segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Três Anúncios para um Crime

Com momentos de genialidade, longa mostra originalidade ao discutir o preconceito nas entranhas da América

Uma espécie de western revisionista antibélico e feminino, Três Anúncios para um Crime contorna as suas falhas ao tratar o preconceito sob um prisma irônico e indiscutivelmente original. Numa opção ousada, o autoral diretor Martin McDonagh (Na Mira do Chefe) opta por se distanciar moderadamente da realidade ao abordar um tema tão espinhoso, utilizando o seu afiado senso de humor britânico na construção de uma crônica agressiva sobre uma América revanchista. Embora abuse da conveniência narrativa em alguns momentos, o realizador compensa ao usar a sua requentada história de vingança como um esperto ponto de partida para uma discussão mais ampla, uma visão peculiar sobre a estupidez humana diante da raiva, da injustiça e da ignorância. Um círculo vicioso potencializado pelas poderosas performances do trio Frances McDormand, Sam Rockwell e Woody Harrelson, magníficos ao absorver o cinismo do texto de McDonagh sem sacrificar o viés humano da película. 

Com roteiro assinado pelo próprio Martin McDonagh, Três Anúncios para um Crime é o exemplo de filme que pode ofender os "corações mais sensíveis". Numa época em que a problematização toma conta dos debates virtuais, o realizador londrino é - no mínimo - corajoso ao transitar por temas como a violência urbana e o racismo com acidez e humanidade, estreitando os laços entre os opostos ao realçar o melhor e o pior dos seus personagens. Seja ele uma obstinada mãe em busca de justiça, seja ele um policial preconceituoso incapaz de contribuir para a investigação de um assassinato. Ao contrário de alguns filmes do segmento, McDonagh é astuto ao se distanciar do maniqueísmo, dos tipos meramente unidimensionais. Sua “heroína” é falha. Seus "vilões" tem virtudes. Predicados que, à medida que a trama avança, são realçados de forma gradativa, um tempero que ajuda a tornar tudo mais atraente aos olhos do público. Impecável ao traduzir a realidade do interior dos EUA sob um aspecto quase naturalista, principalmente no que diz respeito as embrutecidas manifestações de afeto entre os protagonistas, McDonagh narra as desventuras de Mildred (Frances McDormand), uma mulher seca disposta a tudo para encontrar o paradeiro do assassino da sua querida filha. Diante da inércia da polícia local, entre eles o xerife Willoughby (Woody Harrelson), a indomável mãe decide iniciar uma cobrança pública, externando a sua insatisfação ao publicar uma mensagem em três outdoors da sua região. Ela, porém, não esperava que a sua manifestação fosse a colocar em perigo, expondo o preconceito enraizado ao desencadear uma espiral de caos e revanchismo. 


Embora parta de uma premissa aparentemente requentada, Três Anúncios para um Crime envolve ao logo de cara mostrar que não está interessado em ser mais um filme de investigação. Por mais que a revoltante morte da filha de Mildred sirva como o estopim da trama, Martin McDonagh se distancia das respostas fáceis ao propor um inventivo estudo sobre a insensatez e a ignorância humana. Sem escolher lados, o diretor mostra sagacidade ao dar a mesma importância para questões como a violência, o racismo e a vingança, tirando o máximo do árido cenário norte-americano ao pintar um retrato afiado sobre uma sociedade autodestrutiva. Flertando sistematicamente com o humor negro, o que, diga-se de passagem, rende sequências hilárias, McDonagh movimenta as suas peças com enorme presença de espírito, criando um particular vínculo entre elas à medida que questiona a raiz dos seus respectivos problemas. Apesar de o foco estar na figura de Mildred, o argumento se esquiva das soluções concessivas ao revelar o reflexo do revanchismo na sua jornada. Em vez de simplesmente capturar a dor da sua protagonista, o realizador tenta entender os verdadeiros motivos por trás de um comportamento tão agressivo, indo além das justificativas mais óbvias ao mostrar que estamos diante de uma mulher culpada, uma mãe obcecada por justiça que, para reencontrar a sua paz, se mostra capaz de cometer atos tão hostis quanto os dos seus alvos. A vingança, aqui, é tratada como um sentimento corrosivo, uma força destrutiva que realça o pior do individuo, a sua face mais raivosa e intempestiva. Esqueça, portanto, o viés glamourizado frequentemente explorado em Hollywood. As consequências são duras, as feridas profundas, uma espiral de ódio que, graças ao viés multidimensional proposto por McDonagh, ajuda a aproximar os personagens. A mostrar que eles pertencem ao mesmo mundo. 


