que nem de longe era
sua. Apesar da ferocidade física de Munteanu, num trabalho cativante, o filho
abnegado do clã Drago carrega nos seus ombros o peso do ostracismo, da
humilhação, um sentimento trabalhado com sutileza ao longo de toda a trama.
Viktor de longe é a melhor surpresa desta continuação, mesmo subaproveitado
pelo roteiro.
No fim, seguindo à risca um
formato que consagrou a franquia, Creed II empolga no momento em que decide
entregar aquilo que o espectador esperava ver. Basta soar o gongo para Steven
Caple Jr. desfilar o seu vasto repertório de enquadramentos e movimentos de
câmera para capturar o visceral “balé” entre os seus lutadores. Embora emule o
estilo Ryan Coogler em muitas sequências, o realizador mostra também assinatura
ao investir em takes mais longos e ainda mais elaborados, extraindo o máximo do
dedicado elenco em sequência de rara verossimilhança. Os planos subjetivos, em
especial, são impactantes e ajudam a nos colocar praticamente dentro do ringue.
Além disso, como de costume na franquia, as montagens de treinamento elevam o
nível de adrenalina ao traduzir em poucos minutos o árduo processo de
preparação dos pugilistas, ajudando a preparar o terreno para o catártico
embate final. Neste sentido, sem sombra de dúvida, a franquia Rocky Balboa
segue insuperável. Numa análise sobre o todo, entretanto, Creed II termina alguns
degraus abaixo dos longas anteriores justamente por se escorar demais nestas
soluções “fáceis”. Por trás das marcantes lições sobre a vida, dos icônicos
personagens e das reações miraculosas se esconde uma continuação um tanto
quanto previsível, recheada de soluções requentadas, com um arco dramático
subaproveitado e um descompasso rítmico inédito até então dentro da série. Nada
que, no final das contas, prejudique a nossa experiência, até porque, quando
decide subir no ringue e apelar para o fator nostálgico, a continuação entrega
um dos melhores e maiores embates da história da saga.
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