Adão, Eva e a distopia
Mesmo com três dos mais interessantes atores da atualidade no elenco, o
intenso Chiwetel Ejiofor (12 Anos de Escravidão), o carismático Chris Pine
(Star Trek) e magnética Margot Robbie (A Lenda Tarzan), Os Últimos na Terra é
um insosso thriller distópico que padece diante das suas elevadas pretensões.
Conduzido com exagerado naturalismo por Craig Zobel (Obediência), o longa
desperdiça algumas promissoras questões em prol de uma releitura um tanto
quanto óbvia envolvendo a parábola de Adão e Eva. Por mais que os inegáveis
valores estéticos elevem o nível de imersão e de qualidade da película, o
argumento se esvai em meio aos arrastados diálogos e aos previsíveis conflitos,
culminando numa história que instiga muito mais pela sua atmosfera, do que
propriamente pelo seu conteúdo.
Com roteiro assinado pelo inexperiente Nissar Modi, Os Últimos na Terra peca pela falta de ousadia ao traduzir os anseios e conflitos dos seus personagens. Ao invés de se debruçar sobre eles, Zobel opta pela insinuação, pelo olhar desconfiado, pelas trocas de farpas veladas, uma proposta silenciosa que parece confundir comedimento com repressão. Na trama, isolada após o fim da vida em sociedade, a ingênua Ann (Robbie) achava ser a única sobrevivente de uma guerra nuclear. Dona de um temperamento dócil, a bela jovem levava uma vida relativamente confortável em seu chalé, uma fazenda bucólica capaz de oferecer água e comida em doses relativamente confortáveis. Num das suas incursões pela região, no entanto, ela se depara com o cientista John (Ejiofor), um homem inteligente que sem saber mergulha num riacho contaminado. Com peso na consciência, Ann resolve oferecer ajuda e salva a sua vida após semanas de cuidado. Inicialmente reticente, ela logo se adapta a rotina a dois. Mas, quando tudo parecia em equilíbrio, os dois se deparam com o fragilizado Caleb (Pine), um homem misterioso que chega para modificar o status desta relação.
Num primeiro momento, Os Últimos na Terra parecia caminhar por um
terreno realmente interessante. Afinal de contas, como se não bastasse a
riqueza de possibilidades em torno da realidade distópica, o argumento coloca
frente a frente num confinamento uma jovem religiosa que nunca perdeu a fé e um
cientista prático disposto a sobreviver. Não espere, porém, uma discussão
elaborada em torno deste tradicional dualismo. Por mais que o tema pontue
brevemente a trama, Craig Zobel é raso ao explorar as diferenças filosóficas
entre os dois, se esquivando dos temas mais promissores ao investir em
sequências naturalistas e diálogos que parecem não saber para onde querem ir.
Pra piorar, o longa é extremamente preguiçoso ao construir uma espécie de
parábola bíblica envolvendo Adão e Eva. Mesmo diante de referências tão óbvias,
o argumento é pretensioso ao desenvolver os dilemas dos dois dentro deste
cenário quase paradisíaco, principalmente com a introdução do misterioso Caleb.
Ainda que ele adicione uma inegável pimenta à trama, a mudança no status quo
dos sobreviventes é revelada de maneira oscilante. Nos momentos em que pretende
realçar o desconforto entre eles, Zobel cumpre a sua missão com louvor. A cena
em que John e Caleb competem à mesa pela atenção de Ann, por exemplo, é
instigante e objetiva, assim como a incômoda sequência do lago. Na hora de
expor os anseios mais íntimos dos personagens, no entanto, o diretor opta por
diálogos vagos e soluções exageradamente reflexivas. O resultado é um último
ato previsível que tenta parecer ousado, metafórico, mas que perde grande parte
de sua força diante da falta de contundência do roteiro e da direção.
Num todo, porém, Os Últimos na Terra não se mostra uma obra totalmente
dispensável. Impulsionado pela versátil fotografia de Tim Orr (Segurando as
Pontas), impecável ao capturar tanto as radiantes paisagens bucólicas, quanto o
aconchego dos cenários mais íntimos, Craig Zobel constrói uma atmosfera
distópica naturalmente atraente. Elementos como o silêncio, a luz e a aparente
tranquilidade são bem aproveitados pelo realizador, ampliando o senso de
imersão do público à medida que a trama avança. Melhor ainda, aliás, é o
desempenho do enxuto e talentoso elenco. Mesmo com uma personagem frágil em
mãos, Margot Robbie enche a tela de inocência e pureza. Acostumada a
interpretar mulheres decididas e independentes, a atriz faz o possível para
adicionar traços mais autorais a sua Ann, mas não impede que ela fique reduzida
a mulher solitária dividida entre a razão e a emoção. Com um tipo multifacetado
em mãos, Chiwetel Ejiofor exibe a sua reconhecida intensidade ao traduzir os anseios
do racional John. De longe o personagem mais bem trabalhado da película, o
cientista permite que o ator passeie por temas contrastantes, entre eles a
confiança e o ciúme, criando um personagem crescente embora comedido. Por outro
lado, com um pouco menos de sorte, Chris Pine sofre diante do raso Caleb.
Carismático, o astro do novo Star Trek surge em cena com uma função bem
limitada, um tipo sem passado ou nuances, mas cumpre a sua função ao criar uma
figura positivamente dúbia.
Em suma, apesar da proposta aparentemente mais intimista, Os Últimos na
Terra peca ao não se aprofundar nos conflitos dos seus próprios personagens.
Ainda que a aura paradisíaca crie um esperto contraste com o cenário distópico,
o longa reduz algumas promissores questões em prol dos genéricos dilemas
passionais, subaproveitando o potencial do elenco ao se render à diálogos
vazios e soluções pretensiosas.
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