sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Mia Madre

Um relato íntimo e profundo sobre a iminente dor da perda

Inspirado na experiência pessoal enfrentada pelo próprio diretor Nanni Moretti, que perdeu a mãe durante as filmagens de Habemus Papam (2011), Mia Madre é um drama sutil e precioso sobre o impacto da perda na rotina de um atarefado indivíduo. Apesar de tentar descartar a hipótese que este seria um longa autobiográfico, o que fica claro quando ele escala a talentosa Margherita Buy para o papel de protagonista, o realizador italiano não consegue privar o espectador das suas emoções mais particulares ao passear por dilemas tão íntimos com profundidade e elegância. Não se engane, porém, com a aparente peculiaridade da trama. Por mais que o divertido tom metalinguístico traga certa autoralidade a película, afinal de contas a personagem principal também é uma diretora de cinema, Moretti constrói uma história universal e naturalista, um relato humano e bem humorado capaz de dialogar com todos os públicos.



Sem a intenção de parecer uma espécie confissão reprimida, o argumento assinado pelo próprio Nanni Moretti, ao lado de Valia Santella e Francesco Piccolo, esbanja delicadeza ao desvendar o turbilhão de emoções enfrentado pela independente Margherita (Margherita Buy). No meio das filmagens do seu mais novo lançamento, um drama sobre a complicada situação de um grupo de operários italianos, a realizadora vê a sua rotina virar de cabeça para baixo ao descobrir que a sua querida mãe, a professora Ada (Giulia Lazzarini), está com uma doença terminal. Com um cronograma apertado e uma equipe de produção um tanto quanto relapsa, Margherita ganha um novo problema com a chegada do astro ítalo-americano Barry Highins (John Turturro), uma estrela de Hollywood mimada que iria fazer uma importante aparição no seu longa. Contando com o apoio do seu zeloso irmão (Nanni Moretti) e da sua filha adolescente (Beatrice Mancini), Margherita decide tentar conciliar os seus inúmeros dilemas pessoais, mas a sua aparente força começa a ruir no momento em que a condição da sua mãe passa a piorar.


Reconhecido por expor as suas experiências através dos seus filmes, Nanni Moretti transforma Mia Madre numa espécie de reinterpretação das suas próprias memórias. Apesar da temática naturalmente dolorosa, o realizador opta por uma abordagem leve e agridoce ao dissecar os complexos conflitos mais íntimos da protagonista, uma mulher resiliente que luta para não esmorecer diante da sua iminente perda. A partir de diálogos francos e bem escritos, Moretti mostra sensibilidade ao explorar as múltiplas camadas da trama, se esquivando do teor melodramático ao se aprofundar seja na íntima relação entre mãe e filha, seja na adorável parceria entre os irmãos, ou até mesmo explosiva interação entre diretora e astro. Sem nunca sacrificar o ritmo da trama, o diretor italiano é zeloso ao trabalhar os crescentes dilemas da protagonista, que ganham corpo em sequências ora singelas e comedidas, ora raivosas e desesperadas. Melhor ainda, aliás, é a maneira perspicaz encontrada por ele para traduzir os pensamentos e devaneios da sua personagem. Através de momentos quase oníricos, sequências repentinas que descortinam as lembranças, os pesadelos e os medos mais reprimidos da realizadora, Moretti provoca o espectador ao distorcer a aparente linearidade da trama. Por diversas vezes, inclusive, sonho e realidade se confundem de maneira inspirada em cena, dialogando quase sempre com a expressão perdida de Margherita.


Mesmo diante destas soluções narrativas mais ousadas, Nanni Moretti surpreende ao adotar um ritmo extremamente comercial. Isso mesmo, com absoluto domínio narrativo, o realizador não só reflete sobre o drama enfrentado pela protagonista com elegância e comedimento, vide o soberbo ato final, como também encontra um inesperado tempo para algumas sinceras risadas, principalmente com a mimada figura do astro Barry Highins. Sem querer revelar muito, a sequência da discussão entre a diretora e a sua estrela é impagável, um daqueles momentos que eu não esperava assistir num longa como Mia Madre. Moretti, aliás, faz também um criativo uso da metalinguagem, o que naturalmente se torna um dos grandes diferenciais desta película. Além de descortinar o 'modus operandi' por trás de uma produção cinematográfica, o italiano coloca muito do seu estilo nas escolhas profissionais da errática Margherita, realçando o seu apreço pela verdade e pelo naturalismo ao acompanhar as desventuras profissionais da protagonista diante de um "astro" que mal sabia falar italiano. Inegavelmente, um prato cheio para os fãs da sétima arte.


O grande trunfo de Mia Madre, no entanto, reside na força do elenco. Com um tipo único e complexo em mãos, Margherite Buy absorve com absoluta expressividade as emoções da sua personagem, indo da explosiva à fragilizada com rara energia. No meio de um verdadeiro turbilhão emocional, a atriz cria uma honesta conexão com as figuras que a cercam, principalmente com a sua fragilizada mãe, realçando o intimismo defendido pelo realizador ao longo da película. Assim como Buy, a veterana Giulia Lazzarini esbanja amabilidade ao dar vida a débil Ada. Com uma figura sábia em mãos, a atriz torna crível a deterioração física\mental da sua personagem, o que só potencializa a delicada relação entre mãe e filha. Quem também rouba a cena, aliás, é o próprio Nanni Moretti. Responsável por interpretar o irmão de Margherite, o sereno Giovanni, o diretor entrega uma atuação absolutamente sóbria, a voz de lucidez diante deste delicado cenário. Curiosamente, em entrevista a Folha de São Paulo, o diretor revelou que a sua postura durante a doença da mãe em nada combinava com a do seu personagem. Ainda sobre o elenco, enquanto a jovem Beatrice Mancini adiciona jovialidade a trama com a adolescente Lívia, o experiente John Turturro aposta em hilárias improvisações ao compor o exótico Barry Highins.


Mais do que um emotivo drama autobiográfico, Mia Madre é um relato singelo e universal sobre aqueles momentos em que a vida parece fugir das nossas rédeas. Apesar da evidente aproximação pessoal com os fatos mostrados em tela, Nanni Moretti brilha ao ficcionalizar algumas das suas experiências mais dolorosas, transformando a moderna Margherite numa daquelas singulares personagens femininas que o cinema mundial tanto precisa.

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