Um relato íntimo e
profundo sobre a iminente dor da perda
Inspirado na experiência pessoal enfrentada pelo próprio diretor Nanni
Moretti, que perdeu a mãe durante as filmagens de Habemus Papam (2011), Mia
Madre é um drama sutil e precioso sobre o impacto da perda na rotina de um
atarefado indivíduo. Apesar de tentar descartar a hipótese que este seria um
longa autobiográfico, o que fica claro quando ele escala a talentosa Margherita
Buy para o papel de protagonista, o realizador italiano não consegue privar o espectador das suas emoções mais
particulares ao passear por dilemas tão íntimos com profundidade e elegância.
Não se engane, porém, com a aparente peculiaridade da trama. Por mais que o
divertido tom metalinguístico traga certa autoralidade a película, afinal de
contas a personagem principal também é uma diretora de cinema, Moretti constrói
uma história universal e naturalista, um relato humano e bem humorado capaz de dialogar com todos os públicos.
Sem a intenção de parecer uma espécie confissão reprimida, o argumento
assinado pelo próprio Nanni Moretti, ao lado de Valia Santella e Francesco
Piccolo, esbanja delicadeza ao desvendar o turbilhão de emoções enfrentado pela
independente Margherita (Margherita Buy). No meio das filmagens do seu mais
novo lançamento, um drama sobre a complicada situação de um grupo de operários
italianos, a realizadora vê a sua rotina virar de cabeça para baixo ao
descobrir que a sua querida mãe, a professora Ada (Giulia Lazzarini), está com
uma doença terminal. Com um cronograma apertado e uma equipe de produção um
tanto quanto relapsa, Margherita ganha um novo problema com a chegada do astro
ítalo-americano Barry Highins (John Turturro), uma estrela de Hollywood mimada
que iria fazer uma importante aparição no seu longa. Contando com o apoio do
seu zeloso irmão (Nanni Moretti) e da sua filha adolescente (Beatrice Mancini),
Margherita decide tentar conciliar os seus inúmeros dilemas pessoais, mas a sua
aparente força começa a ruir no momento em que a condição da sua mãe passa a
piorar.
Reconhecido por expor as suas experiências através dos seus filmes,
Nanni Moretti transforma Mia Madre numa espécie de reinterpretação das suas
próprias memórias. Apesar da temática naturalmente dolorosa, o realizador opta
por uma abordagem leve e agridoce ao dissecar os complexos conflitos mais
íntimos da protagonista, uma mulher resiliente que luta para não esmorecer
diante da sua iminente perda. A partir de diálogos francos e bem escritos,
Moretti mostra sensibilidade ao explorar as múltiplas camadas da trama, se
esquivando do teor melodramático ao se aprofundar seja na íntima relação entre
mãe e filha, seja na adorável parceria entre os irmãos, ou até mesmo explosiva
interação entre diretora e astro. Sem nunca sacrificar o ritmo da trama, o
diretor italiano é zeloso ao trabalhar os crescentes dilemas da protagonista,
que ganham corpo em sequências ora singelas e comedidas, ora raivosas e
desesperadas. Melhor ainda, aliás, é a maneira perspicaz encontrada por ele
para traduzir os pensamentos e devaneios da sua personagem. Através de momentos
quase oníricos, sequências repentinas que descortinam as lembranças, os
pesadelos e os medos mais reprimidos da realizadora, Moretti provoca o
espectador ao distorcer a aparente linearidade da trama. Por diversas vezes,
inclusive, sonho e realidade se
confundem de maneira inspirada em cena, dialogando quase sempre com a expressão
perdida de Margherita.
Mesmo diante destas soluções narrativas mais ousadas, Nanni Moretti
surpreende ao adotar um ritmo extremamente comercial. Isso mesmo, com absoluto
domínio narrativo, o realizador não só reflete sobre o drama enfrentado pela
protagonista com elegância e comedimento, vide o soberbo ato final, como também
encontra um inesperado tempo para algumas sinceras risadas, principalmente com
a mimada figura do astro Barry Highins. Sem querer revelar muito, a sequência
da discussão entre a diretora e a sua estrela é impagável, um daqueles momentos
que eu não esperava assistir num longa como Mia Madre. Moretti, aliás, faz
também um criativo uso da metalinguagem, o que naturalmente se torna um dos
grandes diferenciais desta película. Além de descortinar o 'modus operandi' por
trás de uma produção cinematográfica, o italiano coloca muito do seu estilo nas
escolhas profissionais da errática Margherita, realçando o seu apreço pela
verdade e pelo naturalismo ao acompanhar as desventuras profissionais da
protagonista diante de um "astro" que mal sabia falar italiano.
Inegavelmente, um prato cheio para os fãs da sétima arte.
O grande trunfo de Mia Madre, no entanto, reside na força do elenco. Com
um tipo único e complexo em mãos, Margherite Buy absorve com absoluta
expressividade as emoções da sua personagem, indo da explosiva à fragilizada
com rara energia. No meio de um verdadeiro turbilhão emocional, a atriz cria
uma honesta conexão com as figuras que a cercam, principalmente com a sua
fragilizada mãe, realçando o intimismo defendido pelo realizador ao longo da
película. Assim como Buy, a veterana Giulia Lazzarini esbanja amabilidade ao
dar vida a débil Ada. Com uma figura sábia em mãos, a atriz torna crível a
deterioração física\mental da sua personagem, o que só potencializa a delicada
relação entre mãe e filha. Quem também rouba a cena, aliás, é o próprio Nanni
Moretti. Responsável por interpretar o irmão de Margherite, o sereno Giovanni,
o diretor entrega uma atuação absolutamente sóbria, a voz de lucidez diante
deste delicado cenário. Curiosamente, em entrevista a Folha de São Paulo, o
diretor revelou que a sua postura durante a doença da mãe em nada combinava com
a do seu personagem. Ainda sobre o elenco, enquanto a jovem Beatrice Mancini
adiciona jovialidade a trama com a adolescente Lívia, o experiente John
Turturro aposta em hilárias improvisações ao compor o exótico Barry Highins.
Mais do que um emotivo drama autobiográfico, Mia Madre é um relato
singelo e universal sobre aqueles momentos em que a vida parece fugir das
nossas rédeas. Apesar da evidente aproximação pessoal com os fatos mostrados em
tela, Nanni Moretti brilha ao ficcionalizar algumas das suas experiências mais
dolorosas, transformando a moderna Margherite numa daquelas singulares
personagens femininas que o cinema mundial tanto precisa.
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