segunda-feira, 6 de março de 2017

Do Fundo do Baú (A Escolha de Sofia)

Se você que entender os motivos que levaram a "superestimada" Meryl Streep a vinte indicações ao Oscar, assista A Escolha de Sofia (1982) e encontre as suas respostas. Numa incrível composição de personagem, ela nos brinda com uma figura doce e amargurada, uma mulher magnética que naturalmente segura as rédeas da densa obra do diretor Alan J. Pakula (Todos os Homens do Presidente). Por mais que as duas horas e meia de película soem exageradas, Streep dita o tom deste drama instigante e nebuloso, um longa intimista capaz de transitar por temas espinhosos com comedimento e elegância. Impulsionado pela revigorante performance do jovem Kevin Kline e pela comedida presença de Peter MacNicol, o realizador norte-americano impressiona ao mostrar pleno domínio sobre a sua narrativa, sobre as emoções dos seus personagens, realçando os elementos mais conflitantes ao construir um afetuoso e instável triângulo afetivo. 



Com uma premissa naturalmente envolvente em mãos, inspirada na obra homônima de William Styron, Alan J. Pakula sai em defesa do poder do diálogo, da presença cênica dos seus comandados, investindo em imersivos planos sequências e num poderoso 'mise en scene'. Fazendo um excelente uso da inventiva direção de arte, as paredes rosadas do quarto de Sofia, por exemplo, dão ao cenário uma aparência pacífica, o diretor brilha ao compor os seus marcantes protagonistas, ao descortinar os segredos mais pessoais por trás da relação entre Sophia (Streep) e Nathan (Kline). Ora amorosa, ora ciumenta, a passional interação entre os dois abre as brechas necessárias para um impecável estudo de personagem, elemento potencializado pela presença do escritor Stingo (MacNicol). Representando os olhos do público, através dele mergulhamos nesta profunda história de redenção e amargor, um relato potencializado pelos oportunos flashbacks e pelos expositivos diálogos. Por diversas vezes, inclusive, Pakula prefere narrar fatos passados do que propriamente mostra-los, uma opção corajosa que se torna explicável quando nos deparamos com a poderosa atuação de Meryl Streep.


Embora o teor verborrágico dos dois primeiros atos possa soar incomodo ao espectador mais acostumado às soluções fáceis, Pakula extrai o máximo da sua protagonista, dando a Meryl Streep o espaço necessário para que ela possa interiorizar as emoções da sua Sophia. Com um sotaque fortíssimo e uma abordagem sutil, a laureada atriz entrega uma das atuações da sua carreira ao capturar a essência da sua personagem, o misto de ternura, vulnerabilidade e deterioração emocional desta resiliente mulher. Num gradativo processo de transformação, num momento ela surge ensolarada e apaixonante.  No outro aparece devastada e esquálida. São nas sequências mais intimistas, porém, que Streep exibe o seu vasto repertório. Sem querer revelar muito, a cena em que Sophie é confrontada por Nathan é primorosa, assim como o trecho em que ela finalmente conta os motivos por trás de tamanho mistério. É interessante ver, aliás, como o diretor explora a beleza imponente de Streep, as feições poeticamente pálidas dela, criando um contraste natural com o estado de espirito da protagonista. Um mérito que, diga-se de passagem, precisa ser dividido também com a enérgica presença de Kevin Kline, soberbo na pele de um desequilibrado e apaixonante personagem.


Contando ainda com a versátil fotografia de Néstor Almendros (A Lagoa Azul), impecável ao capturar não só o aspecto mais cativante da trama, como também a atmosfera sombria em torno do passado da protagonista, A Escolha de Sophia é um drama singular. Uma obra trágica, mas por vezes iluminada, que nas mãos erradas poderia ter se tornado um melodrama barato da pior qualidade. Alan J. Pakula, no entanto, conseguiu extrair a faceta mais sincera dos seus personagens, o aspecto mais complexo da sua obra, construindo um romance revelador sobre duas figuras atormentadas em busca da tão cobiçada paz.

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