quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Crítica | Primeiro Homem

A dura vida de um astronauta

Logo na fantástica cena de abertura, o prodígio Damien Chazelle (Whiplash, La La Land) mostra que Primeiro Homem não será mais um filme reverência sobre os incríveis feitos norte-americanos durante a corrida espacial nos anos 1960. Nela, sentimos na pele a angústia de Neil Armstrong, um verdadeiro “passageiro da agonia” numa aeronave rudimentar durante um mero voo civil rumo à estratosfera. Uma sequência tensa e imersiva que diz muito sobre o que veremos a seguir. Sem a intenção de glamourizar os intrépidos feitos do primeiro homem a pousar na lua, Chazelle mostra a sua impressionante maturidade artística ao desvendar a figura de Armstrong, investindo numa abordagem nua e crua ao tentar entender o que movia esta complexa e introspectiva figura. O resultado é um retrato quase documental, uma obra íntima e densa que, embora esbanje virtuosismo técnico ao traduzir a dura vida de um astronauta em verdadeiras caixas de metal voadoras, se encanta verdadeiramente pelo (vulnerável) homem por dentro do uniforme, o rígido pai, o errático marido. Um tipo pragmático e obstinado disposto a fazer sacrifícios em prol dos seus objetivos. 



Esqueça, portanto, o arquétipo ‘cool’ que Hollywood ajudou a consagrar quando o assunto são os astronautas da ficção. Fiel aos fatos, o argumento assinado por Josh Singer (do igualmente excelente The Post: Guerra Secreta) é positivamente frio ao desvendar o racionalismo de Neil Armstrong. Um homem regrado e nada midiático que só queria cumprir a sua missão da forma mais segura possível. Sem medo de se prender demais a face antipática do protagonista, Damien Chazelle é cirúrgico ao colocar o drama familiar\pessoal do seu protagonista em primeiro lugar, buscando compreender a chama que o movia a partir dos seus conflitos, das suas perdas e do seu comportamento distante. Com uma abordagem intimista, potencializada pela austera fotografia envelhecida\granulada em tons pastéis de Linus Sandgren (La La Land), o realizador torna tudo o mais verdadeiro possível ao invadir o seio familiar de Neil Armstrong (Ryan Gosling) e mostrar o impacto da sua profissão na rotina daqueles que o cercavam. Com a sua câmera em muitos momentos na mão e os seus invasivos planos fechados, Chazelle contorna a personalidade lacônica do biografado ao extrair à força as discretas manifestações de emoção de Armstrong, ao expor pouco a pouco a face mais frágil por trás da casca dura e impávida que ele nitidamente se esforçava para manter. Ao longo do contextualizador primeiro ato, o longa é inteligente ao se concentrar basicamente na figura do protagonista. Ao mostrar como uma dolorosa perda ajudou a guia-lo rumo ao feito que mudaria a sua vida. Os conflitos de Armstrong são reais, as suas reações totalmente compreensíveis, a sua resiliência esconde o drama de um homem que decidiu não externar a sua dor. Cada perda durante a sua jornada é sentida, o que só ajuda a compor este complexo personagem. Nuances profundas capturadas com comedimento por Ryan Gosling, que, numa performance implosiva, esbanja sutileza ao interiorizar o misto de tristeza, medo, frustração e gana que o movia.


