terça-feira, 4 de setembro de 2018

Cinco Filmes (Walter Hill)


Confesso que estava buscando um motivo para escrever sobre o grande (e esquecido) Walter Hill. No auge do cinema de ação na década de 1980, o legendário diretor se posicionou entre os maiores dentro do gênero ao dirigir o “pai” dos ‘buddy cop movies’ 48 Horas (1982), o competente Inferno Vermelho (1988), o lucrativo 48 Horas: Parte 2 (1990), além de produzir e\ou roteirizar pérolas do quilate de Alien: O Oitavo Passageiro (1978), Aliens: O Resgate (1986) e a divertida série de terror Contos da Cripta. O que mais me chama a atenção na carreira de Hill, entretanto, não foram os seus grandes trabalhos em Hollywood. Na verdade, o que me encanta na sua filmografia é o seu faro apurado para os filmes ‘cult’. Poucos diretores, num prazo tão curto, entregaram uma série de filmes tão singulares, obras marcantes que, assim como a maioria dos representantes do segmento, passaram longe do radar do grande público, ganhando o reconhecimento merecido somente anos mais tarde. Entre 1978 e 1986, Hill enfileirou produções recheadas de personalidade, transitando por gênero distintos com criatividade e energia. Aproveitando que a Netflix resolveu “desenterrar” um destes clássicos cult, o drama musical A Encruzilhada (1986), neste Cinco Filmes iremos analisar a face mais “alternativa” da filmografia de Walter Hill. 


- Caçada de Morte (1978)


Um piloto de fuga introspectivo entra na mira de um homem ameaçador no momento em que se envolve num assalto malsucedido e com uma enigmática mulher. Você provavelmente já viu esta trama em algum lugar? Sim, Nicolas Winding Refn não escondeu de ninguém que Caçada de Morte (The Driver, no original) foi uma das principais influências na realização do extraordinário hit ‘cult’ Drive (2011). No segundo grande trabalho da sua carreira, o primeiro foi o thriller de ação ‘underground’ Lutador de Rua (1975), Walter Hill ajudou a redefinir as engrenagens dos ‘heist movies’, os populares filmes de assaltos, numa obra recheada de estilo marcada por personagens carismáticos, um argumento simples\contundente e memoráveis sequências de ação. Influenciado por títulos como os clássicos Bullitt (1968), Encurralado (1971) e Operação França (1971), Hill, seguindo a corrente “faça você mesmo” solidificada pela Nova Hollywood, arregaçou as mangas para tornar as perseguições o mais realísticas possíveis. Num empolgante “balé” automobilístico, o então promissor realizador posiciona a sua câmera dentro da ação, fazendo um fluído uso dos planos subjetivos, fechados e abertos na captura das aceleradas fugas pelas ruas de Los Angeles. O resultado é um ‘mise en scene’ magnífico, potencializado pela afiada montagem e pela perícia dos ‘stunts’ nas velozes manobras. Se engana, porém, quem reduz Caçada de Morte ao aspecto técnico. Numa proposta narrativamente original, Walter Hill resolveu tirar do papel um filme “puro”. Um envolvente jogo de gato e rato guiado por uma trama objetiva e um texto minimalista que só ajuda a reforçar a aura ‘cult’ dos protagonistas. Os protagonistas, aqui, são identificados pelas suas respectivas funções dentro da trama. Temos “O Piloto”, “O Detetive”, “A Jogadora”... Uma sacada inventiva que, anos mais tarde, viria a influenciar um tal de Quentin Tarantino em obras como Cães de Aluguel e Kill Bill. Hill, contudo, é sagaz ao subverter os arquétipos do gênero. O herói vivido pelo magnético Ryan O’Neal é frio e silencioso. A mocinha vivida pela bela Isabelle Adjani é dúbia e introspectiva. O vilão interpretado (com maestria) por Bruce Dern é expansivo e persuasivo. Uma roupagem urbana que faz de Caçada Mortal um thriller de ação irresistível, uma obra particular movida por fantásticos efeitos práticos, pelo ruidoso ronco dos motores e pela ironia refinada de Hill ao reaquecer um subgênero.

