terça-feira, 16 de abril de 2019

Crítica | Maus Momentos no Hotel Royale

Um crime o que fizeram com este filme

Logo que saiu o magnífico primeiro trailer de Maus Momentos no Hotel Royale, a minha impressão foi instantânea: estava diante de um dos grandes ‘hits’ cinematográficos de 2018. Tudo nele parecia excelente. O imponente elenco. A instigante premissa. A singular aura setentista. Somado a isso, o longa trazia consigo a marca Drew Goddard, um realizador que, embora com poucos trabalhos, causou frisson junto ao público com títulos como Cloverfield: O Monstro, o cultuado O Segredo da Cabana e o memorável Perdido em Marte. Em outras palavras, um projeto que nasceu cercado de expectativas. Aconteceu com Maus Momentos no Hotel Royale, porém, algo capaz de causar arrepios na espinha de qualquer produtor. O filme não foi destruído pela crítica, nem tão pouco detonado pelo público. Pior! Ele simplesmente não foi assistido. Numa conjunção de fatores que geralmente acometem os ‘cult movies’, a película passou pelas salas de cinemas estadunidenses com uma velocidade incomum para o tamanho dos nomes envolvidos na obra. Eclipsado pelo lançamento de dois dos maiores sucessos de público do ano passado, o lucrativo Venom e o laureado Nasce Uma Estrela, o thriller rendeu parcos US$ 17 mi nos EUA, um desempenho que abreviou qualquer chance da fita prosperar ao redor do mundo. Pior para os fãs do gênero. Lançado diretamente via streaming no Brasil, Maus Momentos no Hotel Royale é uma daquelas produções criminosamente subestimadas. Mais uma vez brincando com as expectativas do público, Goddard provoca ao investir numa obra tensa, charmosa e indiscutivelmente intrigante. Um jogo de gato e rato insinuante que se revela também inesperadamente denso e contextualizado. O amadurecimento de um diretor que, no seu segundo grande projeto, decidiu não reduzir tudo ao fator surpresa. 



Como um grande filme de suspense que é, Maus Momentos no Hotel Royale merece ter todos os seus segredos protegidos. Por isso, aqui, falarei o mínimo possível sobre os rumos da trama. Transformando o cenário num verdadeiro personagem da sua nova história, Drew Goddard narra as desventuras de um grupo de seis estranhos presos em um hotel em meio a episódios no mínimo peculiares. O primeiro grande trunfo deste intrigante thriller, na verdade, reside justamente na capacidade do roteiro em conferir nuances próprias a cada um dos personagens. Eles não são meros peões dentro de um truncado tabuleiro. Com uma sagaz narrativa não linear dividida em atos e uma montagem praticamente primorosa, o realizador aposta num vai e vêm digno de elogios, se debruçando satisfatoriamente sobre as intenções dos protagonistas, o passado deles e os motivos que os levaram a tal lugar. E isso, felizmente, sem nunca sacrificar o ritmo da trama. A critério de comparação, Maus Momentos faz tudo o que Os Oito Odiados não conseguiu a contento. À medida que os hóspedes vão se cruzando, Goddard é astuto ao destrincha-los perante o espectador, ao unir os pontos, ao valorizar a tridimensionalidade do sexteto. Sob a perspectiva deles, o argumento oferece uma visão mais completa sobre o cenário, sobre a rotina daquele isolado estabelecimento. No que diz respeito aos personagens, aliás, Goddard esbanja também maturidade ao romper gradativamente com os arquétipos, ao reforçar o nosso elo com eles, ao permitir que enxerguemos além do que os títulos do gênero geralmente exigem. Tipos como o padre vivido por Jeff Bridges, por exemplo, exibem uma humanidade no olhar que se torna decisiva para o desenvolvimento dos momentos mais intensos. Um grau de conexão decisivo para a consolidação do enervante senso de perigo em torno da trama.


E aqui chegamos ao segundo grande trunfo de Maus Momentos no Hotel Royale. Extraindo o máximo da sua estrutura narrativa não linear, Drew Goddard monta a sua obra com a intenção de sempre deixar as expectativas em aberto sobre o perigo que estar por vir. Não existe confiança entre os personagens. As suas atitudes parecem sempre esconder segredos. O realizador oculta os seus golpes com maestria. Quando você acha que já identificou a verdadeira ameaça, o roteiro faz questão de testar as nossas impressões ao sugerir que existe um mal maior à espreita. O clima de insegurança cresce consistentemente enquanto buscamos entender a verdade por trás dos hóspedes. Com dinamismo, o realizador opta por não perder muito tempo entre o ato de alimentar as nossas dúvidas sobre as posições dos personagens dentro deste perigoso tabuleiro e a revelação dos mistérios em torno deles. Ele evita se sustentar em ‘plot twists’ ocos ao valorizar a construção da(s) ameaça(s) em detrimento do prolongamento de alguns segredos. Ao jogar limpo com o público, Goddard encontra as brechas necessárias para flertar até mesmo com elementos dramáticos, encontrando na sincera emoção de alguns dos personagens a chance para catalisar o real perigo que os cerca. Um predicado, verdade seja dita, potencializado pelo magnético elenco. Por mais que a bela Dakota Johnson não consiga extrair o máximo do duro arco da sua Emilly, Jeff Bridges, Chris Hemsworth, Jon Hamm, Lewis Pullman e especialmente Cynthia Erivo compensam ao realçar os conflitos\fragilidades dos seus personagens com peso, carisma e muita presença cênica. Sem querer revelar muito, Goddard é particularmente criativo ao encontrar nesta última os ingredientes necessários para reforçar o viés musical da obra, resgatando uma série de ‘hits’ da Motown em pelo menos três performances marcantes e brilhantemente situadas dentro da trama.


O terceiro grande trunfo de Maus Momentos No Hotel Royale, entretanto, é daqueles que se revela uma grata surpresa. Situado na efervescente década de 1970, impressa de forma expressiva nos coloridos, exóticos e imersivos cenários, Drew Goddard esbanja originalidade ao fazer um imprevisível uso do contexto histórico. Indo além do mero complemento narrativo, o realizador encontra no imaginário político\cultural\social americano da época alguns dos ingredientes para a composição tanto dos personagens, quanto dos mistérios em torno da película, agregando valor ao longa transitar por temas delicados como a guerra do Vietnã, a polêmica ação das agências do governo, o ‘boom’ das drogas pesadas e o surgimento de algumas violentas seitas. Uma combinação de assuntos e sugestões que casa perfeitamente com a aura setentista da produção e com o desenvolvimento de alguns dos personagens. Uma espécie de “bônus” que, de fato, ajuda a atenuar os pequenos deslizes da película, em especial as dispersões anticlimáticas do roteiro no último ato e a falta de uma edição mais enérgica nos segmentos mais inchados do longa. Nada que de maneira alguma reduza o impacto de Maus Momentos no Hotel Royale. Com um magnífico domínio sobre as noções de tempo\espaço dentro da história e um ‘mise en scene’ por vezes elaboradíssimo, vide os sorrateiros movimentos de câmera pelos corredores e quartos do Royale, Drew Goddard nos brinda com um suspense dinâmico, envolvente e acima de tudo inteligente. Uma produção estilosa que cumpre bem mais do que promete ao se permitir ir além das surpresas mirabolantes.

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