O Primeiro Homem atinge o seu ápice, entretanto, quando Damien Chazelle decide se debruçar sobre a dinâmica familiar do biografado. Enquanto o astronauta Neil Armstrong quase não deixava transparecer as suas emoções, o que fica bem claro na intensa cena de um trágico telefonema, o pai\marido Neil Armstrong era mais suscetível aos seus sentimentos. É aqui, na verdade, que o jovem realizador escancara a face mais humana do protagonista, principalmente quando o assunto é a sua estreita relação com a esposa, a igualmente resiliente Janet (Claire Foy). Obrigada a conviver com a ausência, o peso nos ombros e a sensação de perigo iminente, a forte personagem cresce assustadoramente ao longo da película, se revelando a única capaz de tirar Armstrong da sua claustrofóbica casca. Indo (bem) além do arquétipo da figura materna multitarefas e compreensiva, Foy explode em cena com energia e sutileza, oferecendo assim uma bem-vinda visão sobre o outro lado desta equação. Assim como Armstrong, Janet também tinha muito a perder, uma desconfortável sensação de desamparo que culmina em alguns dos melhores momentos do longa. Como não citar, por exemplo, a desconcertante sequência em que o pai Armstrong é desafiado a explicar para os seus filhos que poderia não retornar para casa após a sua missão, ou então a discreta e emotiva cena final, dois momentos genuinamente íntimos que só ajudam a reforçar o turbilhão de emoções que cercava os personagens. Outro ponto que agrada, e muito, é a maneira com que o roteiro explora a figura da pequena Karen na identidade do astronauta. Por mais que, claramente, Chazelle encontre aqui uma brecha para interferir mais dramaticamente na jornada de Armstrong, ele o faz com indescritível delicadeza, permitindo que o público compreenda como algumas lacunas pessoais são difíceis de serem preenchidas.


Diante de tantos predicados narrativos, na verdade, confesso que já estaria por si só satisfeito se Primeiro Homem seguisse essa abordagem meio ‘indie’, meio documental sobre a rotina de Neil Armstrong longe do uniforme. Damien Chazelle, porém, não perde a oportunidade de desfilar o seu virtuosismo técnico ao capturar a dura rotina de um astronauta durante a preparação para um desafio deste porte. O resultado é uma experiência sufocante. Esqueça o caos plasticamente imagético de títulos como Gravidade e Perdido em Marte. O jovem realizador não se contenta em mostrar o quão expostos estavam os postulantes durante as suas inúmeras missões. Ou então a beleza impactante do cenário espacial\lunar. Com enquadramentos fechadíssimos, um primoroso uso dos planos subjetivos, um assustador design de som e vertiginosos movimentos de câmera, Chazelle se esforça para nos colocar dentro das (minuciosamente recriadas) naves, invadindo a perspectiva de Neil Armstrong em sequências difíceis de se traduzir em palavras. Numa solução ousada, inclusive, o jovem diretor mostra originalidade ao filmar os turbulentos voos de dentro para fora. O espaço surge em tela quase sempre apenas na janela dos tripulantes. Uma redução no escopo da película que se torna fundamental para a valorização do aspecto mais claustrofóbico das missões. Quando necessário, porém, Chazelle escancara a nossa pequenez perante a vastidão do universo com enorme requinte estético, nos brindando com uma preciosa recriação do primeiro pouso do homem na lua. Aqui, e só aqui, o realizador se permite reverenciar os feitos de Neil Armstrong e Buzz Aldrin. Até porque, antes disso, ele não poupa ninguém ao descortinar os bastidores da corrida espacial norte-americana na década de 1960. Chazelle coloca o dedo na ferida ao expor as críticas, o despreparo, a falta de convicção e as devastadoras sequelas das inúmeras tentativas (e erros) da NASA numa época em que simuladores sequer sonhavam em existir. Vide a ultra realística sequência da queda de Neil Armstrong durante um simples treinamento, um daqueles momentos inacreditáveis que só os grandes conseguem tirar do papel.


Embora peque pela falta de acabamento de alguns dos seus arcos, a simpática personagem vivida por Olivia Hamilton é inadvertidamente esquecida na metade final do longa, Primeiro Homem vai muito além dos incríveis feitos de Neil Armstrong ao se encantar pela face mais comum e insegura do biografado. Com um sólido elenco de apoio e um incrível trabalho de reconstrução da tecnologia da época, Damien Chazelle exibe a sua autoral assinatura ao realçar a disfuncional relação de uma família separada por uma lacuna de proporções (literalmente) espaciais, aterrissando na intimidade de um homem enigmático ao tentar entender as reais motivações por trás do seu histórico pequeno grande passo.



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