O Outro lado do sonho olímpico
Abuso psicológico infantil, violência doméstica, trapaça esportiva, estupidez humana, infâmia popular. Nos não estamos acostumados a ver estes temas no radar da indústria do entretenimento norte-americana. Indo de encontro a um velho senso comum de Hollywood, o de glorificar histórias de superação e os tão estimados ídolos locais, Eu, Tonya é incisivo ao escancarar o outro lado do sonho olímpico. Inspirado numa "esquecida" e transloucada história real, o diretor australiano Craig Gillespie (Arremesso de Ouro, A Garota Ideal) enche a tela de energia ao narrar a jornada da patinadora Tonya Harding, uma indomável atleta que viu o seu legado ser manchado ao se envolver num "atentado" contra uma concorrente. Fascinado pelos absurdos por trás da ascensão da esportista, o realizador mostra pulso ao transitar habilmente entre o cinismo e o realismo, realçando o fator humano ao mostrar os fatos (por vezes extremos) por trás da trajetória da primeira mulher a conseguir fazer o salto Triplo Axel. Um movimento até então impossível para o seu gênero.
Fazendo um brilhante uso viés do documental, com direito a contraditórios depoimentos em formato VHS, uma esperta narração em off e a debochada quebra da quarta parede, Craig Gillespie nos brinda com uma daquelas obras que parece não querer desperdiçar um segundo sequer de projeção. Inspirado por títulos como Fargo: Uma Comédia de Erros (1996), O Lobo de Wall Street (2013) e A Grande Aposta (2015), o diretor australiano empolga ao tratar a jornada de Tonya Harding sob o prisma mais amplo possível, indo além do tom jocoso ao contar a sua complicada história com a seriedade que uma grande cinebiografia merece. Sem tempo a perder, o roteiro assinado por Steven Rogers (Lado a Lado, P.S: Eu Te Amo), no melhor trabalho da sua carreira, é cuidadoso ao se debruçar sobre os fatos mais espinhosos sem sacrificar o fator entretenimento.Com um afiado senso de humor, o argumento coloca o dedo na ferida ao explicar os motivos por trás do impulsivo comportamento da patinadora, se esquivando dos julgamentos morais ao traduzir a nociva interação entre Tonya e sua mãe, a corrosiva LaVona Golde (Allison Janney), a sua problemática infância, a sua agressiva relação com o marido, o instável Jeff Gilloly (Sebastian Stan), a distorcida pressão familiar em torno do seu sucesso esportivo e a sua constante luta contra o 'status quo' conservador da sua modalidade.
Embora opte por, num primeiro momento, tratar os seus personagens de maneira aparentemente caricatural, Craig Gillespie é astuto ao mostrar que os fatos narrados são inexplicavelmente reais. Apesar do teor cômico remeter a comédia de erros típica dos irmãos Coen, o diretor esbanja maturidade ao transitar por temas tão espinhosos com ironia e intensidade, revelando o impacto de uma péssima criação na cabeça de uma jovem dotada de rara habilidade numa pista do gelo. E isso sem se render a soluções fáceis e\ou previsíveis. Mais do que simplesmente traduzir a abusiva rotina de treinos, a negligência materna e a rebeldia disfuncional da atleta, Gillespie é corajoso ao tratar estas temas com um senso de humor feroz, refletindo a personalidade de Tonya em cada segundo de projeção. Não espere, portanto, um daqueles dramalhões típicos de Hollywood. Dramaticidade e ironia caminham de mãos dadas do primeiro ao último ato, principalmente pela maneira imprevisível com que o realizador explora o recurso da narração. Contada em flashback, a jornada da patinadora é entrecortada por comentários cínicos (e reveladores) de uma já decadente Tonya Harding, uma sacada genial que só adiciona peso e intimismo ao longa. Sem querer revelar muito, é interessante ver como ela trata a sua rotina de abusos e violência doméstica, uma visão natural que só amplia a sensação de desconforto em torno da sua história de vida. Um sentimento, diga-se de passagem, potencializado pela contundência com que Gillespie comanda as sequências de agressão, impressas em tela com uma inesperada dose de realismo, tornando tudo tão banal e repentino.