Melhor ainda, aliás, é a maneira com que o argumento explora a questão do preconceito. Embora trate o tema sob um prisma desconfortavelmente banal, as ofensas raciais são proferidas com extrema naturalidade, Martin McDonagh subverte a lógica ao realçar o vazio por trás das rasas manifestações de ódio. O racismo é visto, mas não é sentido. É tratado como se fosse parte de uma distorcida engrenagem social local, um mal enraizado. Uma abordagem corajosa que, diga-se de passagem, ganha força diante de um inspirado 'plot twist', uma reviravolta densa que não só inflama os conflitos desenhados pela trama, como também expõe a face mais íntima dos seus protagonistas. E com isso não quero dizer que o filme ameniza um tema tão sério e atual. Muito pelo contrário. McDonagh opta por revelar a ignorância em torno de um sentimento tão vil, tornando tudo tão gratuito e injustificável. Uma visão realística que cresce em relevância quando percebemos a mudança de rumo pensada pelo realizador inglês. À medida que se distancia da dualística rixa entre Midlred e o Estado, McDonagh torna tudo mais complexo, mais tênue, transitando habilmente entre a comédia e o drama ao propor uma densa reflexão sobre a insensatez humana. O que falar, por exemplo, do estúpido policial vivido por Sam Rockwell, uma figura detestável e patética que, graças ao esmero do roteiro e ao senso de humor feroz do diretor, cresce assustadoramente em cena e se torna peça chave dentro do intenso último ato. Uma figura moldada pelo meio em que vive, vide a "singela" relação entre ele e a sua ferina mãe vivida por Sandy Martin. Como não citar, inclusive, o rompante de fúria do personagem num segmento chave da película, um plano sequência fantástico que só reafirma o potencial de um tipo nada ortodoxo. 


Pena que, na ânsia de entrelaçar os arcos de Mildred, Willoughby e Dixon, Três Anúncios para um Crime se escore em soluções tão frágeis. Embora os fins justifiquem os meios, Martin McDonagh peca pelas coincidências narrativas, movimentando os personagens de maneira artificial e pouco convincente. Até mesmo para uma pequena cidade do interior. E os problemas não param por ai. Mesmo com um elenco talentoso em mãos, McDonagh não consegue tirar proveito dos rasos coadjuvantes, os tornando peças descartáveis dentro da história. Na verdade, tipos como o agressivo ex-marido de Mildred vivido por John Hawkes, o excêntrico interesse amoroso interpretado por Peter Dinklage e a jovem esposa encarnada por Abbie Cornish até ajudam a sacudir a trama pontualmente, mas são esnobados no momento em que cumprem a sua função narrativa. Uma sucessão de deslizes que, verdade seja dita, é "encoberto" pela vigorosa direção de McDonagh. Com pulso narrativo e ousadia, o realizador inglês transita entre os três arcos com energia e fluidez, reforçando os absurdos por trás dos personagens ao não perder uma oportunidade de rir dos fatos impressos em tela. Por mais que, em alguns poucos momentos, os comentários irônicos soem deslocados, ele mostra inspiração ao extrair o humor por trás de temas tão espinhosos, preenchendo a trama com diálogos sarcásticos e situações naturalmente engraçadas. Vide a impagável cena do hospital, um curioso "reencontro" que culmina num dos momentos mais inesperadamente ternos da película. Um senso de imprevisibilidade que, aliás, se repete também nos momentos dramáticos. Com uma direção marcada pelos sutis planos intimistas e pelo belo uso do contraluz, McDonagh valoriza a expressividade dos seus comandados ao dar espaço a eles nas passagens mais densas, indo além do cinismo ao nos brindar com sequências genuinamente emotivas e reveladoras. 


