quarta-feira, 10 de abril de 2019

Crítica | Marjorie Prime

Falha no sistema

Longe de ser um filme fácil, Marjorie Prime é o tipo de obra que desconforta. E este, indiscutivelmente, é um dos grandes méritos da película. Num momento em que estamos tão intimamente abertos às novas tecnologias, um panorama brilhantemente explorado por títulos como Ela e Blade Runner 2049, o longa dirigido e roteirizado por Michael Almereyda incomoda ao, tal qual qualquer Sci-Fi que se preze, usar a tecnologia como o ponto de partida para um profundo estudo sobre o ser humano. Apesar dos evidentes problemas de ritmo e da linguagem estética demasiadamente teatral, o realizador norte-americano instiga ao discorrer sobre a nossa complexa relação com o passado, apontando a sua mira para as “falhas de programação” humanas enquanto reflete sobre o fardo do luto num futuro em que o advento da inteligência artificial surge como um alento. Por mais que o elemento tecnológico sobressaia aos olhos num primeiro momento, Almereyda é astuto ao se concentrar na dependência afetiva entre indivíduos e máquinas, jogando a responsabilidade para o nosso lado ao realçar os perigos em torno desta complexa relação. 



Imagine um futuro em que um ente querido recém-falecido poderia ser substituído por uma IA, um holograma com a aparência escolhida pelo contratante capaz de absorver informações e aos poucos ocupar o vazio que tomou conta da sua vida. Com base nesta promissora premissa, inspirada na peça de Jordan Harrison, Michael Almereyda introduz a história da senil Marjorie (Lois Smith), uma idosa com mal de alzheimer que, após anos encarando esta delicada doença, vê os seus lampejos de consciência se tornarem cada vez mais esporádicos. Preocupada com o destino da sua mãe, a introspectiva Tess (Geena Davis) decide, convencida pelo seu compreensivo marido (Tim Robbins), comprar um destes modelos de inteligência artificial para fazer companhia a ela e evitar o avanço da doença. Na pele de Walter (Jon Hamm), o marido de Marjorie e pai de Tess, a IA logo conquista a atenção da idosa, refrescando as suas lembranças quanto ao passado, os seus gostos pessoais e os seus momentos mais felizes. Na ânsia por mais informações, entretanto, ele aos poucos passa a tocar em temas mais espinhosos, expondo o desequilíbrio emocional dos seus contratantes ao constatar que Marjorie estava longe de ser a única com problemas a serem superados naquela família.


Numa mistura (menos inspirada, é verdade) de Philip K. Dick com Ingmar Bergman, Michael Almereyda é habilidoso ao concentrar os seus questionamentos basicamente nos personagens humanos. A inteligência artificial, aqui, surge como uma espécie de agente catalisador da trama, um “ser” opaco que só queria conseguir espelhar\compreender as complexas emoções dos seus avatares. Uma tentativa em vão que, obviamente, logo destaca o objeto de estudo do argumento: os motivos que levaram Tess e o seu marido Jon a recorrer a tal dispositivo. Ao longo do envolvente primeiro ato, Almereyda é inteligente ao conciliar o pano de fundo Sci-Fi com os dramas de uma família abatida por traumas passados. Enquanto se concentra na figura de Marjorie e na sua cativante relação com o robótico Walter, o roteiro permite que conhecemos a mulher por trás da doença, a chama que seguia movendo um corpo tão frágil. A partir desta curiosa perspectiva, o longa reflete sobre temas inerentes a ficção-científica, entre eles as experiências de vida, a morte e o peso do luto. Ao contrário da maioria dos títulos do gênero, no entanto, o foco não está no existencialismo, no recorrente penso logo existo. A IA surge fiel à sua programação, a uma visão de futuro mais plausível, a uma função a priori terapêutica. O grande trunfo de Almereyda, na verdade, está na forma com que a sua obra estuda as memórias e a nossa complicada relação com o passado. Numa sacada original, é interessante ver como o filme explora a doença de Marjorie, alimenta o suspense em torno das lembranças da protagonista, brinca com as possíveis versões dos fatos em si, tratando a sua condição como uma espécie de refúgio. Não só para ela, mas para todos que a cercavam. À medida que busca mais informações sobre o verdadeiro Walter, a inteligência artificial é incisiva ao tira-los da “zona de conforto”, ao tocar nas suas feridas mais íntimas, descortinando o repressivo impacto das feridas mal curadas na vida de tipos aparentemente maduros.


No momento em que decide fincar os seus pés no drama, porém, Marjorie Prime se torna um filme irregular. Do tipo em que as boas ideias parecem ser anuladas pelas soluções menos inspiradas. Inicialmente contado numa linha narrativa linear, na transição para a segunda metade da película Michael Almereyda opta por investir numa estrutura fragmentada, dando alguns saltos temporais enquanto investiga o impacto das revelações (e dos acontecimentos futuros) na rotina dos personagens. O que, num primeiro instante, se revela uma sacada inquietante. Além de escancarar o fardo do luto na psique dos personagens, o seu despreparo para lidar com o vazio que cerca a morte, o realizador consegue encontrar as brechas necessárias para propor uma série de questionamentos mais filosóficos, discorrendo sobre os perigos do apego às memórias físicas com peso e profundidade. Para ele, reprimir não é superar. Na transição para o último ato, no entanto, Almereyda peca pela repetição temática, patinando em torno de um texto errático, verborrágico e exageradamente expositivo. Embora encontre algumas eficazes soluções para traduzir visualmente a passagem de tempo, o realizador não consegue dar a mesma atenção para os crescentes conflitos pessoais de Tess e Jon, tornando as suas reações um tanto quanto drásticas e vazias. Um problema que, a meu ver, também reverbera nas atuações do experimentado elenco. Enquanto a veterana Lois Smith esbanja humanidade ao criar um tipo dócil e frágil, os talentosos Tim Robbins e Geena Davis não conseguem capturar a deterioração emocional de genro e filha com a mesma intensidade, entregando menos do que a película parecia exigir. O mesmo, aliás, podemos dizer do ótimo Jon Hamm, que, na tentativa de reforçar a falta de tato\humanidade do seu Walter, investe numa performance quase robótica. Uma abordagem que seria um diferencial e faria total sentido se fosse replicada ao demais avatares que surgem em cena.


Entre altos e baixos, Marjorie Prime se revela uma obra reflexiva, contemporânea, mas pouco recompensadora enquanto entretenimento. Preso a linguagem teatral do material original, o que talvez explique o limitado\burocrático ‘mise en scene’, Michael Almereyda mostra propriedade ao pintar uma visão de futuro próxima da realidade, mostrando uma generosa dose de pessimismo ao se opor não a tecnologia em si, mas contra a possível criação de um arriscado vínculo de dependência entre humanos e máquinas.

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