- Warriors: Os Selvagens da Noite (1979)


Se eu tivesse que fazer um Top 10 com os melhores filmes ‘cult’ da história, facilmente Warriors: Os Selvagens da Noite estaria numa das posições mais altas desta lista. Num relato urbano sobre um Estados Unidos caótico e sem leis, Walter Hill brindou os fãs do gênero com uma singular pérola do cinema de ação. Fazendo jus ao contexto da época, uma realidade marcada pelo aumento da criminalidade e pelo surgimento\crescimento de gangues, o realizador decidiu usar este cenário como o estopim para a construção de uma obra agressiva e naturalmente empolgante. Sob um estilizado ponto de vista, Hill investiu pesado na construção de mundo, injetando personalidade na criação das particulares gangues e no cenário que elas estavam inseridas. Indo além da violência pela violência, ele conquistou a atenção do público ao se preocupar em personificar cada um dos grupos, em valorizar elementos como o figurino, os nomes, as maquiagens e as peculiaridades dos personagens. Neste inventivo contexto, o longa inspirado na obra de Sol Yurick narra a desventurada jornada dos Warriors, uma respeitada gangue que, durante uma reunião central com todos os demais grupos da região, é acusada injustamente de atirar num dos líderes do “movimento”. Cercados por centenas de rivais, eles terão que correr por uma abandonada Nova Iorque, lutando contra o perigo iminente enquanto tentam voltar para a segurança do seu bairro. Assim como em Caçada de Morte, Walter Hill é astuto ao sustentar a ação numa trama simples e universal. Com personagens carismáticos, memoráveis sequências de luta e cenários recheados de estilo, o diretor nos brindou com uma obra repleta de adrenalina. Um filme frenético que exala personalidade ‘cult’ do primeiro ao último minuto de projeção. Além disso, apesar da recepção negativa na época do seu lançamento, Warriors se tornou uma peça influente dentro da cultura pop, indo além do cinema ao servir como referência para criadores de jogos, para compositores e para revistas em quadrinhos. Recheado de momentos inesquecíveis, vide o improvisado “Warriors, come out and play!”, Os Selvagens da Noite se revela (ainda hoje) uma película moderna e instigante. Um longa simples e ao mesmo tempo audacioso que soa cada vez mais autoral diante da megalomania genérica que tomou conta de Hollywood.

- Ruas de Fogo (1984)


Uma estrela do rock é sequestrada por uma perigosa gangue de motoqueiros. Sua única esperança é o seu problemático ex-namorado, um militar de passado nebuloso acostumado a fazer as coisas da sua maneira. Imagina uma mistura de Mad Max (1979), com Fuga de Nova York (1981) e Purple Rain (1984). Ousado, não? Um musical rock recheado de personalidade, Ruas de Fogo é um filme de ação corajoso. Contrariando tudo o que vinha sendo feito na época, Walter Hill surpreendeu mais uma vez ao tirar do papel um inusitado thriller ‘neo noir’, voltando a traduzir o caos urbano norte-americano de maneira estilizada num ‘hit’ cult instantâneo. Numa proposta genuinamente exótica, o realizador transita entre a ação, o romance e a comédia com improvável fluidez, mostrando a sua reconhecida visceralidade narrativa numa produção que, mesmo nos seus momentos menos inspirados, revela uma dose originalidade capaz de atenuar qualquer tipo de equívoco. Na verdade, assim como em Caçada de Morte e Warriors, impressiona a capacidade de Hill em tirar do papel uma história própria, com elementos particulares, sem qualquer tipo de floreio ou excesso. Seus filmes, nesta fase mais cult, eram literalmente curtos e grossos. Dois parágrafos de história embalados por diálogos espertos, uma expressiva construção de mundo e uma inventiva visão cinematográfica sobre a violência urbana que assolava a América neste período. Uma combinação que, ao meu ver, talvez explique o charme destas obras. Distante do arquétipo do herói perfeito, o ‘bad-ass’ Tom Cody, por exemplo, surge como o símbolo da película. Um homem sensível como um elefante, vide o seu poder de “persuasão” na cena do trem, capaz de sobreviver no caótico cenário urbano cinquentista proposto por Hill. Tratado como um astro em potencial na época, Michael Paré não “vingou” entre os grandes, mas - aqui - ajuda a incrementar a aura ‘cool’ da produção com uma performance silenciosa.


