domingo, 24 de março de 2019

Crítica | O Segredo de Marrowbone

O fantasma da brutalidade

Desde que o impactante O Sexto Sentido (1999) “explodiu a cabeça” dos espectadores ao redor do mundo com a sua soberba reviravolta, o gênero do suspense paranormal se sentiu tentado a replicar uma fórmula buscando um resultado semelhante. E, verdade seja dita, muitos ótimos filmes sucederam o clássico moderno de M. Night Shyamalan. O enervante Ecos do Além (1999), por exemplo, foi o primeiro a surfar esta onda, ganhando um alcance bem maior ao ser lançado poucos meses depois do ‘hit’ estrelado por Bruce Willis. Nos anos seguintes vieram obras do porte de O Dom da Premonição (2000), Os Outros (2001), A Espinha do Diabo (2001), A Vila (2004) e O Orfanato (2007). Uma “safra” de trabalhos elegantes que presavam pela construção do clima de mistério em detrimento dos sustos fáceis. Além Shyamalan, nomes como o do mexicano Guillermo Del Toro (O Labirinto do Fauno), do espanhol J.A Bayona (O Impossível) e do chileno Alejandro Amenábar (Mar Adentro) emergiram desta corrente, o que ajuda a explicar o nível de qualidade destas produções. 

Como geralmente acontece em Hollywood, porém, tudo o que é bom logo é saturado pelos interesses mercadológicos. O nível dos filmes de fantasma voltou a cair exponencialmente com o ‘boom’ de outros nichos do segmento, em especial do ‘found foutage’ e do lucrativo modelo Blumhouse. Não demorou muito para este tipo de produção (mais moderada e intimista) perder a vez. De tempos em tempos, porém, alguns lançamentos surgem para saciar o nosso “apetite”. De longe o melhor título do subgênero desde A Ilha do Medo (2010), O Segredo de Marrowbone impressiona pela sua capacidade de flertar com elementos do cinema de horror moderno sem sacrificar o clima de suspense atmosférico das produções citadas acima. Lançado bizarramente direto via streaming por aqui, o que só atesta tudo o que escrevi acima, o longa escrito e dirigido pelo espanhol Sergio G. Sanchez causa um inesperado impacto ao criar uma ameaça extremamente reconhecível aos olhos do público. O fantasma do abandono, da brutalidade, da solidão.



Inteligente ao arquitetar a realística metáfora familiar proposta inicialmente pelo roteiro, O Segredo de Marrowbone faz jus ao título ao saber alimentar como poucos os seus mistérios. Apesar das generosas exposições narrativas em parte do segundo ato, Sergio G. Sanchez testa as expectativas do público ao preencher a trama com pequenas perguntas que sabiamente ficam sem respostas num primeiro momento. Curiosamente, porém, o ‘plot’ em si é simples e objetivo. Após uma repentina fuga da Inglaterra para a América, a família Marrowbone decide tentar colocar uma pedra no passado. Quando a matriarca morre deixando os seus quatro filhos menores de idade sozinhos, o mais velho Jake (George McKay) se vê obrigado a isolar os seus irmãos na tentativa de impedir que a cidade descobrisse a situação deles e alertasse às autoridades. Com base nesta instigante premissa, o realizador espanhol é astuto ao gradativamente introduzir as peculiaridades por trás da rotina deles. Sob uma perspectiva intimista e por vezes sorrateira, ele é cuidadoso ao estabelecer a dinâmica dentro da casa, a posição de cada um, os seus respectivos medos, os perigos que o cercavam. Logo algumas perguntas começam a brotar na nossas cabeças. Por que eles não podem olhar para o espelho¿ Por que existe uma porta lacrada com pedras¿ Por que o fantasma que os ameaça só parece amedrontar o pequeno Sam (Matthew Stagg)¿ Fazendo um precioso uso do poder da insinuação, Sanchez esbanja perspicácia ao permitir que o espectador participe da história, que tente encaixar as peças, conjecturar sobre os fatos não mostrados. Um artifício, diga-se de passagem, potencializado por hiato temporal engenhosamente construído pelo roteiro. Algo de muito importante aconteceu, mas nós não sabemos o que.