Nenhum destes predicados, porém, faria sentido sem a complexidade oferecida pela trinca de protagonistas. Acostumada a viver tipos exóticos, Frances McDormand passeia pelas inúmeras camadas da sua Mildred com força e sensibilidade. Nos momentos em que precisa encarar a mãe raivosa, a veterana enche a tela de energia ao interiorizar a independência e a agressividade da personagem, explodindo em cena com humor e um ar ameaçador digno de nota. São nas sequências mais humanas, porém, que McDormand justifica o status em torno da sua atuação. Por trás da mulher vingativa existe uma pessoa amargurada e solitária, uma figura vulnerável que brota em cena em situações genuinamente comoventes. Diante dos respeitosos planos médios\fechados de McDonagh, a atriz impressiona ao se "despir" do rótulo de durona previamente construído, permitindo que o espectador enxergue a verdade por trás da casca criada por ela para superar uma situação tão dolorosa. E o resultado é de cortar o coração. Uma atuação completa. Pintado inicialmente como um tipo imbecil e odiosos, Sam Rockwell absorve as nuances de Dixon com ironia e desapego. Apesar do viés caricatural, o versátil ator impede que o seu policial seja tratado como uma mera piada, oferecendo os ingredientes necessários para que possamos ver os traços de humanidade escondidos num arquétipo tão vil. Indo além da comicidade, Rockwell é cuidadoso ao realçar tanto a face raivosa do seu personagem, quanto os seus lampejos de afeto, contornado alguns problemas narrativos ao impedir que as mudanças do mesmo se revelassem forçadas. Por fim, com o seu usual carisma, Woody Harrelson esbanja maturidade ao criar um xerife pressionado. Um homem tratado como relapso, mas que, à sua maneira, parece se preocupar com o que acontece ao seu redor. No tipo mais equilibrado da história, ele transita por temas delicadíssimos com leveza e emoção, criando um daqueles personagens que, mesmo nos momentos de ausência, tem a sua presença sentida ao longo da trama. 


Recheado de predicados técnicos, vide a iluminada fotografia em tons frios de Ben Davis (Doutor Estranho) e os nervosos riffs de piano de Carter Burwell (Bravura Indômita), Três Anúncios para um Crime usa a vingança como o ponto de partida para propor uma inteligente crítica contra a polarização que tomou conta de algumas das principais metrópoles do mundo. Embora centrado no coração da América, Martin McDonagh é astuto ao universalizar questões tão comuns, realçando os perigos da irracionalidade dualística ao aproximar os opostos e mostrar que o diálogo pode ser bem mais eficaz do que qualquer atitude radical. Até porque independente de lados, no final das contas, todo mundo quer ser ouvido e ser compreendido.

Um comentário:

Unknown disse...

Acho que é um dos melhores filmes que fizeram. Este filme é um dos melhores do gênero de drama que estreou o ano passado. É impossível não se deixar levar pelo ritmo da historia. Acho que é realmente bom, o que mais gostei é o elenco, é excelente, Abbie Cornish é uma das melhores atrices do gênero, recém vi seu participação em Tempestade: Planeta em fúria, é um dos melhores filmes ação em 2018, além o suspense que tem é ótimo. Sinceramente os filmes de ação não são o meu gênero preferido, mas devo reconhecer que Tempestade superou minhas expectativas. Adorei está história, por que além das cenas cheias de efeitos especiais, realmente teve um roteiro decente, elemento que nem todos os filmes deste gênero tem.