sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Crítica | IO

Entre a razão e a emoção

Sustentar um filme em um ou poucos atores é sempre um trabalho muito desafiador. Para o público e principalmente para o responsável por tirar a história do papel. Pode ser apenas uma impressão minha, mas diante desta abordagem naturalmente intimista a nossa percepção sobre a obra se torna mais aguçada. Os diálogos se revelam mais “audíveis”. O visual mais relevante. Os passos em falsos mais evidentes. O que só atesta a ambição por trás de títulos como IO. Uma mistura de Perdido em Marte (2015) com Os Últimos na Terra (2015), o longa dirigido por Jonathan Helpert escancara as suas virtudes e também os seus pecados ao discutir os mistérios da evolução humana sob uma perspectiva indiscutivelmente singular. E de fato estamos diante de uma obra intrigante. Embora o ritmo lento salte aos olhos em alguns momentos, a produção original Netflix compensa ao propor uma realística visão de futuro pós-apocalíptico, prezando pelo aspecto científico enquanto explora a dicotômica relação entre a razão e a emoção num ambiente praticamente sem vida. O resultado é uma película com ideias inspiradas, outras superficiais, alguns conceitos realmente inventivos, mas que, no final das contas, exige bastante do espectador. Em especial atenção, paciência e uma inegável dose de boa vontade quanto ao rumo anticlimático que o argumento decide tomar. 



O que, de maneira alguma, quer dizer que as opções tomadas pelo roteiro sejam ruins. Muito pelo contrário. Numa época em que alguns realizadores atenuam o peso das suas obras na busca pela atenção do público, títulos como IO surgem como um bem-vindo contraponto, uma película capaz de optar pelo caminho mais difícil na tentativa de promover a sua mensagem. O problema, entretanto, fica pela forma como o filme é vendido para o público. E, de fato, tanto o trailer, quanto o primeiro ato de IO sugerem algo bem diferente do que o argumento assinado por Clay Jeter, Charles Spano e Will Basanta se propõem a entregar. A rigor, num primeiro momento, nos deparamos com um instigante thriller pós-apocalíptico de sobrevivência. Impulsionado pelo precioso trabalho da equipe de direção de arte, pelos imperceptíveis efeitos digitais na construção deste mundo devastado e pela imersiva condução de Jonathan Helpert, o longa impressiona ao nos levar para uma Terra abandonada, um planeta saturado pela própria raça humana que teve de fugir às pressas para uma lua de Júpiter quando o ar da nossa atmosfera deixou de ser respirável. Diante da morte e do repentino êxodo, porém, alguns decidiram ficar e buscar na ciência a esperança necessária para recuperar o nosso habitat. Ao longo do terço inicial, Helpert é habilidoso ao estabelecer a rotina de uma destas “sobreviventes”, a independente Sam (Margaret Qualley), uma jovem solitária dedicada a causa do seu pai, o cientista Henry (Danny Huston), na busca por um indício de que o nosso planeta estava pronto para o repovoamento. Inspirado por obras como Wall-E e o já citado Perdido em Marte, o realizador conquista a atenção do público ao narrar os passos desta resiliente protagonista, ao realçar o seu otimismo, a sua coragem, os perigos em torno das suas incursões em área contaminada e o seu forte apego pela vida na Terra. E isso sem nunca sacrificar o viés científico que, apesar da complexidade dos conceitos propostos, é abordado com leveza e propriedade.


O duelo Homem versus Natureza, no entanto, é logo abreviado com a introdução de um terceiro personagem, o navegador Micah (Anthony Mackie). Um tipo igualmente complexo que, embora seja decisivo para o rumo da trama, altera também o ‘status quo’ da obra. Uma mudança de rumo que, verdade seja dita, nem sempre funciona tão bem. É preciso elogiar, por exemplo, a ousadia de Jonathan Helpert em reduzir ainda mais escopo da trama, que, a partir do segundo ato, praticamente não deixa a instalação em que Sam habitava. Graças a esta limitação, o argumento consegue em pouco tempo solidificar o elo entre dois indivíduos de lados opostos de uma mesma equação. Enquanto ela, fiel à sua racionalidade, seguia “presa” a existência na Terra e a esperança que haveria uma luz no fim do túnel, ele, quebrado pela desilusão, só queria encontrar a resposta que esperava para finalmente deixar o nosso planeta. A partir da perspectiva de dois indivíduos unidos pela solidão, pela melancolia e pela carência, Helpert é astuto ao explorar a tênue linha entre a razão e a emoção, ao colocá-los ora em rota de conflito, ora de fusão. O que, diga-se de passagem, evita que a relação entre eles se torne apenas mais um romance genérico. Outro ponto que agrada, e muito, é a maneira com que o diretor explora o viés insinuante do texto. Mesmo nos momentos mais lentos, Helpert consegue alimentar certos mistérios, propor algumas inspiradas alegorias, nos colocar em dúvidas sobre as reais motivações dos personagens. Sem querer revelar muito, o roteiro é particularmente esperto ao explorar o misto de frieza e inocência da jovem cientista, uma “rainha virgem” (numa alusão a colmeia que ela cultivava com tanto afinco) que não havia experimentado a vida pré-apocalipse. O que só reforça as nossas dúvidas sobre as reais intenções da protagonista.


Uma pena que, para isso, IO tenha que sacrificar tanto das suas virtudes. A começar pela queda de ritmo da história. À medida que o segundo ato ganha forma, Jonathan Helpert pisa no freio com imprudência, se perdendo em meio às suas próprias pretensões ao, por alguns bons minutos, não saber bem para onde ir. O objetivo dos dois personagens é repentinamente colocado em segundo plano, dando espaço à diálogos irregulares e soluções que parecem colocar o arco central em suspensão. Além disso, na tentativa de extrair o máximo do choque de experiências entre Sam e Micah, o realizador investe em sequências que tentam soar mais inteligentes do que são, culminando num diálogo sentimentalista sobre Platão e a importância de busca pela cara metade. Confesso que, aqui, o filme quase me perdeu, principalmente pela forçada de barra do script em tentar explorar a complexa dicotomia proposta de 'plot' de maneira desastradamente expositiva. Quase didática. Um erro que, verdade seja dita, se repete no competente clímax, quando toda a criativa metáfora renascentista sugerida pela película perde força no momento em que o roteiro se vê obrigado a explicar para o público o sentido por trás de uma obra de arte. Uma perda de confiança na inteligência do espectador que não só contrasta com a ousadia narrativa da obra, como também com o aspecto mais virtuoso do longa. Incluindo a sólida construção dos dois intensos protagonistas, a expressiva fotografia externa em tons por vezes saturados de André Chemetoff e a inteligente crítica ambiental escondida numa bem resolvida parábola evolucionista.


Guiado pelas intensas performances de Margaret Qualley e Anthony Mackie, contidos ao entender o real grau de conexão entre os seus dois personagens, IO é uma obra com momentos ora provocantes, ora cansativos que, mesmo nos seus trechos menos inspirados, nunca deixa de instigar. Um thriller pós-apocalíptico de sobrevivência que foge do lugar comum ao valorizar o aspecto científico em detrimento do fator humano. Com o subir dos créditos, porém, fica a sensação de potencial inexplorado, um sentimento que, embora não apague os inúmeros predicados da obra, me deixou com a certeza que a jornada de Sam e Micah tinha muito mais a oferecer.

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