Na verdade, o espectador mais experimentado no gênero não deve demorar muito para capturar a raiz dos segredos em questão. Por mais que Sanchez mostre categoria ao extrair o máximo do crescente clima de tensão dentro da assombrosa mansão, uma aura soturna brilhantemente construída por ele a partir de enquadramentos refinados, do expressivo desenho de som, do precioso trabalho da equipe de direção de arte e do seu imersivo ‘mise en scene’, o ‘twist’ inicial deve ficar claro porque não chega a ser tão distante da realidade previamente estabelecida. O que, de fato, não significa um demérito para o roteiro, já que, além de alimentar um esperto clima de desconfiança sobre os mistérios em si, o realizador em nenhum momento se prende única e exclusivamente ao fator surpresa. Ao fugir dos sustos fáceis e dos protocolares ‘jump scares’, o diretor espanhol consegue ir além do fantasma em si, refletindo sobre os medos dos personagens através da relação deles com esta ruidosa criatura. É interessante ver como o elemento paranormal, aqui, esconde os traumas familiares dos irmãos, as dolorosas cicatrizes de uma infância cruel e devastadora. Embora o fantasma assombre nos momentos certos, Sanchez é maduro ao capturar o horror da reação dos personagens, da gradativa sensação de desconforto e disfuncionalidade, tornando tudo o mais denso possível.


Em alguns momentos, inclusive, O Segredo de Marrowbone não se furta em abraçar o drama com convicção, entregando sequências carregadas de emoção e de muita intimidade. Sem querer revelar muito, a cena do pacto entre os irmãos é de uma beleza desconcertante. Um predicado valorizado pelas fortes performances do jovem, talentoso e entrosado elenco, que, de maneira intensa, imprimem em tela o misto de precocidade (George McKay, magnífico ao realçar a fragilidade por trás da resiliência de Jake), ternura (Mathew Stagg, pura fofura), coragem (Charlie Heaton, explosivo ao surgir como um contraponto ao protagonista) e culpa (Mia Goth, introspectiva ao traduzir o silencioso grito de dor da sua Jane) que os seus personagens exigiam. Além disso, é legal ver também a delicadeza de Sergio Sanchez ao solidificar o elo entre Jake e o seu interesse amoroso, a independente Allie (Anna Taylor-Joy, peculiar como de costume), tornando a relação dos dois um sopro de normalidade dentro da rotina do protetor primogênito. 


Quando tudo parecia rumar para um desfecho digamos nem tão inovador assim, o que, pelas virtudes expostas acima, passaria longe de ser decepcionante, O Segredo de Marrowbone faz jus aos títulos citados no primeiro parágrafo ao usar a possível previsibilidade do argumento a seu favor, ao “distrair” as nossas atenções na construção de um ‘plot twist’ difícil de ser decifrado. Esse realmente me pegou de surpresa! Por mais que, na transição para o clímax, o realizador peque (mais uma vez) pela falta de confiança no espectador ao surgir com pelo menos uma destoante sequência expositiva, a solução encontrada por ele para manter o clima de perigo iminente intacto até o fim é extremamente coerente, uma sacada simples com consequências complexas que ajuda a unir todas as peças deste intrigante quebra-cabeça. E olha tudo se encaixa de maneira praticamente impecável, comprovando a capacidade de Sanchez tanto em explorar os simbolismos em torno do elemento fantasmagórico, quanto em fincar os dois pés na realidade ao revelar o impacto da brutalidade no destino dos seus personagens. Somado a isso, na hora H, o roteiro esbanja dinamismo ao voltar à lacuna temporal proposta lá no primeiro ato, costurando passado e presente com esmero e pulso narrativo.


Impactante enquanto filme de horror, pesado enquanto um drama familiar, instigante enquanto suspense fantasmagórico, O Segredo de Marrowbone surpreende ao enxergar além dos seus ‘plot twists’. Impulsionado pela elegante trilha sonora incidental de Fernando Velázquez (A Colina Escarlate, Sete Minutos Depois da Meia-Noite) e pela texturizada fotografia fria de época de Xavi Giménez (A Mulher de Preto), Sérgio G. Sanchez entrega uma obra enervante, inteligente e atmosférica. Um filme esteticamente virtuoso capaz de incomodar ao mostrar que a realidade pode ser tão (ou talvez bem mais) assustadora do que uma atividade sobrenatural.

3 comentários:

Anônimo disse...

Parabéns, que texto chato

Anônimo disse...

Incrível a sua resenha eu amei

Anônimo disse...

Explicou, explicou… e não agregou em nada.