Magnífico ao descortinar a intimidade da patinadora, o longa é sucinto ao acompanhar a ascensão e a queda esportiva de Tonya Harding. Sem a intenção de alimentar o suspense em torno dos fatos conhecidos, Craig Gillespie passeia pela carreira da atleta olímpica norte-americana com energia e fluidez, realçando a sua perícia técnica e a sua ousadia nas pistas ao reproduzir (com uma minucia assustadora) algumas das suas principais apresentações. Por mais que o CGI utilizado para "pintar" o rosto de Margot Robbie em patinadoras profissionais se revele um tanto quanto falho, o australiano invade a pista de gelo ao investir em virtuosos movimentos de câmera, capturando os passos de Harding num bailar fílmico tão belo (e verossímil) quanto as suas próprias exibições. Uma abordagem vigorosa que, verdade seja dita, se repete no momento em que o roteiro se debruça sobre o "incidente" que transformou a carreira de Tonya. Disposto a revelar os verdadeiros fatos por trás da agressão à patinadora Nancy Kerigan (Caitlin Carver), Gillespie confia no ponto de vista da sua protagonista ao narrar os bastidores de um estapafúrdio atentado, absorvendo elementos das comédias de erros ao tornar tudo tenso, imprevisível e positivamente hilário. Toda a cena do ataque, em especial, é brilhantemente orquestrada pelo australiano, um impagável plano sequencial que sintetiza a estupidez das figuras envolvidas neste caso. Embora aja com uma perceptível condescendência quando o assunto é a participação de Tonya no caso, um senão narrativo que, felizmente, não é prolongado dentro do clímax, Gillespie não poupa os demais integrantes, extraindo o máximo do talentoso elenco ao nos brindar com momentos impagáveis. O que falar, por exemplo, da sequência do depoimento protagonizada pelo idiota Shaw (Paul Walter Hauser, ótimo), um momento engraçadíssimo que atesta o afiado 'timing' cômico do realizador.
Quando o assunto é o elenco, aliás, Margot Robbie se coloca de vez entre as estrelas jovens de Hollywood ao encarnar uma mulher embrutecida pela sua vida. Sem um pingo de vaidade, a bela atriz australiana encanta ao absorver o turbilhão de emoções de Tonya, a sua raiva, o seu ímpeto, a sua fragilidade (a cena do tribunal é de cortar o coração) e a naturalidade com que ela lidava com a violência doméstica. Numa das grandes atuações da temporada, Robbie expressa emoções tão conflitantes com enorme espontaneidade, premiando o público com sequências poderosas. Sem querer revelar muito, a cena em que a patinadora luta contra os seus próprios nervos diante do espelho é primorosa, um daqueles momentos capazes de justificar a sua presença nas grandes premiações. No mesmo nível da sua "filha", Alisson Janney impressiona ao interiorizar o misto de excentricidade e acidez de LaVona. Mesmo num tipo odioso, a talentosa atriz desfila a sua poderosa veia cômica ao encarnar um péssimo exemplo de mãe, uma mulher dura e negligente que parece querer preparar a sua filha para uma realidade reconhecível. Um ambiente voraz que, guardada as devidas proporções, reflete em parte a disputa por um lugar no topo, seja no universo esportivo, seja num contexto empresarial. Assim como Robbie e Janney, Sebastian Stan entrega a melhor atuação da sua carreira ao viver o instável Jeff, um homem "opaco" e desinteressante que tinha pouco a oferecer à sua talentosa esposa. Intenso, ele consegue criar um tipo positivamente comum, um homem tolo e violento que não tolerava o temperamento reativo da sua parceira. Com dois personagens tão bem desenhados em mãos, Craig Gillespie coloca os dois pés na realidade ao traduzir as verdades por trás de um relacionamento abusivo, ampliando o escopo dramático ao tornar tudo muito crível aos olhos do público.
Muito mais do que um simples drama esportivo, Eu, Tonya explora todo o seu potencial ao dar voz a uma daquelas histórias americanas frequentemente esnobadas em Hollywood. Num trabalho que exigia o máximo de todos os envolvidos, o versátil Craig Gillespie entrega o filme da sua carreira, uma cinebiografia empolgante recheada de predicados técnicos (e musicais) que, tal qual a sua protagonista, não se contenta com as firulas fáceis e a zona de conforto. O resultado é uma obra complexa, uma película que, embora ambientada num universo de medalhas e triunfos, se encanta pelas falhas e pela veia fracassada dos seus humanos personagens.
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