Longe de ser um ator dotado de grandes recursos dramáticos, ele caiu como uma luva nesta produção, muito em função da sua inquestionável presença cênica, capitaneando um elenco de jovens formado por nomes como Diane Lane (magnética como uma popular estrela do rock), Williem Dafoe (positivamente afetado como o pálido líder da gangue), Rick Moranis (divertidamente detestável como o atual namorado e empresário da cantora) e Amy Madigan (destemida na pele da parceira de Cody). Nos bastidores, inclusive, a relação entre Paré e Moranis esteve longe das melhores, já que, segundo o próprio protagonista, o humor provocador do comediante o levou a quase perder a razão dentro do set. Algo que, definitivamente, fica bem claro em cena, uma vez que as trocas de farpas entre o “mercenário” e o empresário estão entre os momentos mais engraçados da película. Curiosamente, entretanto, se narrativamente Ruas de Fogo é um filme simples e objetivo, Hill mostra mais uma vez engenhosidade na construção deste mundo caótico e sujo. Os cenários práticos são inventivos e exploráveis. Os figurinos extravagantes sintetizam com criatividade a proposta temporal híbrida defendida por Hill. A soturna fotografia noturna de Andrew Laszlo ajuda a incrementar o potencial de imersão, principalmente pela astúcia ao explorar elementos (chuva, fumaça, iluminação) do cinema ‘noir’. Tudo “conspira” a favor deste descolado thriller de ação, que, indiscutivelmente, atinge o seu ápice graças a original trilha sonora. Através de ‘riffs’ grandiosos e vigorosos números musicais, vide as sequências de abertura e encerramento, Hill transforma Ruas de Fogo numa daquelas produções capazes de definir o cinema dos anos 1980. Com personagens (a sua maneira) cativantes, um argumento escapista, um visual digno de nota e empolgantes cenas de ação, o longa, embora tenha sido um fracasso de público na época do lançamento, teve a sua importância reconhecida nas décadas seguintes, influenciando títulos como o ultraviolento Robocop (1987) e a cultura pop como um todo.

- Chuva de Milhões (1985)


Numa repentina mudança de curso na sua carreira, Walter Hill resolveu se arriscar no terreno da comédia com Chuva de Milhões. O resultado foi uma película debochada capaz de rir do lema “dinheiro atrai dinheiro” com criatividade e uma veia cômica a frente do seu tempo. Mesmo com duas das melhores e mais engraçadas estrelas da comédia oitentista no elenco, os expansivos Richard Pryor e John Candy, o realizador norte-americano decidiu ir além do humor pelo humor ao subverter a lógica capitalista tipicamente ‘yankee’. Numa das mais singulares adaptações da obra de George Barr McCutcheon, Hill seduz o espectador com uma transloucada história, exibindo a sua reconhecida simplicidade narrativa ao acompanhar as desventuras de um lançador de beisebol fracassado (Pryor) e do seu fiel escudeiro (Candy) que, numa virada do destino, se vê obrigado a gastar US$ 30 milhões em um mês para ter acesso e uma herança de US$ 300 milhões. Ou tudo, ou nada. Por mais o argumento mostre astúcia ao construir sequências naturalmente cômicas, a graça de Chuva de Milhões está na maneira com que Hill brinca com o ‘status quo’ do mundo dos negócios. Num contexto em que ganhar dinheiro é um problema, as maneiras encontradas pelo ex-jogador para torra-lo não só são naturalmente cômicas, como também permitem que o longa questione a má distribuição de renda em solo americano. Sem querer revelar muito, mais do que simplesmente criticar os exorbitantes gastos de campanha, o subplot político proposto na segunda metade da trama se revela um tanto quanto visionário, principalmente quando encaramos a realidade atual e a maneira com que Trump seguiu uma lógica semelhante para chegar à presidência dos EUA. Pelo menos, no filme, tudo não se passava de uma grande piada. Além disso, por mais que o pulso narrativo de Walter Hill seja nítido e o roteiro consiga encontrar as brechas necessárias para solidificar o vínculo afetivo entre os retilíneos personagens, o grande trunfo da película reside nas performances de Richard Pryor e John Candy. Como se não bastasse a excelente química entre os dois, a dupla extrai o máximo desta inusitada premissa, abraçando a loucura proposta por Hill com dinamismo e um afiado ‘timing cômico’. Enquanto Pryor cativa na pele de um milionário errático e avesso ao lucro, Candy esbanja carisma como um homem inconformado com o “desapego” do seu amigo. Com orçamento de US$ 20 milhões, Chuva de Milhões fez um relativo sucesso junto ao público, rendendo sólidos US$ 45 milhões ao redor do mundo. Curiosamente, entretanto, ao se distanciar da busca pela piada a qualquer custo, o filme não foi recebido com muito entusiasmo pela crítica, o que, obviamente, conferiu um status cult a produção. Uma obra que, ao contrário de outros hits da dupla, entre eles Cegos Surdos e Loucos, Loucos de Dar Nó, Antes Só do Que mal Acompanhado e Jamaica Abaixo de Zero, caiu no esquecimento popular. O que é uma pena.

- Encruzilhada (1986)


Por fim, o filme que motivou esta lista. Encruzilhada é uma verdadeira ode ao blues. Numa obra recheada de energia e musicalidade, Walter Hill imprime a sua paixão pelo segmento do primeiro ao último minuto de projeção, reverenciando o legado de grandes músicos sem esquecer de colocar o dedo na ferida ao questionar o “descaso” do ‘mainstream’ com o “pai” do rock’n roll. Com a então estrela jovem Ralph Macchio e o veterano Joe Seneca no elenco, o eclético realizador norte-americano se volta para as raízes do gênero ao narrar a jornada de um jovem e virtuoso músico que, ao lado de um legendário (e esquecido) astro do blues, partem para uma viagem pelo interior da américa na busca por uma cobiçada música perdida do icônico Robert Johnson. No embalo dos fantásticos solos de guitarra e de gaita, Hill esbanja propriedade ao exaltar o passado do blues e o impacto do gênero na formação cultural\musical dos EUA. Fazendo um criativo uso dos mitos e lenda urbanas por trás de alguns dos maiores astros da música negra, o diretor nos presenteia com um ‘road movie’ fascinante, transitando entre a mitologia e a realidade a partir do emotivo olhar de um velho de volta a sua “casa”. Indo além da crítica a indústria fonográfica, que, na época, ditava as regras do pasteurizado mercado com milionários contratos (olha o subtexto) e sede pelo lucro, Hill é habilidoso ao ampliar o escopo da película, ao mostra a desigualdade, os enraizados conflitos raciais e o abandono de uma região esquecida pelas grandes metrópoles. Um ‘background’ que além de dizer muito sobre os sentimentos por trás de algumas das maiores canções do blues, solidifica a jornada de um imaturo músico em busca de aprendizado na escola da vida. Uma aventura musical cativante, recheada de diálogos espertos e situações envolventes, que atinge do seu ápice no extraordinário clímax, um desfecho catártico potencializado pelo visceral pulso narrativo de Hill e pela aclamada participação especial do legendário guitarrista Steve Vai. Uma crônica original, moderna e igualitária sobre um dos mais influentes gêneros musicais norte-americanos, Encruzilhada soa como um grito de liberdade, uma honesta tentativa de Hill e principalmente do roteirista John Fusco em resgatar a popularidade do “bom e velho” blues.

3 comentários:

JOTAT10 disse...

Esses filmes eu assisti na TV e muitos bons como a saga do Alien, esse diretor pelo jeito foi bom, na verdade não conhecia a sua história e vejo que é extensa com trabalhos do MOVIE AMERICANO muito bons.

thicarvalho disse...

Ele tem ótimos trabalhos Jotat, principalmente nos anos 1980. Um diretor versátil com faro apurado para o 'cult'. Valeu pela visita.

JOTAT10 disse...

Ola, sempre que posso eu vejo as suas postagens que são ótimas, tanto que me fez a curiosidade de rever esses filmes feitos por ele, já fiz uma agenda que cada fim de semana vou assistir um por um. Abraços thicarvalho.